Estante

Dois ensaios e duas lembrançasDois ensaios e duas lembranças é um pequeno grande livro. Seus quatro breves textos, que não somam cinqüenta páginas, dão-nos uma visão condensada das qualidades especulativas e analíticas de Benedito Nunes, que fazem do ensaísta paraense um dos nossos mais importantes pensadores vivos.

O livrinho, editado pela Secretaria de Cultura do Pará e Universidade da Amazônia, é todo primoroso, a começar pela capa, delicada e sugestiva, possivelmente mais reveladora da personalidade do autor do que poderia sê-lo uma extensa biografia.

A impressão inicial é de que o livro estaria apenas justapondo as duas grandes facetas intelectuais de Benedito Nunes: a do filósofo e a do crítico literário. Os primeiros textos – "Um capítulo de arqueologia religiosa" e "O fazer filosófico ou oralidade e escrita em Filosofia" – pertenceriam ao domínio filosófico, assim como os últimos – "Meu amigo Mário" e "Dona Clarice" – seriam tipicamente da esfera literária. Mas, na realidade, as duas dimensões se interpenetram e vivificam mutuamente, a tal ponto que o texto sobre "O fazer filosófico", à primeira vista o mais especializado do volume, por ter como objeto a própria natureza material e espiritual da filosofia, é justamente aquele que melhor aproveita a consumada perícia do crítico literário, sobretudo no que concerne a cada "gênero" filosófico (o diálogo, o ensaio, o tratado etc.) e às suas implicações estilístico-culturais.

"Um capítulo de arqueologia religiosa", verdadeiramente antológico, aborda o "fim do paganismo" e a hegemonia definitiva do cristianismo no império romano. Com vasta erudição mas de modo plenamente acessível, característica proverbial sua, Benedito Nunes traça um quadro fascinante da dialética político-religiosa do período. "O simples progresso do cristianismo – o número crescente de seus fiéis a partir do século III – não basta para explicar a derrocada das antigas religiões e, conseqüentemente, o fim do paganismo. Ou o novo sistema de crenças se beneficiou desde então de sua aliança com o poder político, graças ao qual conquistou posições de dominância hegemônica, ou as religiões pagãs, já nessa época sem força de coesão social, facilitaram essa hegemonia. Não estamos porém diante de um dilema; as duas teses concorrentes são ambas verdadeiras". O fio condutor de sua análise é a malograda tentativa do imperador Juliano (que os adversários alcunharam "o apóstata") de restaurar a velha ordem pré-cristã, inspirado por convicções principalmente neoplatônicas. Percebe-se, não obstante a objetividade historiográfica, uma indisfarçável simpatia por certos aspectos da cosmovisão greco-romana, que empresta ao ensaio sabor sutilmente elegíaco.

"Meu amigo Mário" é a sóbria, despretensiosa, mas nem por isso menos comovida, evocação de seu companheirismo pessoal e profissional com o poeta Mário Faustino "na Belém de trezentos mil habitantes, pós-segunda Guerra Mundial (...), na qual, apesar do calor, havia clima para longas caminhadas a pé (...) e para demoradas conversas na casa de um e de outro, que se prolongavam nos cafés, sobre os livros que líamos". Os dois se tornaram, para sempre, "íntimos, fraternais amigos" e Benedito dedicaria à obra desse irmão eletivo, tragicamente desaparecido em 1962, estudos iluminadores e múltiplas iniciativas de difusão. Essa discreta "lembrança" aporta elementos preciosos sobre os anos de formação e a bagagem poética de Faustino, em especial no que se refere à sua intensa, apaixonada leitura de Jorge de Lima.

Completa o volume uma curiosa, não isenta de pitoresco, memória do convívio do autor com Clarice Lispector, de cuja obra Benedito Nunes é reconhecidamente um dos mais informados e lúcidos intérpretes, desde os ensaios pioneiros de O Dorso do Tigre.

Luiz Dulci é membro do Conselho de Redação de TD.