Estante

Chão de minha utopiaCertos perfis humanos se distinguem na memória das lutas dos povos pela inteireza. Parecem talhados numa mesma peça de angelim ­ uma espécie de madeira que sonha ser metal. Sem emendas. Sob essa inteireza, aparentemente singela, ocultam-se por vezes personalidades capazes de se conduzir num mundo complexo, contraditório, conflitivo sem se deixar cair nos ardis de inimigos astutos ou truculentos, sem perder o norte. Manoel da Conceição traz para a cena das lutas camponesas do Brasil dos séculos 20 e 21 esse perfil que nos fascina e nos desafia. Resgata, traz para a luz com a força do seu relato a frase de Euclides assombrado pela epopeia dos sertanejos de Canudos quando expirava o século 19: "O sertão esconde, para sempre perdidas, tragédias espantosas". E nos leva a pensar sobre o peso dos ossos de instituições e culturas oligárquicas de mando que arrastamos pelos séculos: nada mais parecido com o Maranhão do século 19 do que o Maranhão do século 21...

Chão de Minha Utopia, organizado por Paula Elise Ferreira e Wilkie Buzatti Antunes e publicado pela Universidade Federal de Minas Gerais, traz a palavra direta de Mané da Conceição e testemunhos sobre ele e sobre as lutas dos trabalhadores rurais do Maranhão. Relatos inestimáveis ­ pela trajetória de um homem construtor de utopias e por uma lição ministrada pela brutalidade crua das lutas que opõem posseiros a latifundiários ou grileiros: as utopias derivam de sonhos coletivos.

A obra traz fragmentos de milhares de pequenas guerras dispersas pela atormentada geografia do Brasil Profundo, em geral ignoradas pelo país metropolitano que se imagina contemporâneo do mundo. Passo a palavra ao Mané:

Foi uma verdadeira guerra, mas hoje 15 mil famílias são possuidoras de terras e, apesar do abandono da região pelo governo, estão produzindo e não estão passando fome. Nas terras ocupadas e desapropriadas não existem escola nem eletrificação, nem estrada, nem água tratada, nem assistência médica, nem apoio à produção, pois o governo dos latifundiários apostou no fracasso. Isso era importante para eles tanto do ponto de vista econômico como ideológico. Mas os trabalhadores estão mostrando o contrário. O projeto deles na região foi que fracassou. O nosso, mesmo sem nenhum apoio, matou a fome e até transformou a região.

Em dez anos, Buriticupu, que era um pequeno povoado abandonado, que só tinha uma casa comercial e um motor de pilar arroz, se tornou a sétima arrecadação do estado [do Maranhão]. Tem 18 mil residências, 24 usinas de arroz, 100 casas de farinha, 2 bancos, 3 postos de gasolina e mais 500 outros estabelecimentos de comércio, pequenas indústrias, restaurantes, bares, escolas, oficinas etc. Interessante é que quem fez isso não foi nenhum grande projeto capitalista, mas a reforma agrária sob controle dos trabalhadores. Foi a movimentação do dinheiro de pequenos produtores. Por isso é que hoje muitos pequenos empresários da região apoiam nossa luta.

É impossível tratar da trajetória de Manoel da Conceição sem mencionar esta frase: "Minha perna é minha classe". De algum modo ela recortou seu perfil como figura pública. Como dirigente sindical dos trabalhadores rurais do Maranhão, mais tarde, no exílio, como militante político na Ação Popular e depois da anistia, em seu retorno, como membro da Direção Nacional do PT. O episódio se refere à perda da perna direita, amputada em consequência de ferimento à bala numa operação de repressão da Polícia Militar aos trabalhadores do Vale do Pindaré-Mirim e de ausência de tratamento, que resultou em gangrena.

Mais ainda, porém, à sua recusa à tentativa de cooptação por parte da oligarquia Sarney, responsável em última instância pela repressão aos trabalhadores. Manoel da Conceição recusou a prótese e alguns confortos oferecidos por seus algozes em sua invalidez, a ele e a sua família. Vale dizer que Manoel da Conceição recusou a invalidez. Acreditou na solidariedade dos seus companheiros ­ e a obteve. Precária, incômoda, difícil, mas suficiente para mantê-lo de pé física e moralmente.

Não devemos nos espantar, portanto, diante da notícia de que Manoel da Conceição se encontrava em greve de fome em meados de junho no plenário da Câmara dos Deputados, ao lado do seu companheiro, o deputado Domingos Dutra (PT-MA), com o objetivo de chamar a atenção da sociedade e da Direção Nacional do PT para seu inconformismo ante a aliança com a oligarquia Sarney, no Maranhão.
Manoel da Conceição encarna o Maranhão dos trabalhadores do século 21. Sarney encarna uma anacrônica oligarquia do Maranhão do século 19.

Pedro Tierra (Hamilton Pereira) é poeta