A participação da Central Única dos Trabalhadores em fóruns, conselhos e câmaras setoriais tem provocado um grande debate dentro e fora da Central. Essa polêmica, que vem de muito tempo, agudizou-se a partir do segundo semestre de 90, quando a CUT foi chamada a participar de uma mesa tripartite - o Fórum Nacional de Negociação. Negociação ou pacto? O debate acirrou-se. Para a maioria, a participação nesta mesa se dava nos marcos de uma negociação na qual a Central levaria sua pauta de reivindicações previamente deliberada em suas instâncias. Outras forças, contudo, buscaram caracterizar esta participação como uma absorção da CUT na construção de um Pacto Social. A Central estaria abrindo mão de conquistas dos trabalhadores e de sua capacidade de resistência em prol de um projeto de colaboração de classes, ou seja, a CUT violava além de resoluções de seus congressos, o princípio da independência de classe.
Este debate, no entanto, não é exclusivo da CUT. Ele está presente em grande parte das centrais de nosso continente, em especial naqueles países onde os governos tentam impor o chamado projeto neoliberal como saída para a crise. Extremamente enriquecedor, ele recoloca e atualiza grandes debates teóricos acerca da natureza e papel dos sindicatos e centrais sindicais e de suas relações com os partidos e, mais ainda, suas relações com outras instituições e movimentos da sociedade. A grande questão é saber se o papel do sindicato e da central sindical, enquanto direção e representação da classe trabalhadora, restringe-se à negociação do imediato (salário e condições de trabalho) ou se, para além desse imediato, é também da competência de uma central envolver-se com negociações amplas que dizem respeito à qualidade de vida da classe trabalhadora como um todo: nível de emprego, nível de renda, educação, saúde, habitação, transportes, discriminação sexual, racial. Questões vinculadas à construção e exercício da cidadania.
Diante das transformações que estão ocorrendo no mundo neste final de século, está havendo uma redefinição do trabalhador como classe, na sua dimensão total como assalariado, produtor, consumidor e cidadão, o que requer articular o movimento sindical com os movimentos sociais.
Essa questão implícita na polêmica de negociação ou pacto foi, sem dúvida. o grande divisor de águas do 4° Concut. Embora o Congresso tenha adotado uma resolução - de que a CUT deve participar de fóruns bipartites ou tripartites sempre que estiverem em jogo interesses restritos ou amplos da classe trabalhadora -, isto não resolveu de forma definitiva o problema. Passado, sete meses, todas as vezes que nos reunimos, voltamos ao tema. Ora é a participação no Movimento Opção Brasil, ora é a participação na câmara setorial do complexo automotivo, ora no fórum capital-trabalho, nas câmaras setoriais de São Paulo e daí por diante. O debate se restringe à questão de mérito: "ir ou não ir".
A discussão nesses termos é pobre. O argumento de que a participação em fóruns leva à substituição da mobilização pela ilusão na negociação não se sustenta teoricamente e não encontra respaldo em nenhum exemplo concreto. Todo dirigente sindical e a CUT sabem que cada conquista é fruto de mobilização. Ninguém tem ilusão e, se o "não ir" parece assegurar à Central o princípio da independência de classe, na verdade esconde toda uma insegurança ou desconfiança na capacidade da Central e seus dirigentes de, em qualquer espaço, defender os reais interesses dos trabalhadores.
Não parto do pressuposto de que a CUT deve participar de todo e qualquer fórum, assim como não aceito de antemão que participar de qualquer fórum tripartite é aderir a um pacto social. A discussão necessária deve se darem torno da relação do fórum em questão com os objetivos, as estratégias e táticas da Central. É esta relação que define a nossa participação (ou não) em qualquer espaço.
Aprofundando a análise feita na plenária de agosto de 90, que apontava a necessidade de respostas globais diante da crise (pois não bastava só reivindicar, era necessário discutir as grandes questões; não bastavam as lutas isoladas por categorias, eram necessárias ações conjuntas centralizadas pela CUT), o 4º Concut estabeleceu com clareza os objetivos e estratégias da Central ao definir "...que só é possível superar a instabilidade econômica e social e alcançar novos padrões de distribuição de renda e uma nova qualidade de vida para os trabalhadores a partir de soluções globais que permitam o combate ao projeto neoliberal e a construção coletiva de um projeto alternativo no campo democrático e popular. A CUT deve intervir decisivamente nesse debate, incorporando novos temas, atualizando seu discurso e adotando uma prática para o conjunto da classe trabalhadora".
A partir dessas premissas, o congresso definiu como parte de sua estratégia:
"a) Combinar as lutas por categorias com as mobilizações gerais assumindo o papel de sujeito social nas lutas pelos interesses econômicos, sociais e políticos da classe trabalhadora, não se fechando no corporativismo nem no economicismo.
b) Fixar parâmetros básicos para as políticas de abrangência nacional (política econômica, industrial, agrícola, energética, educacional, habitacional, de saúde e previdência etc), especialmente no caso daquelas que condicionam os níveis de emprego, salário e renda do trabalhador. (...)
c) Avançar na articulação com os setores democráticos e populares para aprofundar a democracia construindo coletivamente uma nova hegemonia e formulando uma alternativa de desenvolvimento com distribuição de renda (...)".
Fica bastante claro que a CUT explicitou na sua estratégia a necessidade de ampliar os espaços de sua intervenção ao encarar-se e encarar os trabalhadores como sujeitos sociais. A partir daí, decidiu combinar sua prática reativa/defensiva com uma postura afirmativa/ propositiva, de participação no processo de conquista e construção da cidadania. Decisivo para a Central é, assim, qualificar sua intervenção nesses espaços. Por isso, o objeto de discussão deve ser o caráter e a natureza de cada fórum, como participar, até quando e, em especial, o que propor. O essencial é o debate sobre o conteúdo da intervenção cutista. A qualidade e a abrangência das propostas da CUT é que vão credenciá-la e a cada sindicato cutista como sujeito social, rompendo com o corporativismo e o economicismo.
Fundamental é a campanha salarial dos metalúrgicos de São Bernardo, Santo André, Campinas etc. para garantir a reposição das perdas. Mas, o que fazer com a perda crescente dos postos de trabalho no setor metalúrgico? A resposta a esta pergunta exige que se ultrapasse corporativismo e economicismo. Eis por que, condizente com a estratégia da CUT, esses sindicatos participaram da câmara setorial do complexo automotivo.
Essa câmara tratou de garantir o nível de emprego e de salário dos trabalhadores do setor num momento de extrema recessão e paralisação das linhas de produção. Mais ainda, o resultado da negociação nessa câmara foi estendido aos trabalhadores de outras bases sindicais não filiadas à CUT, e até mesmo da Força Sindical. E, como perguntar não ofende, quem, mais uma vez, se credenciou como representante da classe trabalhadora como um todo?
Além desses resultados imediatos, pela primeira vez os trabalhadores brasileiros estudaram (com apoio técnico de órgãos de assessoria como o Dieese e o Desep) o setor em que trabalham e formularam propostas para sua reestruturação nos marcos de um projeto para o país. São os trabalhadores assumindo decisivamente seu papel de sujeitos aptos a assegurar a direção dos rumos do país.
Se a Convergência Socialista rotula a participação da CUT na câmara setorial do complexo automotivo como entreguismo, conciliação de classes, cooptação dos dirigentes sindicais e esvaziamento das lutas diretas das massas (leia-se, como traição) é porque ela não entendeu a estratégia da Central, ou melhor, não gostou e, como é de sua prática, não deseja cumpri-la.
A participação na câmara setorial do complexo automotivo permitiu acumular uma experiência que, hoje, vem balizando a atuação de outros setores como, por exemplo, os aeronautas e os têxteis. No entanto, traz alguns riscos se não houver uma coordenação visando equacionar os interesses dos setores envolvidos com os do conjunto dos trabalhadores. O papel da CUT é buscar não só uma articulação política das iniciativas como também a definição de parâmetros mais amplos na linha de um projeto alternativo de reestruturação das atividades econômicas.
A CUT, pela representatividade conquistada nestes oito anos, é chamada a participar de fóruns amplos da sociedade. Quando, no fórum capital-trabalho, propõe e defende a melhoria e a universalização do ensino público e gratuito, ela está intervindo estritamente em acordo com sua estratégia e ampliando seu papel de interlocutora da classe trabalhadora junto à sociedade. Que prejuízo trará para a CUT e para o conjunto dos trabalhadores se o "inexpressivo" MOB - Movimento Opção Brasil (que "junta" CUT, CGT, PNBE, entidades estudantis, intelectuais, partidos como PT, PSDB. PSB etc.) - assumir os eixos da proposta cutista sobre a Previdência Social e, junto com a CUT, defendê-los no Congresso Nacional?
Os processos de reestruturação da economia mundial e a formação de megablocos exigiram que a CUT e as centrais do Cone Sul se articulassem visando uma intervenção coordenada na formação do Mercosul (Mercado do Cone Sul). Porém, só tardiamente essas centrais assumiram a tarefa de participar ativamente desse processo. Nós, CUT, o fizemos um pouco por inércia. O 4º Concut aprovou, sem discussão, a proposta de resolução do grupo de trabalho do Mercosul. Mas no Congresso do DNM - Departamento Nacional dos Metalúrgicos surgiram teses (outra vez, Convergência Socialista, O Trabalho) contrárias à participação nos fóruns do Mercosul, defendendo que a CUT deve retirar-se imediatamente porque estaria legitimando um processo que interessa à classe dominante. Embora a discussão nos fóruns da Central esteja aquém da necessidade de resposta, retirar-se deste fórum significa permitir que empresários e governos assinem seus protocolos e os imponham, cabendo ao movimento sindical resistir posteriormente à perda de suas conquistas. É a manutenção da prática reativa.
A intervenção da CUT, com suas propostas, permite, no mínimo, negociar mecanismos de proteção ao trabalho. A CUT não tem o direito de se colocar como espectadora desse processo porque aí estão em jogo interesse diretos dos trabalhadores (e não só dos brasileiros).
Há também, ainda que em menor grau, questionamentos em relação à participação da CUT nos conselhos tripartites (FGTS, FAT, Cadastro, Seguridade, Previdência etc.). Tais conselhos, inscritos na Constituição de 88, são resultado da luta que travamos para impor ou ampliar a participação dos trabalhadores no controle dos fundos sociais, constituídos inclusive com seus próprios recursos.
Nossa participação no Conselho Curador do FGTS, por exemplo, tem-nos permitido não só exercer o papel fiscalizador ao investigar e denunciar os atos de corrupção e clientelismo político no uso desse fundo como ampliar nosso horizonte de intervenção junto aos movimentos sociais (no caso, o movimento popular por moradia) e outras instituições da sociedade e do Estado (Tribunal de Contas da União, Congresso Nacional, Procuradoria Geral da República, Poder Judiciário etc.)
O saldo desta participação não é só a repercussão imediata na mídia, mas a capacitação da CUT para formular propostas concretas e viáveis de solução dos problemas dos trabalhadores vinculados ao exercício de sua cidadania. Hoje, ninguém fala do FGTS sem nos consultar. Isto resulta da credibilidade alcançada não em função apenas da postura crítica, mas principalmente da qualidade de nossas propostas.
Precisamos sim avançar, articular nossa atuação no Conselho ao cotidiano do sindicato, seja como organismo fiscalizados da arrecadação, seja como orientador de cada trabalhador, como sujeito social que defende em todos os aspectos os interesses dos trabalhadores.
Há instrumentos para que a entidade sindical seja este agente e foi a atuação decisiva da CUT no Conselho que garantiu ao sindicato o poder de entrar na empresa sem procuração e ter acesso à folha de pagamento e documentos comprobatórios do recolhimento do FGTS. Isso pode e deve ser ampliado para a Previdência, o FAT e todos os encargos sociais. Na porta da fábrica o dirigente não pode só falar do salário. Deve falar de tudo que diz respeito às condições de vida de sua base. O dirigente sindical tem que repensar os limites de sua atuação. É difícil, mas necessário.
A CUT vem realizando um planejamento estratégico situacional, para transformar suas resoluções em ações concretas a partir do levantamento de seus problemas. Toda a direção nacional da CUT (108 pessoas) tem participado desta atividade. Toda a direção executiva da Central tem tarefas decorrentes deste trabalho. O primeiro problema apontado foi nossa dificuldade no combate ao projeto neoliberal. Uma das operações indicadas para superação do problema foi a necessidade de criação de um fórum democrático-popular, visando a elaboração de uma plataforma de atuação comum, na perspectiva de um projeto alternativo de sociedade.
Este é um espaço privilegiado de atuação da Central. Assim, sem entrar na discussão se a participação nos fóruns é tática ou estratégica, este fórum tem como objetivo a construção de uma nova hegemonia na sociedade, como deliberamos no 4° Concut. Isso é estratégico para a Central.
Hoje, tais movimentos sociais, populares, democráticos e as entidades que têm essa natureza se caracterizam pela fragmentação. Embora todos esses movimentos (aposentados, meninos e meninas de rua, moradia, educação, saúde, previdência, direitos humanos, combate à violência etc) tratem de uma mesma questão de fundo - a luta pela construção da cidadania e, portanto, das bases de uma sociedade democrática -,eles se apresentam para a sociedade de forma segmentada, setorizada e atomizada. Não se explicita o que está na base de suas reivindicações imediatas e/ou específicas.
A construção de uma nova sociedade passa pela construção de um projeto democrático-popular, em contraposição explícita ao projeto neoliberal que coloca o mercado como único regulador das relações sociais. A construção de um projeto que eleja a própria sociedade como reguladora das relações sociais, e cujo centro de atuação seja a extensão dos direitos da cidadania a todos os indivíduos, só se efetivará pela construção dessa nova hegemonia da qual a CUT se coloca como parte. Se imaginarmos que isso se dará sem a intervenção consciente e decisiva dos atores, por espontaneísmo e voluntarismo, vamos morrer mais uma vez na praia. A construção dessa nova hegemonia só se viabilizará se todos esses movimentos, sem abandonar suas especificidades, forem capazes de romper com sua atomização, e, a partir daí, construir a unidade de ação com base numa plataforma e num projeto comum. É este o desafio colocado para a CUT e os setores comprometidos com esse projeto, que deve ser fruto de um esforço coletivo, plural, em que a unidade não anula as diversidades.
Quando a CUT coloca em sua estratégia assumir o papel de sujeito social e construir coletivamente uma nova hegemonia, significa que ela assume responsabilidades que transcendem a defesa imediata do emprego e do salário. Sem medo de expor-se, ela assume o desafio de elaborar propostas gerais, de apresentá-las e debatê-las nos espaços públicos, em fóruns bi ou tripartites, circunstanciais ou permanentes da sociedade civil.
Considerando que esses fóruns têm naturezas diversas e até mesmo conflitantes, a CUT deve saber definir seus limites e, portanto, as metas a serem alcançadas em cada um.
Mais importante que as conquistas imediatas e parciais (como no FGTS ou na câmara do setor automotivo), a CUT tem conseguido apresentar-se como a única central sindical comprometida com a defesa intransigente dos interesses dos trabalhadores em todos os espaços onde intervem. Esta intervenção deve ocorrer em todos os espaços onde estão em jogo os interesses dos trabalhadores em sua abrangência total de cidadãos.
A conquista da cidadania é um caminho longo, complicado, difícil, conflitante. Mas tem que ser percorrido. Sem atalhos.
Rosiver Pavan é diretora da Apeoesp e secretária nacional de Políticas Sociais da CUT.