Estante

Memórias de um revolucionárioQuem quiser fazer uma longa viagem pelos atribulados caminhos da revolução na primeira metade deste século, não falte ao encontro com Victor Serge.

É um guia de primeira linha. Não só porque foi desses personagens que viveram ativa e apaixonadamente os grandes acontecimentos do seu tempo, mas ainda porque soube descrevê-los, reconstituindo os dramas, as dúvidas e as decisões na forma incerta como foram vividos. Por isso, ainda quando tenhamos nossas diferenças com o autor, o que é inevitável, dado até o intervalo histórico que nos separa, temos por seu intermédio uma insubstituível via de acesso a esse passado que tanto marca o nosso presente.

Começamos por Bruxelas, onde nasceu Victor Serge, em 1880, filho de exilados russos. Aí o encontramos ao lado de outros jovens que, como ele, cedo ingressavam nas oficinas e fábricas para ganhar a vida. Nós o vemos subir aos telhados para observar a cidade e refletir com um amigo sobre as injustiças do seu mundo. Nós o veremos em seguida em Paris, num submundo de homens vivendo entre a indigência e a revolta. Ele sai de extenuantes jornadas de trabalho para reuniões conspirativas em salas fétidas. Nós o veremos editando publicações anarquistas e participando de mobilizações operárias que enfrentavam a brutalidade policial. Condenado por envolvimento num grupo anarquista, ele experimentará o que chamou de "máquina de triturar homens", a sinistra prisão da Santé. Já livre, assiste à febre militarista da "defesa da pátria". Vai para Barcelona, onde participa do "Comite Obrero", que estaria à frente de uma insurreição em 1917. Mas ele então já estaria a caminho de Petrogrado, ao encontro da revolução que tanto ansiara.

O quadro que ele nos pinta da metrópole revolucionária quando aí chega não tem nada de animador. "Entrávamos num mundo mortalmente gelado. A estação de Finlândia, cintilante de neve, estava deserta. A praça onde Lenin tinha discursado para uma multidão, do alto de um carro blindado, não passava de um deserto branco cercado de casas mortas." Magros soldados encapotados, mulheres transidas de frio, trenós puxados por cavalos famélicos. "Era a Capital do Frio, da Fome, do Ódio e da Tenacidade". Em um ano sua população tinha se reduzido de 3 milhões para "700 mil almas penadas". Além disso ele já assistia o começo de um desencanto. A maioria dos intelectuais com quem se encontra tecia amargas críticas ao governo. Gorki lhe fala dos bolcheviques como "ébrios de autoridade". Era a lógica da guerra civil: o terror vermelho contra o terror branco. A solução mais simples eram a repressão e os fuzilamentos. Primeiro os brancos, depois os mencheviques e socialistas-revoluciorários, os anarquistas e, enfim, os opositores entre os próprios bolcheviques.

Nessa selva, ele ainda opta pelos bolcheviques que, apesar de intolerantes e obcecados pelo estatismo, tinham a disposição para assumir as tarefas necessárias para salvar a revolução. E aí o acompanhamos no desempenho cotidiano da hercúlea tarefa de erguer uma nova sociedade a partir das ruínas. Na reconstituição daqueles momentos Serge nos devolve um aspecto freqüentemente esquecido em tranqüilas descrições posteriores: o sentimento partilhado pelos comunistas de que provavelmente seriam esmagados pela contra-revolução em marcha. A idéia de que só poderiam ser salvos pela revolução européia não era só uma tese: era expressão da devastação do país, da situação de cerco e de miséria, medida até pela avidez com que ele — um responsável do Estado revolucionário — se lançava à cata de um casaco para suportar o inverno.

Mas afinal esse comunista libertário teria que terminar na dissidência. Sentindo a consolidação de uma nova burocracia, cínica e arrogante, ele adere à oposição trotskista, o que lhe valerá um longo cativeiro nas prisões de Stalin. Quando o livro termina eram tempos sombrios. A velha guarda comunista estava sendo liquidada pelo próprio governo soviético. No ocidente o terror fascista se expandia, destruindo homens, instituições e esperanças formados nas décadas passadas.

O que nos diz da revolução esse personagem que a viveu tão intensamente e que fez dela o sentido mesmo de sua existência? O livro não é tratado teórico sobre o tema. Mas — talvez por isso mesmo — nos dá as melhores condições para compreendermos os dilemas vividos pelos revolucionários nesse tempo em que uma revolução proletária se materializou.

A revolução foi primeiro sonhada como um acontecimento que libertaria a humanidade das opressões do capitalismo. Ela foi depois vivida como uma guerra encarniçada contra o poderio superior das burguesias européias. Mas ao mesmo tempo em que venciam os inimigos "de fora", os revolucionários começam a ser vencidos por eles mesmos. É o que sentia Serge ao dizer que "o perigo está em nós mesmos", na instituição de um poder sem controle nem contestação possível. Da narrativa concreta dos fatos vemos que a definição de alternativas não era tão simples como as que aparecem em formulações doutrinárias que abstraem as condições bárbaras em que a revolução lutava para sobreviver. Mas também justamente dessa narrativa podemos compreender o significado do poder crescente dos novos comissários, que passam a mandar e desmandar, executar ou perseguir, em nome de um ideal revolucionário cada vez mais abstrato. Sejam quais forem as causas materiais que explicam a instituição do terror stalinista, o fato é que nessa história a revolução tornou-se um mito justificador de um novo sistema opressivo.

Aqueles para quem a revolução socialista se mantém como promessa de uma efetiva libertação sentem-se naturalmente desafiados a compreender seus impasses e reinventar seus caminhos. Para esses a leitura de Victor Serge é indispensável.

Eder Sader é sociólogo e professor da USP. É fundador do PT e membro do Conselho de Redação de Teoria e Debate.