Estante

a-arte-da-reportagem-volume-1-igor-fuser_mlb-f-3421845538_112012.jpg"Eu não pretendia fazer uma história que interessasse aos técnicos militares, mas uma narrativa popular, honesta e simples, da vida e dos feitos de nossos homens na Itália", escreveu Rubem Braga no prefácio do livro Crônicas de Guerra - com a FEB na Itália, publicado em 1965. E deu assim uma definição, clara e cristalina, do que seja uma boa reportagem: uma narrativa popular, honesta e simples.

Sua prática deveria ser trivial, mas a atividade jornalística cotidiana em nosso tempo mostra o contrário, com sua trivialidade fofoqueira, seu denuncismo desenfreado, seu positivismo militante que pretende fazer jornalismo científico entupindo o leitor de números, medidas, pesquisas de opinião, ao lado de opiniões autorizadas dos especialistas do momento. E que sufoca a alma do jornalismo, a reportagem.

Reportar significa, fundamentalmente, narrar, contar uma história bem contada, um ofício excelentemente exemplificado no livro organizado por Igor Fuser, A Arte da Reportagem.

Igor Fuser é um jornalista veterano, cuja experiência combina a militância na imprensa popular e o trabalho profissional na chamada grande imprensa. Começou em jornais estudantis, em meados dos anos 70. Passou pelo Cobra de Vidro, foi da equipe do jornal Movimento, foi apoiador de primeira hora do projeto Retratos do Brasil; foi editor de Exterior da Folha de S. Paulo e atualmente é editor da revista Veja. Mantém, contudo, os vínculos com a imprensa popular. Publicou, em 1995, o livro México em Transe.

A coletânea que organizou é uma espécie de lembrança, saborosa, de que tudo, literalmente tudo, pode ser assunto de uma reportagem, desde que haja uma boa história para contar, alguém com talento e arte para contá-la, e disposição editorial para publicar. São 37 reportagens brasileiras e 17 estrangeiras, pequenas obras-primas do gênero. Algumas antigas, como o massacre de Paris, em dezembro de 1851, depois do golpe de Estado de Luís Bonaparte, descrito por Victor Hugo; ou a ação militar contra Canudos, no sertão da Bahia, em 1897, por Euclides da Cunha. Outras retratam inquietações mais modernas, como as greves e a luta contra a ditadura militar no Brasil nos anos 70, os escândalos políticos e as mudanças profundas ocorridas no país nos anos 80 e 90; ou a guerrilha zapatista, e a explosão racial em Los Angeles.

Um magnata da imprensa mundial definiu certa vez a essência do jornalismo moderno: em meus jornais, teria dito, espaço editorial é aquele que sobra entre os anúncios. Dito em palavras mais claras e diretas: o jornalismo é um negócio como outro qualquer.

Ele apenas afirmou algo que é verdade desde que o jornalismo existe. E que, em nosso tempo, virou uma indústria altamente lucrativa, cujo produto é o objeto cultural escrito mais consumido em todos os tempos - os jornais e as revistas, cujas tiragens ultrapassam de longe o volume de páginas de livros já publicadas. É compreensível que tenham leviandades popularescas, como certas colunas de grande repercussão. Coisas desse tipo já existiam no início do jornalismo. Autores como Balzac, com a história de Lucien de Rubempré, de As Ilusões Perdidas; ou Lima Barreto, em Recordações do Escrivão Isaías Caminha, já expuseram com crueza a puerilidade, o choque de egos, o servilismo de muitos profissionais, que o jornalismo já exibia em seus primeiros tempos.

Em nosso tempo, novos defeitos apareceram. Alguns resultam do próprio progresso técnico, como a contaminação da linguagem dos jornais com maneirismos copiados dos meios eletrônicos, a entronização da linguagem telegráfica, dos textos curtos, deturpando a identidade própria da mídia impressa e empobrecendo o resultado final.

Hoje, o repórter transformou-se, quase sempre, num catador de informações, produtor de relatórios cujo fechamento cabe a outro profissional, de bom texto e domínio das modas da moda. O jornalismo transformou-se num serviço ao leitor, que nivela e dilui a hierarquia entre os saberes, iguala moda e culinária com arte e filosofia, transforma a política num bate-boca estéril e a economia em conselhos de investimentos.

Em meio dessa aridez, contudo, topamos vez ou outra com o mais legítimo exercício da vocação do jornalismo. Como a história que Dorrit Harazim contou depois de passar oito dias encarcerada no presídio Talavera Bruce, no Rio de Janeiro; como o rastreamento dos muitos lulas por Raimundo Pereira, mostrando o iceberg popular escondido sob a imagem do dirigente operário na greve dos metalúrgicos do ABC em 1979; a revelação de que o Piauí existe, feita em 1968 por Carlos Azevedo para um país embasbacado com seu próprio crescimento econômico. É uma pequena amostra do que há no livro, mas suficiente para deixar claro que a alma do jornalismo, a arte de contar histórias com emoção e humanidade, que é a reportagem, continua viva e sadia.

José Carlos Ruy é jornalista e editor da revista Princípios