Estante

capa_mulheres-rac3a7a-e-classe_final_baixa.jpgEm tempos de ofensiva conservadora em toda a América Latina, também tem sido colocada, de forma cada vez mais crescente, a necessidade de atualização das esquerdas no continente.

Tem ganhado força a compreensão de que racismo e machismo são estruturantes no sistema capitalista. Não se trata apenas da apropriação do capital dessas estruturas opressoras, mas da relação imbricada dessas opressões, e que as lutas, tanto para o fim daquelas quanto para acabar com o sistema de exploração capitalista, devem, portanto, perpassar toda a construção política e estratégica dos projetos das esquerdas latino-americanas.

Nesse sentido, o livro Mulheres, Raça e Classe, de Angela Davis, coloca-se como arcabouço teórico-político que confere centralidade e potencialidade a essa reflexão necessária.

Um desnudamento histórico e político – assim poderia ser descrito diante de um questionamento objetivo. Publicado em 1981, o livro é considerado um clássico tanto do ponto de vista epistemológico quanto político, posto que aponta a necessária, e indissociável, relação entre a pesquisa acadêmica e o conhecimento e a militância política.

A autora desenvolve uma narrativa alicerçada em perspectivas histórica e teórica, conferindo não apenas legitimidade à reflexão apresentada, mas também ampliando e deslocando o olhar do leitor de ortodoxias. Não se trata, portanto, de um questionamento negativo, mas de atenção e complementaridade em que devem se basear projetos políticos verdadeiramente revolucionários e emancipatórios.

Essa perspectiva fica evidente ao ver como a autora articula diversas temáticas que fundamentam as bases para a libertação da população negra, com foco nas mulheres negras, e, portanto, de toda a sociedade. Não à toa, Davis inicia o livro tratando do legado da escravidão para pensarmos a subalternidade histórica a qual mulheres negras foram submetidas, estabelecendo os parâmetros para a construção de uma nova condição social das mulheres, e o finaliza com o questionamento do trabalho doméstico, apontando-o como marca da herança escravocrata nos EUA, que pode certamente ser aplicado ao Brasil, onde 52% desse trabalho é exercido por mulheres negras.

Davis ainda destaca o quão obsoleta e opressora é essa forma de trabalho, não apenas pelo sexismo e racismo inerentes, mas principalmente por apresentar historicamente essa forma de trabalho como fruto do processo de “separação estrutural entre a economia doméstica e a economia pública” (p. 238) e o quanto essa diferenciação exclui essa força de trabalho do processo de produção capitalista.

Ou seja, o capitalismo beneficia-se desse trabalho tanto pela minimização deste, posto que não gera lucro, quanto pelo conjunto de trabalhadoras exploráveis que gera, uma vez que essa “improdutividade” inerente o precariza. O trabalho doméstico é, portanto, uma forma de perpetuar essa submissão das mulheres negras, por serem a base da pirâmide. Sendo assim, Davis destacará a luta pela “abolição das tarefas domésticas enquanto responsabilidade privada e individual das mulheres” como “objetivo estratégico da libertação feminina” (p. 244). A autora vai ainda além ao ressaltar que é pela maior participação das mulheres no mundo do trabalho que essa reivindicação ganhará potência, enquanto o aumento de mulheres trabalhadoras organizadas, desde que em termos de igualdade com os homens, questionará a exequibilidade de tarefas domésticas. Para a autora, portanto, “a socialização das tarefas domésticas – incluindo o preparo das refeições e o cuidado das crianças – pressupõe colocar fim ao domínio do desejo de lucro sobre a economia” (p. 244). Ou seja, deslocar as relações para o bem humano, em contraponto ao bem do lucro, é uma questão que, no mínimo, coloca em dúvida a estrutura capitalista.

Para chegar a essa conclusão, Angela Davis perpassa questões sociais centrais como a relação do movimento antiescravagista nos EUA como fundamental para dar origem às reivindicações pelos direitos das mulheres; a sempre condição de trabalhadoras, desde quando propriedades fruto da escravidão, das mulheres negras; o racismo e classismo presentes no movimento sufragista; a centralidade da educação como via de libertação para os negros, mas principalmente mulheres negras; os conceitos eugenistas e de teorias deterministas e do racismo científico presentes no início do debate por direitos sexuais e reprodutivos e na política de controle de natalidade; a relação intrínseca entre racismo e estupro; bem como a retomada e visibilidade histórica das mulheres negras em todas essas lutas.

Juliana Borges é formada em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo, pesquisadora em Antropologia na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, onde cursa Sociologia. Foi secretária-adjunta de Políticas para as Mulheres da Prefeitura de São Paulo (2013)