A humanidade ingressou no século XXI às voltas com uma profunda crise do capitalismo, cuja forma corporativa transnacional demonstrou incrível capacidade para acelerar todos os problemas estruturais de seu sistema. A crise norte-americana, a eleição de Lula no Brasil e a guerra contra o Iraque, aparentemente tão distantes uma das outras, são apenas manifestações desencontradas de uma situação global de descontrole do sistema de produção para o lucro.
Num contexto desses, retomar a discussão dos problemas filosóficos e, dentre estes, a da consciência, como o faz Mauro Iasi em seu O Dilema de Hamlet, representa um esforço meritório para superar o espontaneísmo teórico hoje predominante na maioria das forças que se dizem de esquerda. Afinal, como ele diz, “estudar o processo de consciência é refletir sobre a ação dos indivíduos e das classes”, embora nem sempre tal reflexão pretenda mudar o mundo.
As questões discutidas por Iasi, em seu diálogo com Durkheim, Weber, Marx-Engels, Foucault e Prseworski, estão presentes na ação dos indivíduos e das classes. Supondo-se que estas ainda existam, elas hoje defrontam com a revolução científica e tecnológica, com o formidável aumento da capacidade produtiva, das comunicações e das informações e, por outro lado, com o persistente aumento dos desempregos estrutural e conjuntural, da fome e da miséria, da poluição e degradação do meio ambiente e com as ameaças de guerras imperiais, que podem “levar não apenas à destruição de uma forma de sociedade, como, graças aos meios de destruição em massa, à destruição da própria vida humana”.
O autor inclui nesse quadro no conflito geral entre as forças produtivas e as relações de produção e entre as classes. E, partindo de sua “pretensão de mudar o mundo”, objetiva “somente contribuir para estudar as formas” como os seres humanos “tomam consciência deste conflito” e podem levá-lo “às últimas conseqüências”. O que não é pouco. Como ele reconhece, “a existência mesma das classes parece tão duramente questionada”, “as idéias que povoam as concepções do mundo dos trabalhadores são, igualmente, idéias de seus dominadores”, e o “senso político... incorporou uma relação direta entre a possibilidade do proletariado como classe revolucionária e sua suposta condição de ‘maioria’ (...)”, desqualificando não só as possibilidades revolucionárias dessa classe, como qualquer papel independente que pretenda exercer.
A esperança de Iasi reside em que “a consciência continua a se produzir apesar dos devaneios ideológicos daqueles que querem dar forma permanente à sociedade atual”. Segundo ele, “a consciência é filha do movimento e das contradições, e não das certezas, quaisquer que sejam”. E as contradições emergem do “solo concreto da história, mediada por classes”, já que “a história tem sido até aqui a história da luta de classes”, luta que “se expressa também como uma luta de valores, entre concepções do mundo”. Como resultado, “em certas circunstâncias”, os indivíduos são levados a questionar “a consciência que lhes foi atribuída”. Portanto, o “dilema de Hamlet (do ser e não ser da consciência) se resolve, como sempre, no agir”, “na ação de classe”.
Iasi poderia ter aproveitado para esclarecer melhor como, por meio da prática do trabalho e das relações entre os homens, o pensamento humano se formou historicamente, tendo a consciência como um de seus principais aspectos. E como, no processo de evolução histórica, a consciência evoluiu de “sua forma mais simples, singular, ...de representar a si mesma e o mundo por imagens e signos mentais” para formas mais complexas, como as ciências e as diversas formas ideológicas. E também poderia ter começado a corrigir algumas noções incompletas do marxismo clássico, como aquelas que repetem que “a história tem sido até aqui a história da luta de classes”.
Os avanços nas ciências neurológicas têm permitido uma visão mais clara dos mecanismos de formação da memória, da inteligência, do pensamento, dos sentimentos, das emoções e da consciência, em sua relação com o corpo humano e com a realidade exterior. E os avanços nas ciências da natureza têm permitido compreender que a história não pode ser reduzida à história da sociedade humana (de 8-10 mil anos?), ou à história humana (150-300 mil anos?), ou mesmo à história da transição dos primatas em hominídeos (3 milhões de anos?). A história, na verdade, abrange ainda as outras formas de vida, a geologia e o próprio universo, história que apenas começamos a arranhar. A “história da luta de classes” é um aspecto da totalidade histórica.
Iasi parte desses pressupostos, mas não teve a preocupação de explicitá-los ou esclarecê-los. No entanto, se tinha como “objeto próprio deste estudo (saber) como se produz a consciência daqueles que se decidem pela insurgência, mesmo contra ‘um mar de provações’....”, esclarecendo “as relações e mediações entre a consciência do militante como indivíduo e a consciência de classe”, teria sido conveniente levar em conta que a maioria dos militantes que se decidem pela insurgência desconhece aqueles pressupostos e terá dificuldade, então, para entender “como se produz este movimento de consciência e suas transformações”.
Isso, porém, não invalida seus esforços filosóficos e sociológicos para discutir cientificamente as relações entre a consciência e o ser, a dualidade indivíduo-sociedade, as diferenças e semelhanças entre consciência e ideologia, as gradações dos movimentos da consciência, a permanência da divisão social e da existência das classes, a consciência de classe como um processo resultante da própria formação e luta das classes, e a existência do proletariado como uma classe necessária ao capitalismo e, ao mesmo tempo, revolucionária. Afinal, pequena ou não, a classe proletária expressa, “em sua particularidade o interesse geral da sociedade” contra a classe burguesa, “um obstáculo (cada vez mais evidente) ao desenvolvimento desta sociedade”.
Aqueles que, como Iasi, também têm a “pretensão de mudar o mundo” encontrarão em seu texto um rico material teórico para poder investigar as classes e a luta de classes no Brasil e seus graus de consciência e suas ideologias. Essa é uma realidade em geral desprezada, pouco estudada e, quando investigada, realizada por meio de instrumentos de pesquisa inadequados. Nesse sentido, um dos principais méritos de O Dilema de Hamlet consiste no resgate da dialética como método de investigação da realidade, método que leva em conta “a ação geral das influências recíprocas” das forças produtivas e das relações de produção, das formações sociais, das formas econômicas, sociais, políticas, culturais e ideológicas criadas pelos homens, com base no que herdaram de suas gerações passadas.
Wladimir Pomar é membro do Conselho de Redação da revista Teoria e Debate