Estante

Discutir a situação do Rio de Janeiro está na moda. Nos últimos meses todos os grandes jornais do país cederam espaço para reportagens e editoriais que tentam, quase sempre sem sucesso, analisar o problema vivido pelo Rio.

Zuenir Ventura certamente furou a concorrência. Seu livro Cidade Partida, publicado pela Companhia das Letras, saiu meses antes da intervenção militar. Outra vantagem que o autor leva sobre os periódicos é o formato. Um jornal ou uma revista nem sempre tem espaço para aprofundar a discussão e apresentar uma opinião mais elaborada.

O tema do livro é a divisão da cidade, de um lado o Rio que todos conhecem, bonito, turístico, alegre, ocupado por uma população afável e de classe média. Do outro, a cidade escondida, onde os moradores são quase sempre pobres e os serviços públicos estão ausentes. A tese do autor é que incluídos e excluídos, ricos e pobres, dividem a mesma cidade, mas é como se fossem duas cidades distintas.

Até aí tudo bem, mesmo porque tal tipo de análise não é nova. As Ciências Sociais e a imprensa de esquerda vêm dizendo coisa parecida pelo menos desde os anos 50. É a velha questão da Belíndia, um Brasil que é rico como a Bélgica e pobre como a Índia.

Assim como a cidade que Zuenir descreve, seu livro também é partido em dois. Na primeira parte ele apresenta alguns flashs da história carioca, principalmente para mostrar que os problemas que o Rio sofre atualmente não nasceram na última década, mas sim foram crescendo na medida em que as duas cidades penetravam. Em suma, a causa maior dos problemas é a exclusão centenária sofrida pela maior parte da população.

Apesar de pequena, menos de um quinto do total do livro, essa primeira parte é a mais consistente. No entanto, peca por apresentar sempre apenas uma versão dos fatos. Por exemplo no caso da morte do policial Le Cocq. Existem várias versões da perseguição a Cara de Cavalo, o ladrão que o matou. Quanto à criação do esquadrão da morte carioca, Zuenir só fala de como teria sido criado pelo General Kruel, e nunca das atividades da Escuderia Le Cocq, fundada para lembrar o colega morto e que acobertou as atividades do esquadrão.

Se na primeira parte faltou espaço para discutir com mais propriedade cinqüenta anos da história carioca, na segunda sobra para apresentar detalhes irrelevantes. Como reverenciar amigos e conhecidos, por exemplo. O espaço ocupado por irrelevâncias é importante porque nesta segunda parte Zuenir trabalha novamente com dois temas, o cotidiano de Vigário Geral pós-massacre e a construção do movimento Viva Rio. Isso faz com que a narrativa perca o ritmo e se arraste em alguns momentos. Como em uma novela, o ponto alto só chega bem perto do final quando da entrevista com o "dono" do tráfico na favela, Flávio Negão. Ele é apresentado como uma pessoa afável, que tomou um caminho errado devido às circunstâncias além de seu controle.

Aliás, durante a segunda parte do livro, todos são mostrados como afáveis e bem intencionados. Os traficantes não teriam culpa de ser o que são, os ricos estariam seriamente interessados em acabar com a miséria. Aparentemente o Rio seria uma cidade partida por culpa, talvez, de uma divindade. Em outras palavras, ninguém é culpado de nada, ninguém se beneficia com a miséria alheia.

Conclusão: o livro escrito por Zuenir Ventura tem uma primeira parte interessante, porém sem aprofundamento, e uma segunda parte um pouco mais cansativa, porém trazendo uma importante entrevista. No todo ele é pouco crítico e tenta não ofender ninguém, as únicas pessoas críticas são alguns mortos. Depois da leitura o livro deixa um sabor de mingau, não de feijoada.

Guaracy Mingardi é cientista social, professor da Escola de Sociologia e Política e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP.