EM DEBATE

Há dois anos, a capa de Teoria & Debate nº 8 trazia uma chamada que na época foi polêmica: "Socialismo real: o que desfazer?". Era o primeiro número da revista depois da queda do Muro de Berlim e aquela chamada abriu um debate sobe a crise do socialismo real que se estendeu por três números. Hoje, constatamos que a queda do Muro foi apenas o começo de um processo de desmoronamento de todo um bloco político. Chegamos à conclusão de que, longe de  termos esgotado o assunto, mal o iniciamos. Assim, retomamos o debate perguntando: "Socialismo, por onde recomeçar?"

Posição privilegiada

Janelas abertas

Posição privilegiada

Céticos e cínicos do mundo inteiro reverenciam, no altar da modernidade, o mais leve insustentável ser a desmanchar-se no ar: o Indivíduo. Ali, no mesmo local onde também se imolou a História, condenada a um fim irremediável, incensa-se o mercado, o supremo demiurgo de todas as delícias terrenas. O socialismo está morto, viva o capitalismo.

Mas a orelha do último livro está cheia de outras novidades: acabou a luta de classes, esquerda X direita são expressões anacrônicas, desprovidas de conteúdo ou significado. O que conta, mesmo, é a modernidade.

Novos "valores" (muitos deles com o bolor do passado escondido pelas fantasias do presente) ditam a moda. Estamos vivendo um estágio em que, para usar a expressão de Mario Benedetti, prevalecem o "descrédito do compromisso" e a "rentabilidade da indiferença". Ser de esquerda virou out. São tempos de evasão e de escapismo.

Toda esta voga tem uma matriz: a da supremacia do capitalismo como forma superior de organização da sociedade, provada e comprovada com o desmonte dos países do "socialismo real", na Europa do Leste, na Ásia, na África. E sua lógica intrínseca de envolvimento, de disputa ideológica, vai na direção de rebaixar a utopia socialista, de ridicularizar as possibilidades de alternativas revolucionárias e de retirar a legitimidade da esquerda, desmoralizando-a pela associação às fracassadas experiências do Leste.

Apesar de todo esse movimento propagandístico, entendemos, como o velho Unamuno, que "vencer não é convencer; conquistar não é converter". Por isso, acreditamos não só que há muito espaço para a ação da esquerda, como também que o futuro da sociedade brasileira depende do que fizerem, desde agora, os democratas, os progressistas, os socialistas enfim, este amplo campo popular que consideramos à esquerda. E quando nos referimos à esquerda, falamos daquela que tem compromissos libertários, tradição democrática, espírito crítico e, portanto, é radicalmente antidogmática.

É esta esquerda - que no Brasil tem o PT como sua mais representativa expressão - a responsável por dar respostas aos desafios presentes neste foral/início de século.

E o principal deles, que se coloca com mais urgência no horizonte, é o de impedir que o militarismo, a pobreza, o racismo, as várias formas de totalitarismo, o apartheid político do Sul sejam inevitáveis, inelutáveis, como pretendem os partidários do irracionalismo na teoria.

O papel da esquerda é combater este futuro que se desenha, opondo a ele a atualidade do socialismo, como forma alternativa de organização social, que se constrói a partir da luta dos "de baixo". O Brasil é um bom exemplo. Os cenários atuais apontam para a acentuação das disparidades sociais, econômicas, políticas e culturais. Não graças a uma fatalidade qualquer. Mas porque a elite dominante no país há séculos - mesmo que as trocas de guarda tenham mudado as caras e as roupas - não prima pela defesa do interesse público, e sim pela cupidez e pelo interesse próprio. Só um forte movimento social inspirado numa sociedade alternativa, ou que seja galvanizado por forças nela inspiradas, será capaz de oferecer um futuro diferente ao que se prenuncia.

É preciso, porém, não ignorar as dificuldades. De que situação parte hoje a esquerda para lutar por esta nova sociedade, que não está definida de antemão e nem o será pela História? Vivemos uma fase defensiva. Sofremos o impacto de uma das maiores derrotas impostas às forças socialistas desde que elas ganharam importância no mundo. Antes dessa, houve a decepção que se seguiu à bonapartização da Revolução Francesa; as derrotas de 1848; os milhares de mortos da Comuna de Paris; o apoio da social-democracia aos governos capitalistas na 1º Guerra Mundial; as derrotas na Alemanha, na Hungria, na Itália; a vitória de Franco na Guerra Civil Espanhola; a ascensão do nazi-fascismo; os primeiros anos da 2°- Guerra Mundial; o conflito sino-soviético; as invasões da Hungria e da Tcheco-Eslováquia; as guerras do Camboja e do Afeganistão; a invasão da Polônia...

O ocaso de um modelo

De todas, esta talvez seja a maior crise. Abala, simultaneamente, os dois ramos em que historicamente se fragmentou o movimento socialista. Basta ver a recente derrota da social-democracia na Suécia, uma espécie de URSS deles.

Este é o ponto de partida. Daí ser fundamental desenvolver uma análise histórico-crítica - e não uma contrição - das experiências do socialismo real, bem como das tentativas de reforma social-democrata. Devemos reconhecer que, naqueles países, não ocorreu simplesmente o ocaso de uma burocracia, mas o colapso definitivo de um modelo de estatização da política e da economia. Um caminho de construção de socialismo, constrangido, desde o nascedouro pelo atraso, pela reação dura e violenta das classes dominantes, pela luta de classes concreta e real travada em cada país e, sobretudo, pelas opções políticas e pelas posições teóricas das vanguardas políticas.

Na ofensiva, a direita proclama que o socialismo acabou. E os liberais concedem que, se o socialismo mostrou-se inviável como alternativa de sociedade, sua utopia, contudo, deve nortear os melhores propósitos do espírito reformista... Na esquerda (muitos, é verdade), há os que caem na prostração, desencantados e perplexos, começando a enxergar a banda esquerda do mundo como se estivesse salpicada de sangue dos pés à cabeça. Nós, entretanto, achamos que há muito sentido para a militância de esquerda, num mundo em que a maioria se desvia em direção ao "centro". Na política, vale a pena agir como na música: "levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima". Até porque um dos nossos principais objetivos é lutar pelo fim da exploração do capital.

Diante da exploração capitalista, não há o que tergiversar. Não é ela, afinal, a responsável pelas mazelas do Terceiro Mundo, pela miséria, pela desagregação social, pelas torturas e pela violência, pela falta de democracia? Diante disso a esquerda não pode se calar, enquanto lambe suas feridas.. A menos que queira, paralisada e chorosa, compactuar com aquilo que Giordano Bruno, em boa hora, classificou como "cultura do silêncio".

Na agonia de um século e no limiar de outro, o que resta de um ciclo histórico que se encerra e o que devemos levar conosco para o próximo período?

Antes de tudo, cabe reafirmar que a luta pelo socialismo é um elemento fundamental para civilizar o capitalismo. Mesmo onde se frustrou, apesar de todos os percalços que conheceu nesse século, a luta pelo socialismo possibilitou a constituição de sociedades que tentaram fugir das leis do capital, de seu jogo e de sua opressão. Ademais, forçou a burguesia a realizar concessões substanciais em vários países, consolidando um bloco hoje conhecido como o do "capitalismo avançado". Assim; bem ao contrário do que se diz atualmente, a luta de classes, a luta decidida e radical dos trabalhadores em defesa de suas reivindicações e de um projeto social, é vital para que o mundo seja, pelo menos, respirável. Como sublinhou o historiador Eric Hobsbawm, em artigo para a Folha de S. Paulo, "um mundo em que eles não têm medo dos pobres é um mundo horrível".

Outra lição a extrair é a de que o processo de luta por um mundo novo combina a luta cotidiana, as reformas parciais, com grandes comoções políticas, econômicas e sociais (ver, a propósito, o instigante artigo de César Benjamin, "Reformas e Revolução", em Teoria & Debate nº 15). Erram os que não compreendem o papel essencial das lutas do dia-a-dia, imaginando poderem simplesmente "assaltar os céus" num futuro pré-determinado. Mas igualmente se equivocam os que descartam o papel insubstituível das revoluções sociais, políticas, culturais e econômicas.

As grandes mudanças ocorrem quando milhões e milhões, simultaneamente e num curto espaço de tempo, conquistam seu lugar ao sol. Isto é revolução.

Liberdade Individual

Outra herança que a esquerda carrega, é o potencial construtivo, desenvolvimentista e racionalizante da ação coletiva e da propriedade coletiva. Por mais que se empenhem os ideólogos culturais do neoliberalismo não haverá lugar, numa sociedade complexa como a nossa, para a liberdade individual que não seja fundada na ação coletiva. Os bilhões de seres humanos que habitam o planeta só terão direito e condições de expressarem sua individualidade, e desenvolvê-la amplamente, quando sua ação coletiva arrancar este direito das minorias que, com base na propriedade privada, monopolizam o direito à individualidade.

Da mesma maneira, a propriedade coletiva, seja sob o capitalismo ou sob o socialismo real, mostrou não apenas seus limites, mas suas virtualidades. Basta olhar para o expressivo crescimento e para o peso específico - hoje, em plena onda neoliberal - da propriedade e do planejamento estatais no próprio capitalismo. Ou na capacidade que a propriedade estatal - ainda que não social e sob jugo burocrático demonstrou de impor uma lógica de atendimento às necessidades da maioria e não à lógica da acumulação do capital. Daí a necessidade de "privatização"...

Por fim, o ciclo que se encerra não sepulta a força das idéias marxistas. Nas suas múltiplas e contraditórias versões, as idéias desenvolvidas a partir da obra de Marx e Engels revelaram uma vitalidade superior à de qualquer outra teoria laica. Nem a vulgata stalinista foi capaz de impedir sua renovação e crítica permanente, condição para sua eficácia.

O marxismo - que assim não se chamaria pela vontade de seu inaugurado - ou os marxismos, ligaram sua sobrevivência e seu destino a um pedaço da sociedade, a uma base social. Propuseram-se, também, desde o início, a ser uma teoria global, não limitada a qualquer aspecto específico do real ou de um período determinado - um método mais do que uma teoria. Ademais, o marxismo só vicejou quando visto como um instrumento para a mudança social, um guia para a ação. Fala-se dos erros de concepção e previsão do marxismo e dos marxistas. Com efeito, foram muitos- e deveriam sê-lo, a menos que estivéssemos falando de uma religião, de uma fé codificada, que uma teoria transformada de antemão rejeita a fim de não se fossilizar.

Enquanto o marxismo segue sendo o instrumento fundamental para entender o capitalismo e traçar os rumos possíveis do socialismo, o que dizer do liberalismo e de todas as teorias sociológicas que brotaram e tiveram o seu funeral na própria academia?

No caso do Brasil, ingressamos neste novo período histórico com um saldo distinto daquele que descrevemos a nível internacional. E não se trata de nacionalismo ufanista, até porque não desconhecemos a conjuntura, num momento em que o governo Collor, mesmo enredado em suas contradições, tenta jogar a esquerda no gueto. O fato, porém, é que não vivemos uma década de descenso, mas sim de alta.

Não carregamos compromissos, nem somos herdeiros do que desabou no Leste Europeu - nem do socialismo real, nem da social-democracia. Muito embora, por conta de uma certa complacência nossa com o que ocorria por lá, possam nos atribuir uma desconfortável ligação. De qualquer modo, somos um dos poucos países do mundo com uma esquerda forte. Mais que isso, atuamos num país cuja base social é avançada o bastante para permitir a construção de uma nova sociedade e, talvez, atrasada o suficiente para despertar a ira e a indignação de milhões.

Talvez por isso tudo o PT detenha hoje uma posição privilegiada. No terreno das concepções, começamos antes que muitos a romper com os dogmas; outros quebraram a cara por nós nos últimos 70 anos. Além disso, nossa disposição é a de trilhar um caminho radicalmente democrático, pluralista, repelindo aqueles que se pretendem arvorar em donos da verdade.

Restam, como sempre restará numa sociedade dividida em classes, os constrangimentos da vida real, da luta política, que se ampliaram quando o desmonte do campo socialista deixou os Estados Unidos com as garras livres para atacar todos quantos desejam quebrar a lógica da exploração. Contra estes constrangimentos, não é a teoria que decide, mas a nossa força e a nossa vontade revolucionária. E, sobretudo, o apoio do povo, sem o qual nada virá. Conquistar este apoio, torná-lo hegemônico na sociedade, construir o futuro no presente, eis o papel da esquerda.

Rui Falcão é presidente do Diretório Municipal de São Paulo e editor do jornal Brasil Agora.

Janelas abertas

Comecemos por reconhecer que a crise do socialismo é, realmente, muito grave. Por mais que a grande imprensa a esteja explorando e muitas vezes distorcendo, ela não é uma invenção da mídia. E se os socialistas estão dispostos a lutar para superá-la, não podem deixar de reconhecê-la em toda a sua extensão e profundidade.

A crise do socialismo envolve a prática e a teoria, abrange a política e a doutrina. Vamos nos deter em algumas considerações a respeito dos problemas que se apresentam no plano teórico. Partiremos do pressuposto de que as teorias, mesmo as melhores, são construções históricas, quer dizer, não permanecem imunes à passagem do tempo, estão sujeitas a envelhecer e só podem recuperar a vitalidade quando empreendem as auto transformações necessárias.

O marxismo se tornou, historicamente, sem dúvida, a principal corrente de pensamento no movimento socialista, ao longo deste último século. Com a 1º Guerra Mundial e a tomada do poder na Rússia pelos bolcheviques, o marxismo típico da "época de ouro" da II Internacional, cujo representante mais visível era Kautski, ficou desacreditado e cedeu espaço a outra codificação doutrinária, o marxismo-leninismo.

Exportado para o mundo inteiro pela ação dos partidos ligados à III Internacional, o marxismo-leninismo exerceu poderosa influência sobre a história política do século XX; travou combates importantes, alertou massas de trabalhadores para questões bastante significativas, denunciou formas sutis de opressão e exploração, desmascarou mistificações propagandísticas, mas, na medida em que foi envelhecendo, passou a manifestar limitações sérias, deficiências preocupantes.

Inicialmente, os marxista-leninistas tentaram enfrentar o problema responsabilizando o stalinismo pelo mau funcionamento da doutrina. Foi um momento de glória para os bravos companheiros trotskistas, pioneiros na denúncia de Stalin. Logo, porém, ficou claro que, apesar da enorme diferença entre os dois, Lenin não escaparia incólume à revisão crítica de Stalin.

O stalinismo não teria sido possível sem a concepção leninista de partido, sem a ditadura do partido único, sem a convicção leninista de que a ação revolucionária do partido está acima de qualquer lei. Difundiu-se na consciência da esquerda, em escala mundial, a idéia de que os combates, em torno da reivindicação de um aumento efetivo da participação da pluralidade dos movimentos sociais no exercício do poder político, não podiam ser eficazmente travados sob a bandeira do marxismo-leninismo. E essa idéia encontrou certa resistência conservadora entre os companheiros trotskistas mais apegados ao leninismo.

Foi nesse momento da revisão do leninismo que brilhou com maior intensidade a estrela do italiano Gramsci, um leninista que soube ir "além de Lenin". Compreendeu que, nas condições da revolução possível no "Ocidente", os revolucionários precisavam fazer um investimento radical no fortalecimento da "sociedade civil", na organização do rico e contraditório movimento dos "debaixo", para conter o autoritarismo do Estado. Isso se daria ao longo de um processo complicado, no qual os trabalhadores, antes mesmo de assumir o governo, deveriam firmar a "hegemonia" de sua perspectiva e assegurar o "consenso" das massas para a realização de um programa de transformações profundas na sociedade.

Gramsci revalorizou energicamente, por exemplo, o conceito de práxis. O ser humano é um ser que existe transformando o mundo e transformando a si mesmo: existe se inventando. Não é possível conhecê-lo, portanto, tal como ele é, mas somente tal como ele está se tomando. Para compreendê-lo, então, em sua realidade, precisamos chegar a ele através de uma mediação, que é a atividade pela qual ele, sujeito, se objetiviza, quer dizer, plasma sua realidade objetiva.

Essa concepção gramsciana do marxismo como "filosofia da práxis" recupera uma dimensão da concepção do sujeito humano e de seu papel na história que se encontrava na filosofia de Marx e tinha sido abandonada por Kautski. De certo modo, a teoria do partido revolucionário elaborada por Lenin já era uma reação contra o contemplativismo determinista do marxismo da II Internacional (que incitava os socialistas a esperar o amadurecimento inexorável das contradições sócio-econômicas para depois agir). Na perspectiva de Lenin, a valorização do papel do sujeito e do seu poder de tomar iniciativas ficou restrita à teoria do partido de vanguarda, sem se elevar ao nível de uma generalização filosófica, como ocorreu na perspectiva de Gramsci.

Outro ponto da maior importância do marxismo concebido como "filosofia da práxis": a relação da práxis com o trabalho. Para Marx, o trabalho é o "caroço" da práxis. É a partir do trabalho que surge a tensa relação sujeito/objeto, e o sujeito pode começar a diversificar sua atividade, não só produtiva como também comunicativa, transformando-se e transformando o mundo, dominando as contradições das forças naturais e aprendendo a lidar com suas próprias contradições subjetivas. A força de trabalho é, na sua essência, a própria criatividade do sujeito humano. E é em função dessa concepção filosófica que Marx denuncia implacavelmente as conseqüências deletérias da redução da força de trabalho à condição de mera mercadoria - e mercadoria vendida a preços aviltados! - pelo capitalismo.

Os limites de Gramsci

Não podemos deixar que se desperdicem essas observações, nas quais Gramsci, por assim dizer, recria o vigor crítico-revolucionário do pensamento de Marx. No entanto, diante do agravamento da crise política das diversas experiências socialistas, e do conseqüente agravamento da crise teórica do pensamento socialista, não podemos deixar de discutir também os limites de Gramsci.

E a discussão sobre os limites de Gramsci passa, igualmente, por uma reflexão mais aprofundada a respeito dos limites do próprio Marx. Como Gramsci é um pensador a quem meu pensamento político deve muito e Marx continua sendo entre os filósofos o meu interlocutor fundamental, é óbvio que sou otimista em relação ao futuro do legado teórico de ambos. Acho, mesmo, que certas idéias de Gramsci podem sair revigoradas de um reexame crítico, e estou convencido de que a concepção do homem é a concepção da história elaboradas por Marx sobreviverão às tempestades atuais, revitalizadas pela incorporação de novos elementos imprescindíveis para a atuação no novo contexto histórico.

Admito, entretanto, que essa minha convicção pessoal deve ficar subordinada ao esforço da reflexão, ao empenho na atualização. A sociedade está sempre mudando, o que não significa que nós - que lutamos para transformá-la saibamos mudar adequadamente com ela. Estamos, lamentavelmente, sujeitos a impregnações conservadoras sutis. Temos medo de assumir certos riscos inerentes à autotransformação. A palavra "alterar" vem do latim "alter", o outro; quem empreende a alteração das bases do seu modo de pensar a realidade corre o risco de virar outro, isto é, de perder sua identidade. É compreensível que a mudança nos assuste (e até nos apavore). O saudoso companheiro Hélio Pellegrino, com sua autoridade de psicanalista, nos advertia para não subestimarmos o conservadorismo que existe dentro de cada um de nós. "Mudar é correr o risco de morrer", dizia o Hélio. E constatava que, por isso, os neuróticos se aferram à neurose deles, que os faz sofrer, mas que já é uma velha conhecida...

Precisamos evitar a tentação neurótica de nos aferrarmos a modos de sentir e de pensar que estão funcionando mal, que não nos fazem crescer; precisamos ousar abrir as nossas cabeças para a aventura de pensar o novo.

Vimos coisas que Marx e Gramsci não viram, temos preocupações que eles não tinham, somos desafiados a assumir posições que eles não assumiram. As experiências socialistas mostraram que o mercado é muito forte e não se deixa dominar a golpes de decretos revolucionários, nem se deixa domesticar por controles burocráticos. Que conclusão devemos extrair desse fracasso? Devemos nos prosternar diante do mercado e adorá-lo em postura reverente, como fazem alguns liberais, que o consideram matriz da liberdade? Devemos ignorar a dinâmica pela qual o mercado tende a fortalecer privilégios e a concentrar rendas, favorecendo os mais ricos e infernizando a vida dos mais pobres? É claro que, se somos socialistas, não é isso que devemos fazer. O que nos cabe, politicamente, é aprender a conviver com o mercado, submetendo-o a um certo controle democrático por parte da comunidade, limitando os efeitos perversos da sua dinâmica. O mercado vai nos impor determinados limites, porém nós também vamos impor os nossos limites ao mercado.

Por outro lado, não é só diante do mercado que nós vamos precisar ter jogo de cintura": na nossa atuação política e cultural, no encaminhamento das nossas propostas de reforma do Estado e da sociedade, precisaremos levar em conta questões que Marx ignorava. Em seus incisivos juízos revolucionários, o genial filósofo socialista do século passado tinha diante dele um quadro bem mais simples que o nosso campo de batalha atual; não existiam para ele partidos de massas, nem sindicatos de massa. Não existia o sufrágio universal. A atividade política estava restrita a uns poucos milhares de pessoas e não dispunha de canais capazes de incorporar, como hoje, milhões de seres humanos. Os "direitos humanos" proclamados no processo da Revolução Francesa pareciam esvaziados de sentido na retórica liberal e Marx podia desprezá-los como inócuos. O discurso cristão soava como pura embromação e Marx podia se desinteressar da consciência religiosa, sustentando que, quando as relações dos homens entre eles (e deles com a natureza) fossem "racionais e transparentes", o reflexo religioso da miséria real na consciência dos homens se apagaria.

Olhando à sua volta, Marx podia supor que a revolução assumiria uma feição "explosiva", a classe operária governaria com mão-de-ferro (a "ditadura do proletariado") e, após um breve período de mudanças rápidas, o Estado, como tal, desapareceria.

Religião Revitalizada

Na nossa experiência, o que nós podemos constatar é que o Estado e a religião não dão o menor sinal de que estão em processo de desaparecimento. O Estado tem se fortalecido em toda parte e sob formas diversas, impondo ao movimento operário o desafio de pensar nos caminhos práticos pelos quais ele, Estado, pode ser democratizado e posto sob um certo controle eficaz por parte da sociedade. A consciência religiosa vem assumindo uma diversidade (e, nessa diversidade, uma vitalidade) que certamente obrigaria o velho Marx a reconsiderar algumas das coisas que disse sobre ela. E está cada vez mais difícil achar marxistas que ainda acreditem que um dia, depois de tantos séculos de formação de indivíduos cada vez complicados, a sociedade vai chegar a uma situação em que as relações interpessoais se tornarão racionalmente "transparentes"...

Os "direitos humanos" se tornaram elementos essenciais de qualquer movimento empenhado na democratização da sociedade; para a opinião pública, nos nossos dias, uma proposta socialista que não assuma integralmente sua preocupação com a defesa dos direitos humanos fica desacreditada.

Na medida em que a transformação da sociedade passa a depender, não de alguns milhares, mas de milhões de criaturas, sua complexidade se revela bem maior do que Marx pensava. Algumas mudanças podem e devem ser precipitadas, aceleradas; outras só conseguirão se efetivar a médio e outras ainda a longo prazo. E nós, para podermos conferir maior credibilidade às nossas propostas, para darmos maior poder de persuasão aos nossos argumentos, para podermos calçar nossas ações comum a teoria revolucionária séria (e não demagógica ou puramente agitativa), estamos convocados a pensar o conjunto articulado dessas mudanças, quer dizer, a pensar a revolução como um processo, a elaborar - como diz Carlos Nelson Coutinho - uma concepção processual da revolução. Na elaboração dessa concepção processual da revolução, somos levados a lidar com o imaginário social, com mentalidades coletivas, com representações subjetivas, complicações culturais que Marx jamais foi obrigado a submeter a uma análise sistemática. A teoria das ideologias, elaborada pelo nosso filósofo, pode nos ajudar bastante, chamando nossa atenção para a distorção dos conhecimentos e nos incitando a uma saudável desconfiança em face do que é pensado e dito (e que deve sempre ser cotejado, criticamente, com o que é feito). É possível, contudo, que para nos darmos conta plenamente de toda a riqueza dos movimentos das ideologias, tenhamos que esquecer a imagem da "superestrutura" utilizada por Marx. "Superestrutura" (em alemão Uberbau) é uma imagem espacial, proveniente da engenharia, relativa ao que é acrescentado à "estrutura" (em alemão Bau); não serve para indicar o poder que as criações culturais possuem de atuar plasmadoramente sobre a própria estrutura, no movimento vivo da história.

Para nos abrirmos à compreensão da extraordinária diversidade de aspectos do processo da revolução, não podemos nos apoiar, de modo exclusivo, em uma única construção teórica. É importante que cada grupo, que cada pessoa, tenha seu pensamento e procure aprofundá-lo, empenhando-se em conferir-lhe coerência e recusando-se a ceder às facilidades do ecletismo. Mas é importante, também, que cada tendência, cada linha de pensamento, reconheça a legitimidade das outras e com elas consiga encaminhar controvérsias fecundas. Porque o movimento socialista, para superar a crise atual, vai precisar de todas elas.

Uma teoria, por melhor que seja, corre o risco de se encastelar nas suas verdades, de se enrijecer e se tornar incapaz de pensar as questões novas que, nos nossos dias, estão emergindo em ritmos cada vez mais vertiginosos. A pluralidade das teorias na ação política cria condições favoráveis para que elas se critiquem e se "sacudam" umas às outras, contribuindo para que todas fiquem mais "arejadas". Por essa razão, hoje, o socialismo não pode deixar de ser pluralista.

Sabemos todos que o pluralismo tem feito parte das flores cultivadas, tradicionalmente, nos jardins do liberalismo. E talvez seja por ter uma proveniência suspeita que ele tenha encontrado tantas dificuldades para ser reconhecido como valor pelas forças mais aguerridas da esquerda. Nas condições em que estamos travando a nossa luta política, neste fim de século (neste fim de milênio!), seria rematada tolice da nossa parte deixá-lo entregue, de mão beijada, aos nossos adversários. Precisamos assimilar o pluralismo. Precisamos, sem medo, mostrar aos outros e a nós mesmos que somos capazes de ser pluralistas. O pluralismo, com certeza, vai nos permitir gerar novas energias. E vai criar condições para demonstrarmos que, afinal, podemos defender todas as liberdades efetivamente humanas muito melhor do que os liberais.

Leandro Konder é professor de Filosofia da UFF e da PUC-RJ