Estante

Caio Prado JrEm junho de 1931, no centro da cidade de São Paulo, o arquiteto e artista plástico Flávio de Carvalho passava por uma procissão religiosa, era dia de Corpus Christi, e ele não tirou o chapéu que vestia na cabeça, conservando-o ostensivamente. O gesto, julgado ofensivo pelos que assistiam ao evento e dele participavam, levou a que a massa envolvida na comemoração religiosa investisse contra Carvalho aos urros de “lincha!”. Depois de se refugiar em uma leiteria e ser socorrido pela polícia, o arquiteto escapou da fúria da turba(1).

Meses depois, mas no outrora elitista bairro de Higienópolis – hoje habitado por rentistas e sociólogos insepultos –, naqueles primeiros anos da década de 1930, cruzes em fogo eram arremessadas nos jardins da casa do jovem advogado Caio da Silva Prado Júnior, pertencente a uma das mais importantes famílias da cidade. Sua pequena filha também seria apedrejada nas ruas do mesmo seleto distrito. A razão para esses bestiais episódios de hostilidade era tão inacreditável e primitiva quanto o quase linchamento de Flávio de Carvalho: o ingresso de Caio Prado Júnior no Partido Comunista do Brasil (PCB)!

Se naquele momento Caio Prado Júnior confrontou-se apenas com a alma reacionária daqueles com quem convivera até então, anos mais tarde teve de enfrentar aquilo que os membros de outras classes sociais que adotavam opções de esquerda e conheciam na própria pele a máxima tão cara às elites de que a questão social era um caso de polícia: prisões, maus-tratos e exílio.

Ainda secundarista, Caio despertara para a questão social. Por influência familiar, ingressaria em 1928 em uma cisão do Partido Republicano Paulista, o Partido Democrático, fundado por seu tio-avô Antônio Prado em 1926. Ali permaneceu até novembro de 1931 ao se dar conta de seus limites conservadores e no início de 1932 ingressou nas fileiras comunistas.

A partir de então se desenvolveu uma longa trajetória que é acompanhada nesta nova biografia de Caio da Silva Prado Júnior (1909-1990) escrita por Luiz Bernardo Pericás. Ele foi o autor de três clássicos textos de interpretação sobre o Brasil [Evolução Política do Brasil (1933), Formação do Brasil Contemporâneo (1942) e A Revolução Brasileira (1966)], em que a ferramenta do marxismo foi empregada de forma exemplar. Com esse monumental conjunto, especialmente no caso do texto de 1933, pela primeira vez o povo brasileiro tomou o seu lugar na história do país, antes exclusivamente ocupado pelos “grandes personagens da nossa história”, e com essas e outras obras Caio Prado Júnior ingressou naquele seleto panteão dos chamados Intérpretes do Brasil, ao lado de Celso Furtado, Darcy Ribeiro, Euclides da Cunha, Florestan Fernandes, Mario Pedrosa, Sérgio Buarque de Holanda.

Ao contrário de outros intelectuais comunistas, Caio Prado Júnior vem recebendo há tempos a atenção de várias biografias e trabalhos sobre aspectos de sua trajetória pessoal ou intelectual(2). Mas o que diferencia este trabalho de Pericás em relação aos demais é o fato de que pela primeira vez um pesquisador se detém sobre depoimentos de contemporâneos de seu biografado e, mais importante, seu acervo documental pessoal, hoje organizado e disponível para pesquisadores e interessados no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. Isso garantiu ao autor um minucioso acompanhamento da trajetória pessoal, política e intelectual de seu biografado, que se espalha em 345 páginas de texto, com 1.409 notas, e em 47 páginas de fontes bibliográficas. Assim, sempre sabemos quais são suas principais preocupações intelectuais e políticas, sempre estamos a par do que Caio Prado Júnior lê, e com quem está em diálogo.

Em sua obra surge uma questão sem resposta, a qual não apenas Pericás a faz, mas todos os que escreveram sobre Caio Prado Júnior até aqui. Ou seja, acerca da contraditória trajetória de Caio Prado Júnior dentro do PCB. Permeada de conflitos praticamente desde a sua entrada, já em 1933, quando o PCB era varrido por uma tempestade anti-intelectual, o chamado obreirismo, as ideias de Caio Prado, expressas em suas obras publicadas desde aquele ano até seus últimos textos, bem como as manifestadas nas publicações que dirigia, em especial a Revista Brasiliense, que eram quase sempre atacadas pelas instâncias dirigentes comunistas com os mais diversos epítetos de achincalhe tão característicos do stalinismo em suas discussões. Ao mesmo tempo, em vários momentos, Pericás mostra juízos fortemente críticos de Caio em relação a dirigentes ou à orientação tomada pelo PCB, sem que jamais isso o tenha levado à ruptura com o partido. Essa questão sempre ficou sem resposta, e em Caio Prado Júnior: uma Biografia Política também não a encontramos, a razão pela qual Caio permaneceu nas fileiras comunistas por mais de meio século. Com sua morte, ele a levou para si, sem deixar expressa qualquer razão para ela. Ao mesmo tempo, o PCB jamais se furtou em recorrer ao apoio financeiro pessoal de Caio Prado. No final da vida, mesmo já descrente do país, amargurado com a doença que o incapacitava para a reflexão, deprimido com a tragédia pessoal que levou seu filho mais novo, jamais deixou formalmente as fileiras comunistas nem deixou de reconhecer seu apoio à então União Soviética.

Como a base de pesquisa empregada por Pericás foi a documentação preservada por Caio Prado, é lógico supor que razões várias influíram para que não tenham sido preservados documentos nesse seu acervo. Pesam aqui desde questões de ordem íntima até de segurança pessoal e familiar, em decorrência de sua militância política (pois não podemos esquecer que ao longo do tempo a “grife” Silva Prado cada vez mais deixou de ser uma cobertura eficaz contra a crescente violência e corrupção da polícia política paulista). Isso talvez explique questões como as das relações não resolvidas com o PCB terem ficado sem respostas.

Por isso, ao fim e ao cabo, deve-se aqui destacar a importância de sua pesquisa e a relevância de sua leitura por todos os interessados pela vida e a obra de Caio Prado Júnior.

Dainis Karepovs é doutor em História pela FFLCH-USP e pós-doutorando em História pelo IFCH-Unicamp e diretor do Centro de Documentação do Movimento Operário Mario Pedrosa (Cemap-Interludium)