Céticos e cínicos do mundo inteiro reverenciam, no altar da modernidade, o mais leve insustentável ser a desmanchar-se no ar: o Indivíduo. Ali, no mesmo local onde também se imolou a História, condenada a um fim irremediável, incensa-se o mercado, o supremo demiurgo de todas as delícias terrenas. O socialismo está morto, viva o capitalismo.
Mas a orelha do último livro está cheia de outras novidades: acabou a luta de classes, esquerda X direita são expressões anacrônicas, desprovidas de conteúdo ou significado. O que conta, mesmo, é a modernidade.
Novos "valores" (muitos deles com o bolor do passado escondido pelas fantasias do presente) ditam a moda. Estamos vivendo um estágio em que, para usar a expressão de Mario Benedetti, prevalecem o "descrédito do compromisso" e a "rentabilidade da indiferença". Ser de esquerda virou out. São tempos de evasão e de escapismo.
Toda esta voga tem uma matriz: a da supremacia do capitalismo como forma superior de organização da sociedade, provada e comprovada com o desmonte dos países do "socialismo real", na Europa do Leste, na Ásia, na África. E sua lógica intrínseca de envolvimento, de disputa ideológica, vai na direção de rebaixar a utopia socialista, de ridicularizar as possibilidades de alternativas revolucionárias e de retirar a legitimidade da esquerda, desmoralizando-a pela associação às fracassadas experiências do Leste.
Apesar de todo esse movimento propagandístico, entendemos, como o velho Unamuno, que "vencer não é convencer; conquistar não é converter". Por isso, acreditamos não só que há muito espaço para a ação da esquerda, como também que o futuro da sociedade brasileira depende do que fizerem, desde agora, os democratas, os progressistas, os socialistas enfim, este amplo campo popular que consideramos à esquerda. E quando nos referimos à esquerda, falamos daquela que tem compromissos libertários, tradição democrática, espírito crítico e, portanto, é radicalmente antidogmática.
É esta esquerda - que no Brasil tem o PT como sua mais representativa expressão - a responsável por dar respostas aos desafios presentes neste foral/início de século.
E o principal deles, que se coloca com mais urgência no horizonte, é o de impedir que o militarismo, a pobreza, o racismo, as várias formas de totalitarismo, o apartheid político do Sul sejam inevitáveis, inelutáveis, como pretendem os partidários do irracionalismo na teoria.
O papel da esquerda é combater este futuro que se desenha, opondo a ele a atualidade do socialismo, como forma alternativa de organização social, que se constrói a partir da luta dos "de baixo". O Brasil é um bom exemplo. Os cenários atuais apontam para a acentuação das disparidades sociais, econômicas, políticas e culturais. Não graças a uma fatalidade qualquer. Mas porque a elite dominante no país há séculos - mesmo que as trocas de guarda tenham mudado as caras e as roupas - não prima pela defesa do interesse público, e sim pela cupidez e pelo interesse próprio. Só um forte movimento social inspirado numa sociedade alternativa, ou que seja galvanizado por forças nela inspiradas, será capaz de oferecer um futuro diferente ao que se prenuncia.
É preciso, porém, não ignorar as dificuldades. De que situação parte hoje a esquerda para lutar por esta nova sociedade, que não está definida de antemão e nem o será pela História? Vivemos uma fase defensiva. Sofremos o impacto de uma das maiores derrotas impostas às forças socialistas desde que elas ganharam importância no mundo. Antes dessa, houve a decepção que se seguiu à bonapartização da Revolução Francesa; as derrotas de 1848; os milhares de mortos da Comuna de Paris; o apoio da social-democracia aos governos capitalistas na 1º Guerra Mundial; as derrotas na Alemanha, na Hungria, na Itália; a vitória de Franco na Guerra Civil Espanhola; a ascensão do nazi-fascismo; os primeiros anos da 2°- Guerra Mundial; o conflito sino-soviético; as invasões da Hungria e da Tcheco-Eslováquia; as guerras do Camboja e do Afeganistão; a invasão da Polônia...
O ocaso de um modelo
De todas, esta talvez seja a maior crise. Abala, simultaneamente, os dois ramos em que historicamente se fragmentou o movimento socialista. Basta ver a recente derrota da social-democracia na Suécia, uma espécie de URSS deles.
Este é o ponto de partida. Daí ser fundamental desenvolver uma análise histórico-crítica - e não uma contrição - das experiências do socialismo real, bem como das tentativas de reforma social-democrata. Devemos reconhecer que, naqueles países, não ocorreu simplesmente o ocaso de uma burocracia, mas o colapso definitivo de um modelo de estatização da política e da economia. Um caminho de construção de socialismo, constrangido, desde o nascedouro pelo atraso, pela reação dura e violenta das classes dominantes, pela luta de classes concreta e real travada em cada país e, sobretudo, pelas opções políticas e pelas posições teóricas das vanguardas políticas.
Na ofensiva, a direita proclama que o socialismo acabou. E os liberais concedem que, se o socialismo mostrou-se inviável como alternativa de sociedade, sua utopia, contudo, deve nortear os melhores propósitos do espírito reformista... Na esquerda (muitos, é verdade), há os que caem na prostração, desencantados e perplexos, começando a enxergar a banda esquerda do mundo como se estivesse salpicada de sangue dos pés à cabeça. Nós, entretanto, achamos que há muito sentido para a militância de esquerda, num mundo em que a maioria se desvia em direção ao "centro". Na política, vale a pena agir como na música: "levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima". Até porque um dos nossos principais objetivos é lutar pelo fim da exploração do capital.
Diante da exploração capitalista, não há o que tergiversar. Não é ela, afinal, a responsável pelas mazelas do Terceiro Mundo, pela miséria, pela desagregação social, pelas torturas e pela violência, pela falta de democracia? Diante disso a esquerda não pode se calar, enquanto lambe suas feridas.. A menos que queira, paralisada e chorosa, compactuar com aquilo que Giordano Bruno, em boa hora, classificou como "cultura do silêncio".
Na agonia de um século e no limiar de outro, o que resta de um ciclo histórico que se encerra e o que devemos levar conosco para o próximo período?
Antes de tudo, cabe reafirmar que a luta pelo socialismo é um elemento fundamental para civilizar o capitalismo. Mesmo onde se frustrou, apesar de todos os percalços que conheceu nesse século, a luta pelo socialismo possibilitou a constituição de sociedades que tentaram fugir das leis do capital, de seu jogo e de sua opressão. Ademais, forçou a burguesia a realizar concessões substanciais em vários países, consolidando um bloco hoje conhecido como o do "capitalismo avançado". Assim; bem ao contrário do que se diz atualmente, a luta de classes, a luta decidida e radical dos trabalhadores em defesa de suas reivindicações e de um projeto social, é vital para que o mundo seja, pelo menos, respirável. Como sublinhou o historiador Eric Hobsbawm, em artigo para a Folha de S. Paulo, "um mundo em que eles não têm medo dos pobres é um mundo horrível".
Outra lição a extrair é a de que o processo de luta por um mundo novo combina a luta cotidiana, as reformas parciais, com grandes comoções políticas, econômicas e sociais (ver, a propósito, o instigante artigo de César Benjamin, "Reformas e Revolução", em Teoria & Debate nº 15). Erram os que não compreendem o papel essencial das lutas do dia-a-dia, imaginando poderem simplesmente "assaltar os céus" num futuro pré-determinado. Mas igualmente se equivocam os que descartam o papel insubstituível das revoluções sociais, políticas, culturais e econômicas.
As grandes mudanças ocorrem quando milhões e milhões, simultaneamente e num curto espaço de tempo, conquistam seu lugar ao sol. Isto é revolução.
Liberdade Individual
Outra herança que a esquerda carrega, é o potencial construtivo, desenvolvimentista e racionalizante da ação coletiva e da propriedade coletiva. Por mais que se empenhem os ideólogos culturais do neoliberalismo não haverá lugar, numa sociedade complexa como a nossa, para a liberdade individual que não seja fundada na ação coletiva. Os bilhões de seres humanos que habitam o planeta só terão direito e condições de expressarem sua individualidade, e desenvolvê-la amplamente, quando sua ação coletiva arrancar este direito das minorias que, com base na propriedade privada, monopolizam o direito à individualidade.
Da mesma maneira, a propriedade coletiva, seja sob o capitalismo ou sob o socialismo real, mostrou não apenas seus limites, mas suas virtualidades. Basta olhar para o expressivo crescimento e para o peso específico - hoje, em plena onda neoliberal - da propriedade e do planejamento estatais no próprio capitalismo. Ou na capacidade que a propriedade estatal - ainda que não social e sob jugo burocrático demonstrou de impor uma lógica de atendimento às necessidades da maioria e não à lógica da acumulação do capital. Daí a necessidade de "privatização"...
Por fim, o ciclo que se encerra não sepulta a força das idéias marxistas. Nas suas múltiplas e contraditórias versões, as idéias desenvolvidas a partir da obra de Marx e Engels revelaram uma vitalidade superior à de qualquer outra teoria laica. Nem a vulgata stalinista foi capaz de impedir sua renovação e crítica permanente, condição para sua eficácia.
O marxismo - que assim não se chamaria pela vontade de seu inaugurado - ou os marxismos, ligaram sua sobrevivência e seu destino a um pedaço da sociedade, a uma base social. Propuseram-se, também, desde o início, a ser uma teoria global, não limitada a qualquer aspecto específico do real ou de um período determinado - um método mais do que uma teoria. Ademais, o marxismo só vicejou quando visto como um instrumento para a mudança social, um guia para a ação. Fala-se dos erros de concepção e previsão do marxismo e dos marxistas. Com efeito, foram muitos- e deveriam sê-lo, a menos que estivéssemos falando de uma religião, de uma fé codificada, que uma teoria transformada de antemão rejeita a fim de não se fossilizar.
Enquanto o marxismo segue sendo o instrumento fundamental para entender o capitalismo e traçar os rumos possíveis do socialismo, o que dizer do liberalismo e de todas as teorias sociológicas que brotaram e tiveram o seu funeral na própria academia?
No caso do Brasil, ingressamos neste novo período histórico com um saldo distinto daquele que descrevemos a nível internacional. E não se trata de nacionalismo ufanista, até porque não desconhecemos a conjuntura, num momento em que o governo Collor, mesmo enredado em suas contradições, tenta jogar a esquerda no gueto. O fato, porém, é que não vivemos uma década de descenso, mas sim de alta.
Não carregamos compromissos, nem somos herdeiros do que desabou no Leste Europeu - nem do socialismo real, nem da social-democracia. Muito embora, por conta de uma certa complacência nossa com o que ocorria por lá, possam nos atribuir uma desconfortável ligação. De qualquer modo, somos um dos poucos países do mundo com uma esquerda forte. Mais que isso, atuamos num país cuja base social é avançada o bastante para permitir a construção de uma nova sociedade e, talvez, atrasada o suficiente para despertar a ira e a indignação de milhões.
Talvez por isso tudo o PT detenha hoje uma posição privilegiada. No terreno das concepções, começamos antes que muitos a romper com os dogmas; outros quebraram a cara por nós nos últimos 70 anos. Além disso, nossa disposição é a de trilhar um caminho radicalmente democrático, pluralista, repelindo aqueles que se pretendem arvorar em donos da verdade.
Restam, como sempre restará numa sociedade dividida em classes, os constrangimentos da vida real, da luta política, que se ampliaram quando o desmonte do campo socialista deixou os Estados Unidos com as garras livres para atacar todos quantos desejam quebrar a lógica da exploração. Contra estes constrangimentos, não é a teoria que decide, mas a nossa força e a nossa vontade revolucionária. E, sobretudo, o apoio do povo, sem o qual nada virá. Conquistar este apoio, torná-lo hegemônico na sociedade, construir o futuro no presente, eis o papel da esquerda.
Rui Falcão é presidente do Diretório Municipal de São Paulo e editor do jornal Brasil Agora.