EM DEBATE

O Instituto Cidadania, ONG que tem entre seus coordenadores Luiz Inácio Lula da Silva, lançou para discussão o texto "Um outro Brasil é possível", assinado por destacados economistas do PT. Bastante polêmico, o documento vem provocando uma série de discussões não só no PT, mas na sociedade em geral e até mesmo em meios empresariais. Teoria e Debate abra suas páginas para opiniões bastante conflitantes se manifestem a respeito da proposta.

Eixos de um novo modelo

Um programa anacrônico

Eixos de um novo modelo

 

Este artigo é uma síntese do documento "Uma outro Brasil é possível", elaborado por Aloizio Mercadante, Bernard Appy, Eduardo Suplicy, Gerson Gomes, Guido Mantega, Jorge Mattoso, José Graziano da Silva, Marco Aurélio Garcia, Maria da Conceição Tavares, Paul Singer, Reinaldo Gonçalves, Ricardo Carneiro, Tereza Campelo e Wilson Cano

O documento preliminar "Um outro Brasil é possível", formulado no âmbito do Instituto Cidadania, é apenas uma contribuição que visa a estimular o debate de questões relevantes, em especial para a elaboração do programa de governo do PT. Como é evidente, o processo de elaboração deste último envolverá ampla consulta e discussão no partido e estará subordinado às decisões das instâncias partidárias.

A proposta de diretrizes político-econômicas representa uma ruptura versão das prioridades da política econômica, que passa a ter como referência fundamental as necessidades básicas da maioria da população e o crescimento sustentado da economia e do emprego; na mudança do padrão de crescimento, cujo núcleo dinâmico se desloca para a ampliação do mercado interno em base à expansão do consumo de massas, principalmente mediante o aumento da oferta dos serviços públicos de uso universal e dos bens básicos da cesta de consumo popular; na reorientação do modelo de financiamento da economia, com o fortalecimento dos mecanismos internos de financiamento do desenvolvimento e a redefinição do papel e importância do investimento estrangeiro; na modificação do padrão de intervenção do Estado na economia, reconstruindo, dentro de uma visão inovadora, seu papel de regulação e apoio a ações estratégicas para o desenvolvimento nacional.

De acordo com esta perspectiva, a proposta está estruturada em torno de três eixos estratégicos articulados, que conformam o embrião de um novo projeto de desenvolvimento.

O social como essência

Da modernização conservadora impulsada pelo regime militar à destruição não criadora do neoliberalismo periférico contemporâneo, os modelos de política econômica aplicados no país sempre relegaram o social a um plano secundário e residual. Isso se reflete na permanência de índices inaceitáveis de pobreza e de desigualdade na distribuição da renda e da riqueza, que têm tendido a agravar-se nos anos recentes com a internalização, associada ao processo de globalização, de novos vetores de exclusão social.

A reversão desse quadro é o ponto de partida para a ampliação do mercado interno e estabelecimento de uma nova dinâmica de crescimento. Ela, no entanto, não depende somente da retomada do ritmo de crescimento da economia ou da manutenção de um certo grau de estabilidade dos preços internos. Embora a estagnação e o descontrole da inflação tendam a penalizar os segmentos com menor capacidade econômica, a miséria e a desigualdade, na nossa experiência, têm aumentado também em períodos de crescimento ou de relativa estabilidade de preços.

A constatação anterior sugere o óbvio: para além da inflação (transformada pelos ideólogos do neoliberalismo na vilã da exclusão social) e do crescimento do PIB, existem fatores estruturais – as relações de propriedade da terra e do capital, as relações de trabalho, as modalidades de organização e de integração dinâmica do sistema produtivo, o caráter do Estado e seus reflexos nos sistemas de tributação e de utilização dos recursos públicos, por exemplo – que determinam, em última instância, os padrões de apropriação e distribuição da renda e da riqueza. É precisamente sobre estes fatores que devem incidir as políticas redistributivas para viabilizar o crescimento sustentado – a base para a materialização de todos os demais objetivos econômicos e sociais – e torná-lo compatível com a elevação do emprego e a melhoria das condições de vida e de trabalho da maioria da população, num ambiente de relativa estabilidade de preços.

Desta perspectiva, a transformação do social no eixo do desenvolvimento não significa somente revalorizar, nos planos de governo, os chamados aspectos sociais – o combate à fome, a educação, a saúde, o saneamento básico, a habitação e a cultura. Significa conceber os programas de investimento nesses setores como verdadeiros vetores de crescimento e transformação da economia e, fundamentalmente, subordinar toda a dinâmica econômica aos objetivos e prioridades macro-sociais.

Estes objetivos e prioridades no atual estágio são basicamente: a inclusão de 56 milhões de brasileiros, subcidadãos que sobrevivem em condições de extrema precariedade, sem acesso aos bens e serviços essenciais a uma vida minimamente digna; a preservação do direito ao trabalho e à proteção social de milhões de assalariados, pequenos e médios produtores rurais e urbanos, inativos de baixa remuneração e jovens que buscam ingressar no mercado de trabalho, todos ameaçados pelas tendências excludentes e concentradoras do atual modelo econômico; e a universalização dos serviços e direitos sociais básicos, com a elevação progressiva da qualidade dos serviços prestados e o crescente envolvimento da população na sua gestão.

Avançar em direção a estes objetivos implicará enorme e continuado esforço de crescimento econômico e de ampliação da capacidade de geração de emprego, de expansão e redirecionamento do gasto público e de democratização dos direitos de propriedade e utilização da terra e do capital, no campo e nas cidades, inclusive por meio do fomento da economia solidária e outras formas criativas de associação de trabalhadores e pequenos produtores independentes. Implicará também elevar progressivamente o piso de remuneração da força-de-trabalho, para transformar o salário-mínimo em um salário básico compatível com a satisfação das necessidades essenciais de cada família.

No entanto, a materialização de mudanças na estrutura de distribuição da renda e da riqueza só será possível se as medidas redistributivas adotadas forem acompanhadas por transformações na produção e no investimento que as orientem para um amplo mercado de consumo de massas. Ou seja, os movimentos de expansão do consumo e da produção devem ser sincronizados e implementados de forma progressiva e sustentável para limitar a geração de pressões sobre os preços e as importações e favorecer a internalização dos efeitos retroalimentadores da expansão da demanda sobre o emprego, a produção e os investimentos.

A adequação da capacidade produtiva existente ao aumento do potencial de consumo de amplos setores da população envolve: a ampliação da produção dos bens de consumo popular, em particular os alimentos, cuja elasticidade da demanda frente a políticas redistributivas, a níveis baixos de renda, costuma ser extremamente elevada; a organização do abastecimento desses bens, particularmente crítica no caso dos alimentos, é fundamental para assegurar a eficácia do esforço de aumento da produção, o qual requer, por sua vez, a expansão e integração da infra-estrutura de serviços básicos; e a expansão seletiva da oferta de bens produzidos pelos setores mais modernos e dinâmicos da economia, dado que uma parte do incremento da demanda incidirá sobre bens finais manufaturados mais complexos e componentes de suas cadeias produtivas, com desdobramentos sobre outros segmentos. Além disso, as políticas redistributivas e de emprego levarão também a um aumento de escala dos setores de bens tradicionais, como têxteis, calçados e móveis.

Este padrão de crescimento afetará relativamente menos as restrições externas existentes, dado que o coeficiente de importações implícito na expansão da oferta de bens de consumo popular e serviços de consumo coletivo é inferior ao coeficiente correspondente ao atual padrão médio de consumo. Adicionalmente, um aumento da escala de produção de bens de uso generalizado cria também condições de melhoria da competitividade externa dessas indústrias. Estes aspectos ganham ainda maior relevância dentro do quadro de restrição cambial que o país terá que enfrentar no futuro imediato.

<--break->A redução da dependência

As políticas de abertura comercial e financeira inauguradas na administração Collor e radicalizadas pelo governo FHC, cujos efeitos foram amplificados pela sobrevalorização da taxa de câmbio no período 1994/98, agravaram extraordinariamente a crônica dependência da economia brasileira com relação ao capital estrangeiro. Por um lado, destruíram o saldo comercial, elevaram o coeficiente de importações da economia e expandiram gastos com serviços não financeiros, principalmente turismo e fretes; pelo outro, aumentaram o passivo externo – devido à expansão do endividamento externo privado e do crescimento do estoque de capital estrangeiro – e seus encargos financeiros, sem gerarem, em contrapartida, efeitos relevantes em termos de aumento da capacidade produtiva e de exportação do país.

Ao elevar as necessidades de financiamento externo a níveis críticos e abolir as restrições ao movimento de capitais, estas políticas transformaram a dependência do capital estrangeiro em um mecanismo de internalização da instabilidade do mercado financeiro globalizado e de subordinação do funcionamento da economia nacional às prioridades e interesses dos credores e investidores externos. Nesse contexto, as mudanças no cenário internacional e as debilidades estruturais internas convergem no sentido de transformar a recessão no instrumento privilegiado de ajuste da economia.

Modificar este padrão de inserção internacional e recuperar os espaços de autonomia na gestão da economia nacional implica desenvolver políticas dirigidas a reduzir de maneira significativa a dependência e a vulnerabilidade externas, que constituem, na atualidade, a restrição fundamental para a retomada e sustentação do crescimento econômico.

O equacionamento dessa questão transcende o alcance das políticas tradicionais de ajuste macroeconômico e de suporte ao funcionamento espontâneo dos mecanismos de mercado. Ela se insere necessariamente dentro de uma estratégia de desenvolvimento agrícola e industrial, que possibilite a articulação das ações do Estado e do setor privado voltadas para a expansão da capacidade e a integração e diversificação do sistema produtivo, a construção das bases tecnológicas de sustentação do desenvolvimento e o aumento da produtividade sistêmica da economia brasileira. Requer também a simultânea reconstrução do sistema de financiamento de longo prazo, que viabilize o novo ciclo de investimentos, tanto em infra-estrutura quanto na produção interna de bens de capital.

Nesse contexto macroestrutural, as políticas específicas orientadas à redução da vulnerabilidade e da dependência externa se projetam em cinco dimensões:

a) a recuperação do saldo comercial e a redução do déficit na conta de serviços do balanço de pagamentos, com vistas à diminuição acentuada do déficit das transações correntes, hoje na casa dos 5% do PIB. Particularmente relevante neste âmbito são o estímulo à expansão e à substituição das exportações – enfatizando nos diversos setores a agregação interna de valor e a elevação do conteúdo tecnológico dos bens exportados –, o melhoramento e racionalização da estrutura de transporte, armazenamento e comercialização que oneram a competitividade da produção exportável, a re-substituição de importações, especialmente no segmento de bens de consumo nos quais o país gasta cerca de 12 bilhões de dólares por ano, e o aproveitamento de nossas potencialidades nas áreas de turismo e indústria naval.

b) a correção dos desequilíbrios oriundos da abertura comercial, por meio da revisão da estrutura tarifária e criação de proteção não-tarifária para atividades e setores considerados estratégicos. Nessa mesma linha se insere a política de defesa comercial ativa, destinada a proteger o país contra práticas desleais de concorrência e agressões econômicas e a preservar os interesses nacionais nas transações bilaterais e nas relações com os organismos multilaterais. O aumento da proteção à produção nacional não implica o fechamento da economia nem deve promover a ampliação do grau de monopólio e das margens unitárias de lucro das empresas instaladas no país.

c) consolidação da vocação de multilateralidade do comércio exterior brasileiro mediante políticas direcionadas à diversificação de mercados, ao fortalecimento de esquemas de integração comercial e econômica entre os países latino-americanos e do Caribe, ao estabelecimento de programas de cooperação econômica e tecnológica com potências emergentes como Índia, China, África do Sul e Rússia, à desconcentração e diversificação do setor exportador e, finalmente, ao estabelecimento de alianças específicas com empresas de países europeus e asiáticos para uma política qualificada de re-substituição de importações.

d) adequação da política relativa ao capital estrangeiro às diretrizes e prioridades do novo modelo econômico. Isto implica implantar mecanismos de regulação da entrada de capitais especulativos e reorientar o investimento direto externo com critérios de seletividade que favoreçam o aumento das exportações, a substituição de importações, a expansão e integração da indústria de bens de capital e o fortalecimento de nossa capacidade endógena de desenvolvimento tecnológico. É essencial que o capital estrangeiro se vincule à criação de capacidade produtiva adicional e compense o aumento das remessas de lucros, dividendos e royalties com seu impacto positivo sobre o saldo comercial.

e) regulamentação do processo de abertura do setor financeiro. A redução da fragilidade externa da economia envolve também a eliminação de brechas legais que facilitam a realização de operações financeiras não transparentes com o exterior, a revisão dos esquemas de captação de recursos utilizados pelo sistema bancário para operações de arbitragem com títulos públicos e a regulamentação da participação estrangeira no sistema financeiro nacional.

A operacionalização dessas políticas permitirá, ao longo do tempo, criar condições para a implantação de um novo padrão de inserção internacional. Isso, no entanto, envolve, numa perspectiva de futuro, uma questão essencial, que perpassa todas as dimensões citadas: a definição da posição brasileira frente à atual proposta de conformação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca).

No plano das trocas comerciais, a assimetria de recursos, capacidade tecnológica, escalas de produção, sistemas de proteção anulam as eventuais vantagens da expansão do intercâmbio com os EUA, inclusive porque, no melhor dos casos, esta tenderia a reforçar nossa especialização em atividades tradicionais de baixo conteúdo tecnológico. Mas a Alca é muito mais que uma proposta de acordo comercial, abrangendo praticamente todos os aspectos chaves da economia – tais como a desregulamentação dos fluxos de capital, a proteção aos investimentos estrangeiros, a abertura dos serviços – inclusive nas áreas de cultura e comunicação – e das compras governamentais ao capital estrangeiro, a regulamentação da propriedade intelectual. Ficam de fora apenas o mercado de trabalho e o acesso às tecnologias monopolizadas pelas corporações e pelo Estado norte-americano. Neste sentido, a adesão a este acordo representará, de fato, o aprofundamento do movimento de abertura e desregulamentação econômica e financeira em curso, que conduziu ao debilitamento político do Estado brasileiro, à desnacionalização e à fragilização de sua economia e ao agravamento da questão social.

Nestas condições a Alca não é uma questão de prazos ou de eventuais vantagens nesse ou naquele setor. Tal como está proposta, é um projeto de anexação política e econômica da América Latina, cujo alvo principal, pela potencialidade dos seus recursos e do seu mercado interno, é o Brasil. O que está em jogo, então, A desprivatização do Estado

A concepção do Estado como um ente subalterno aos desígnios do mercado teve diversas implicações. Deslocou para o plano privado decisões e funções de natureza pública, transformou serviços públicos de caráter universal em mercadorias, levou à desregulamentação de atividades essenciais de infra-estrutura, produziu um enorme descaso pelo social e reduziu o horizonte das preocupações econômicas aos aspectos monetários e fiscais de curto prazo, ignorando os problemas estruturais e deixando exclusivamente a critério do mercado, como se esse fosse capaz de fazê-lo, os investimentos necessários à alavancagem do desenvolvimento a longo prazo da economia.

A implementação do ideal do "Estado mínimo" – eixo central da matriz ideológica neoliberal – não significou restringir a intervenção do Estado na economia, mas sim modificar substancialmente seu caráter. Esta, que em verdade ampliou seus alcances e seu grau de arbítrio, passou a concentrar-se fundamentalmente na criação de espaços de expansão e lucratividade para as atividades privadas e na preservação das condições de reprodução do capital financeiro globalizado.

Uma das principais conseqüências dessas políticas foi a desestruturação do Estado brasileiro e a limitação da sua autonomia na formulação e gestão da política econômica. Isso se deu por meio de dois vetores: a deterioração de sua base financeira e de sua capacidade operacional e de investimento, resultante dos efeitos das políticas de abertura e desregulamentação radicais da economia; e o esvaziamento de suas funções de apoio e orientação do desenvolvimento, decorrente da supervalorização do papel do mercado na direção e regulação da economia.

A dependência de capitais externos e a manutenção de uma taxa de juros extremamente elevada, resultantes daquelas políticas, tiveram impactos destrutivos sobre as finanças públicas, produzindo um endividamento sem precedentes do Estado e transformando os juros no principal vetor do déficit público, embora a arrecadação de impostos e a carga tributária tenham se expandido substancialmente no período 1995-2000. As políticas de ajuste adotadas no marco dos acordos com o FMI não eliminaram os vetores do endividamento mas implicaram priorizar o pagamento dos encargos financeiros da dívida pública, com sacrifício dos investimentos em infra-estrutura e dos gastos sociais do Estado.

Nossa proposta supõe uma modificação radical desse quadro, que se projeta em três planos interligados:

• reconstrução da capacidade estatal de regulação e suporte ao desenvolvimento. Um novo padrão de intervenção do Estado na economia inclui formas de coordenação público-privada diferentes tanto do modelo da fase desenvolvimentista quanto da atual situação de descoordenação e intervenção ad hoc. O primeiro ponto da ação do Estado refere-se ao ataque à pobreza e ao desemprego, e à busca efetiva de uma melhor distribuição da renda e da riqueza, tarefa para a qual o mercado é reconhecidamente incapaz. O compromisso fundamental do Estado é com o desenvolvimento, o resgate da dívida social e a universalização dos serviços básicos. O Estado deverá desempenhar também um papel estratégico nas atividades de infra-estrutura, financiamento, e ciência e tecnologia, centrais para a criação de externalidades e aumento da eficiência sistêmica. Além disso, o Estado não pode limitar as suas ações a administrar o curto prazo e as questões emergenciais, mas deve pautar-se por uma visão estratégica, articulando interesses e coordenando investimentos públicos e privados que desemboquem no crescimento sustentado. Isto implica reativar o planejamento econômico para assegurar um horizonte mais longo para os investimentos e implantar políticas ativas setoriais e regionais. Ao investimento público e estatal caberá a tarefa de ampliar a oferta de bens públicos, remover os obstáculos ao investimento privado e induzi-lo quando for necessário.

• reversão da fragilidade fiscal. A consistência da política fiscal é uma pedra angular de sustentação do novo modelo. Ela significa, antes de tudo, a preservação da solvência do Estado, entendida como um limite de comprometimento das receitas com o pagamento de juros da dívida pública, e de sua capacidade de realizar políticas ativas e coordenadas de gasto público. A perspectiva de colocar o eixo do desenvolvimento na questão social exigirá uma revisão completa das atuais políticas que colocam a dívida financeira e seus credores como a prioridade número um do Estado brasileiro. Exigirá também a realização de uma reforma tributária ampla, baseada em critérios de eficácia arrecadatória e justiça fiscal, que desonere a produção, reduza os tributos sobre os assalariados e a classe média e amplie a base de arrecadação reduzindo as brechas para a evasão e a sonegação fiscais. Dado o objetivo de manter a solvência do Estado, é necessário preservar o papel anticíclico e estimulador do crescimento que pode desempenhar o gasto público, bem como resgatar seu poder redistributivo. O equilíbrio das finanças públicas pode ser alcançado por meio da maximização da taxa de crescimento do PIB e da estabilidade macroeconômica. Para esta última pode contribuir a redução da fragilidade externa, que amplia a flexibilidade no manejo da taxa de juros interna e, conseqüentemente, abre espaço para a redução dos custos de financiamento da dívida pública.

• desenvolvimento de mecanismos de participação democrática na gestão estatal. Nosso projeto de nação tem a opção clara por uma sociedade solidária e não predatória e excludente. Queremos superar o processo de despolitização das relações sociais, no qual o social é substituído pelo econômico e o econômico pelo mercado. As bolsas de valores e os mercados financeiros não podem regular a sociedade. O mercado não produz justiça e nem tem qualquer compromisso com a ética e o futuro. O mercado não pode substituir o debate público e democrático e as decisões que dele emanam, as únicas capazes de assegurar a proteção ao meio ambiente e a justiça social. Sem maior representatividade dos interesses da grande maioria da população nas diversas instâncias de decisão é difícil que se possa implementar políticas direcionadas a atacar as causas estruturais da pobreza e da desigualdade social e mudar o padrão de relacionamento do Estado com a sociedade. Avançar nesta direção supõe, além das reformas que democratizem a estrutura de poder político, promover o desenvolvimento de duas linhas de reorganização operacional do aparelho de Estado: a criação de canais e mecanismos institucionais de participação efetiva da população, em especial dos segmentos de menor capacidade econômica, nos processos de formulação e implementação das políticas públicas; e o estabelecimento de normas e instrumentos institucionais de controle social da utilização dos recursos públicos, que assegurem a transparência em todas as ações do Estado e consolidem o caráter efetivamente "público" de seus diversos organismos e empresas.

As mudanças estruturais nas três dimensões indicadas conformam o embrião de um novo modelo de desenvolvimento para o Brasil. Implícita nesta concepção está a convicção de que o PT e a esquerda brasileira têm que tomar uma decisão histórica. Não podemos abrir mão de nossos sonhos, mas também não podemos permitir que, enquanto sonhamos, a direita, tradicional ou neoliberal, continue governando o país, degradando a Nação e infelicitando nosso povo. É fundamental que um projeto alternativo, que abra o caminho para a construção de um futuro sem exclusão, sem exploração e sem opressão com que todos sonhamos, seja politicamente eficaz, isto é, capaz de ampliar o leque de alianças contra este modelo retrógrado e destrutivo que aí está, empolgar o Brasil, mobilizar as forças populares e assegurar a sustentação social das políticas transformadoras propostas. Necessitamos de um programa capaz de mudar e governar o Brasil.

Aloizio Mercadante é economista e deputado federal do PT/SP.

Maria da Conceição Tavares é economista e ex-deputada federal pelo PT/RJ.

Um programa anacrônico

O verdadeiro eixo do documento do Instituto Cidadania é a crença de que é possível conseguir "mudanças profundas", a partir de uma situação catastrófica, sem grandes enfrentamentos, nem com o grande capital externo, nem com o interno. E nem mesmo com aspectos centrais da ideologia neoliberal.

Provavelmente, o melhor aspecto do documento "Um outro Brasil é possível", do Instituto Cidadania, são os elementos de avaliação da situação brasileira atual. São mencionados corretamente o agravamento da dependência e a desnacionalização da economia brasileira (talvez pior legado do governo FHC), o processo de controle progressivo dos EUA sobre a economia latino-americana e o risco representado pela Alca. Do mesmo modo, são apontados o desmonte do Estado e o agravamento da crise social, no quadro das imposições do neoliberalismo.

Contudo, há também no balanço elementos muito precários, que conflitam com alguns dos aspectos citados. Por exemplo, a crítica ao processo de privatizações implementado pelo governo FHC é dúbia. O texto diz que houve "privatização de empresas de serviços públicos sem consideração às necessidades de longo prazo e, portanto, sem compromissos de investimentos, bem como a ausência de um marco regulatório eficiente". Critica o fato de o governo "ter privatizado os ativos existentes e não os novos investimentos". Diz que "teria sido mais correto deixar o estoque de ativos sob o controle do Estado e privatizar o novo investimento". Ou seja, o documento parece ser favorável a uma política de privatizações com algumas correções. Além disto, não menciona uma das piores características do processo, tal como conduzido pelo governo FHC: seu papel de promotor da desnacionalização da economia. O máximo de resistência a esta política está na afirmação de que "no caso brasileiro, embora tenha havido um processo de privatização intensivo, há vários segmentos nos quais a presença de empresas públicas ainda é majoritária e deve ser preservada".

Aceitar alguma política de privatizações é uma maneira de não bater de frente com um dos dogmas neoliberais; outro exemplo do mesmo problema é a afirmação de que será preciso lutar contra "a cultura da mercantilização excessiva propagada pela globalização capitalista". Haverá uma "cultura da mercantilização" não excessiva?

Mas deixemos o balanço, e analisemos a orientação geral do programa. Ela é resumida em "a reconstrução da nação e o resgate do social".<--break->

Reconstruir a nação é uma necessidade evidente, depois dos estragos promovidos pelo atual governo. Mas o documento será coerente com este objetivo?

Podemos ler, por exemplo: "O alto grau de desnacionalização ocorrido na última década levaria qualquer ciclo de crescimento comandado prioritariamente pelo investimento privado a depender fundamentalmente da entrada ou do reinvestimento do capital estrangeiro. Para evitar que isto leve a uma grande instabilidade, ou mesmo a um crescimento medíocre do investimento como vem ocorrendo nesta década, o Estado deverá mobilizar todos os instrumentos disponíveis com o intuito de ampliar o seu papel coordenador e indutor da ampliação do investimento. Desse ponto de vista caberia definir claramente o papel e as tarefas das empresas multinacionais, das privadas nacionais e das empresas estatais e do gasto público, nas metas a serem alcançadas".

Além de nada elegante, a redação é também bastante confusa. Parece, contudo, que os autores do documento aceitam que um ciclo de crescimento seja comandado pelo investimento privado, e aceitam até que seja altamente dependente do capital estrangeiro; preocupam-se apenas com a instabilidade que decorreria daí. Diante disto, propõem que o Estado assuma um papel "coordenador e indutor da ampliação do investimento", definindo o papel e as tarefas das empresas multinacionais, além das privadas nacionais e das estatais.

Ou seja, no lugar de alguma proposta para reverter o "alto grau de desnacionalização da economia", reconhecido pelo texto, sugere-se que o Estado brasileiro defina o papel e as tarefas das empresas multinacionais! Alguém acredita que as empresas multinacionais cumprirão as tarefas que o Estado vier a lhes atribuir, ainda que ele faça isto "claramente"?

Embora o texto aponte a desnacionalização da economia como uma coisa negativa, em nenhum momento considera que seja necessário revertê-la.

Entre as medidas propostas para reduzir a vulnerabilidade externa, um dos "vetores principais" da "macroeconomia do novo modelo", o documento inclui "reorientar o IDE (Investimento Direto Estrangeiro)", direcionando-o para a produção de bens e serviços que possam ser exportados ou substituir importações. Trata-se de outra manifestação de crença na possibilidade de atribuir tarefas a setores estrangeiros.

Assim, não é nenhum exagero dizer que o texto entende ser possível chegar à "reconstrução da nação" por meio de uma espécie de parceria com o capital estrangeiro, sem colocar como objetivo a redução do grau de desnacionalização da economia e nem sequer o fortalecimento do setor público.

Sobre o setor público, aliás, depois de apontar que "já não há mais um setor produtivo estatal de grandes dimensões capaz de, em articulação com o setor privado multinacional, assegurar a taxa de investimento necessária ao crescimento", o documento não tira as necessárias conclusões.

Haverá maior coerência no objetivo de "resgate do social"?

Vejamos. O documento coloca "o social como eixo do desenvolvimento".

<--break->Uma primeira observação oportuna é que esta linguagem é inadequada: falar do "social", em contraposição ao "econômico", é um truque usado pelo governo para dizer que o "econômico" vai bem (ou pelo menos, ele dizia que ia bem), e falta apenas cuidar do "social". Ora, não há tal separação: a crise social é conseqüência das escolhas econômicas, e é impossível cuidar do "social" sem mudar estas escolhas.

De qualquer maneira, no "social" o texto diz que "a primeira grande diretriz é lançar as bases de uma sociedade de bem-estar social, em que o Estado desempenharia um papel decisivo. Caberá a este último apropriar parte do excedente econômico disponível para financiar políticas sociais universais". E para que seja possível fazer isto, é necessária "uma revisão completa das atuais políticas que colocam a dívida financeira e seus credores como centro de toda a ação e institucionalidade do Estado brasileiro. As dívidas financeiras não são as únicas dívidas do Estado, a dívida social é parte essencial desta equação e precisa ser resgatada". Em seguida enfatiza-se a importância de uma reforma tributária de caráter progressivo, cujos princípios, segundo o documento, "estão claros e são aceitos tanto pelos empresários quanto pelos trabalhadores". Haverá mesmo toda esta harmonia? Neste caso, por que a reforma tributária não saiu do papel até agora? Por pura maldade do governo?

Há também no texto uma sugestão interessante que não é bem explicada: "uma revisão completa das atuais políticas que colocam a dívida financeira e seus credores como centro de toda a ação e institucionalidade do Estado brasileiro". O que se quer dizer com isto?

O texto menciona a redução das taxas de juros e uma melhora no perfil da dívida. Com relação à primeira questão, é dito que "a redução da fragilidade externa deverá promover uma redução das taxas de juros" externas e internas. O problema aí, como já vimos, é que as políticas que visam reduzir a dependência externa são muito pouco consistentes. Com relação ao "perfil da dívida", o documento menciona que "a dívida externa pública, de cerca de US$ 90 bilhões, será objeto de um grande esforço de renegociação, no sentido de permitir um alívio nas contas públicas para acelerar os programas de investimentos e políticas sociais". A renegociação da dívida interna não é mencionada explicitamente, mas podemos avaliar que se está falando também dela quando se diz que o perfil da dívida deve ser melhorado e ainda que "os grandes rentistas e os especuladores serão atingidos diretamente pela política distributivista e, como tal, não se beneficiarão do novo contrato social" e que "nossas propostas representam uma mudança profunda de rumo no país, mas serão transparentes e previsíveis, e marcadas pela disposição permanente de diálogo e negociações que não comprometam os princípios fundamentais de nosso projeto".

Imaginemos, em favor da coerência lógica, que o que se quer dizer com "os grandes rentistas e os especuladores (...) não serão beneficiados" seja de fato "serão prejudicados", já que eles "serão atingidos diretamente pela política distributivista". Mas o que o programa do Instituto Cidadania parece querer dizer, então, é que isto será conseguido por meio da negociação com os grandes rentistas e especuladores. Parece uma confiança muito exagerada na capacidade da negociação de promover a conciliação dos contrários.

A mesma confiança excessiva se manifesta no fecho do documento, em que é concretizada a idéia, várias vezes mencionada, de "novo contrato social". Aí, depois de uma crítica à política de metas macroeconômicas monitoradas pelo FMI, e de dizer que "queremos reverter totalmente esta perspectiva", é proposta uma "carta de responsabilidade econômica e social" que inclui (ou seja, desiste de reverter) as metas macroeconômicas ao gosto do FMI (inflação, evolução das contas externas e públicas), ao lado de metas sociais (redistribuição de renda, geração de emprego e formalização das relações de trabalho, recursos para educação e saúde, bolsas-escola oferecidas, matrículas escolares, indicadores de saúde pública).

De fato, ao longo da leitura do texto vamos percebendo que seu verdadeiro eixo é a crença de que é possível conseguir "mudanças profundas", a partir de uma situação que é corretamente descrita como catastrófica, sem grandes enfrentamentos, nem com o grande capital externo, nem com o grande capital interno. E nem mesmo com aspectos centrais da ideologia neoliberal: lembremo-nos do tratamento ambíguo que o texto dá à política de privatizações. Estamos muito longe, portanto, da orientação dos programas da candidatura Lula em 89 e 94. Neste último, por exemplo, podíamos ler:

<--break->"O programa democrático e popular consubstancia um projeto nacional elaborado como resposta dos trabalhadores e do povo à crise no país, num contexto em que as classes dominantes têm revelado seu absoluto descompromisso e seu reiterado desprezo para com os interesses da Nação. Esse projeto antilatifundiário, antimonopolista, antiimperialista e democrático-radical materializa um compromisso de nosso governo em responder de modo conseqüente às demandas nacionais e às exigências populares. (...) O programa democrático e popular articula-se com objetivos estratégicos socialistas do Partido dos Trabalhadores. Representará uma verdadeira revolução democrática no país (...); buscará alterar as bases sociais das relações de poder através da democratização da propriedade, da riqueza e do poder. (...) Não contrapomos, portanto, o nosso governo democrático e popular com a luta pelo socialismo. Lutamos pelo fim da exploração e da injustiça".

Assim, saiu a revolução democrática articulada com nossos objetivos socialistas, e entrou a "reconstrução da nação e o resgate do social".

Esta enorme reorientação terá sido imposta pela correlação de forças ou pela demonstração da inviabilidade de veleidades socialistas? Creio que não.

A muito conservadora revista Veja, em uma edição em que saudou (parcialmente) o novo Lula light, divulgou dados de uma pesquisa encomendada pela CNI (Confederação Nacional da Indústria), segundo a qual 50% dos entrevistados acham que "o socialismo deveria ser implantado no Brasil" (33% são contra) e 55% acham que "o país necessita de uma revolução socialista para resolver seus problemas" (32% são contra). O coordenador da pesquisa comenta ainda: "o PT é o partido que os entrevistados mais associam aos ideais que admiram". Podemos duvidar desta pesquisa, mas admitamos pelo menos que os ideais socialistas gozam de uma razoável simpatia.

Temos, contudo, um argumento ainda mais forte: mesmo nas condições muito adversas de um governo como o de FHC, há coisas que estão sendo feitas no Brasil que têm um caráter socialista, ou pelo menos que podem representar passos nesta direção.

O documento do Instituto Cidadania, corretamente, define a democratização do Estado como "mecanismo essencial de gestão do novo modelo", mas em seguida dá um tratamento pouco claro a esta questão. Menciona neste marco "a participação popular através de instrumentos como o orçamento participativo, conselhos comunitários, conselhos de usuários, câmaras setoriais etc". Há diferenças fundamentais entre estes vários mecanismos, por exemplo entre o orçamento participativo, em que uma parcela importante do poder de decisão é transferida para a população, e as câmaras setoriais, que são um organismo de negociação. Além disto, a confusão aumenta quando o documento menciona, na mesma frase, "garantias à democracia representativa", o que parece uma maneira de tranqüilizar vereadores e deputados que temem perder seu poder com o avanço das formas de participação direta.

Formas de participação direta, como o orçamento participativo, podem se constituir num apoio à transformação do Estado num sentido socialista, e deveriam ocupar um lugar muito mais importante em um programa do PT.

Além disto, o documento do Instituto Cidadania fala também, corretamente, em apoio à economia solidária. Infelizmente, os três parágrafos sobre o tema, além de não serem muito claros, enfocam a questão apenas do ponto de vista da luta contra a pobreza. Ora, a economia solidária se organiza de uma forma não capitalista, e pode representar um apoio importante a um movimento em favor do socialismo, e este aspecto mereceria um lugar central em um programa de transformações sociais.

<--break->É preciso ainda levar em conta, na formulação de um programa de esquerda, a constituição, nos últimos anos, de um amplo movimento internacional de luta contra o neoliberalismo. O documento nem toca nisto. Se o fizesse, poderia adotar um tom menos conciliador.

Finalmente: o momento brasileiro é favorável para reforçar sentimentos contrários ao neoliberalismo e simpáticos ao socialismo. Além de os males da dependência e da subordinação aos mercados serem cada vez mais patentes, o que a crise energética representa, senão um fracasso brutal de uma política neoliberal? No lugar de um documento que não trata desta crise, e que dá mais um passo na linha de tentar convencer a todos (mas especialmente aos adversários) de que o PT está cada vez mais moderado, seria muito mais oportuno divulgar uma análise das razões da crise energética, mostrando como ela revela a necessidade de uma orientação política totalmente oposta ao privatismo e à submissão aos mercados! Esta discussão poderia ligar-se, é claro, com todo o sentimento que vem crescendo no mundo de oposição à globalização neoliberal.

Em resumo: apesar de muitos bons propósitos e de alguns elementos corretos, o documento do Instituto Cidadania não está à altura das necessidades. Não procura reforçar os elementos favoráveis ao avanço social presentes no Brasil e no mundo; adapta-se em demasia a uma correlação de forças negativa que já está sendo superada. Podemos, portanto, classificá-lo como um programa anacrônico.

João Machado é economista e professor da PUC/SP.

[fbcomments url="httpsteoriaedebate.org.br/debate/um-outro-brasil-e-possivel/" count="off" title=""]