Estante

O mito da Cidade GlobalA questão urbana tem suscitado, nos últimos tempos, um sem-número de análises e projeções. Elas abrangem desde a produção acadêmica dita séria e rigorosa, passam pela publicação de centenas de livros sobre o assunto, e aportam ao senso comum pela inclusão do tema na agenda midiática.

Neste contexto, também as análises sobre o que acontece em São Paulo despertam interesse em toda a parte, pois a capital paulista constitui uma das metrópoles estratégicas do mundo. Essa constatação não encerra nenhum ufanismo, mas sublinha que São Paulo é uma espécie de síntese da contemporaneidade, já que aqui se encontram presentes todos os elementos que definem a economia de nosso tempo.

Assim, uma publicação que procura desvendar a natureza dos vetores urbanísticos em jogo na cidade, os interesses em disputa e as construções ideológicas que buscam legitimá-los merece atenção especial.

O livro de Whitaker Ferreira, baseado em sua tese de doutorado na FAU-USP, representa uma contribuição importante a esse debate. O autor almeja desmistificar “um conceito amplamente divulgado no meio urbanístico brasileiro e internacional: o de que as cidades de hoje, para conseguir sobreviver ao ambiente competitivo e globalizado da economia atual, precisam seguir um receituário específico, de perfil neoliberal, cuja implementação deve ser feita por meio de ‘novas’ técnicas de urbanismo, como o planejamento estratégico”.

Para o autor, São Paulo tem sido vítima desse discurso e das práticas dele decorrentes, com origem na tradição patrimonialista de nossa sociedade. Elas moldam um conjunto de interesses poderosos na produção do espaço urbano. O verniz de “cidade global” constitui, assim, uma camuflagem de época com a finalidade de “vender” projetos imobiliários, para o ganho de poucos e o prejuízo de toda uma coletividade.

Por sua vez, os governos municipais transformam-se em parceiros privilegiados dessas estratégias de valorização fundiária, e mesmo administrações progressistas, como a de Marta Suplicy (2001-2004), não escapam – ainda sob a ótica de Whitaker – dessa armadilha, sendo que suas políticas teriam privilegiado os velhos interesses excludentes de apropriação do solo urbano.

O raciocínio do autor parte da caracterização do conceito de “cidade global”, utilizando-se, sobretudo, do trabalho de Saskia Sassen.

No primeiro capítulo do livro, é demonstrada a forma como a coalizão de proprietários e incorporadores imobiliários, governo, mídia e academia se utilizam desse “rótulo” para vender projetos e imagens desejáveis da cidade, aptos a transformá-la em “cidade global”. O caso de São Paulo é explicitamente enfocado, tendo como mote um documento preparatório para a elaboração do Plano Diretor de 2002.

No segundo capítulo, o autor concentra-se na desmontagem do mito de São Paulo como “cidade global”. A novidade da própria globalização, assim como seus efeitos nas grandes cidades – em especial São Paulo – são postos em dúvida.

A seguir, a globalização é enfocada, a partir de suas origens, nas reviravoltas dos anos 1970/80, e em suas conseqüências, em particular sobre as grandes cidades do planeta. Aqui se chama a atenção sobre a derivação do conceito de “cidade global” do mainstream liberal, e as noções de marketing urbano e de planejamento estratégico são esmiuçadas.

Os dois últimos capítulos – de longe, os melhores – detêm-se no mercado imobiliário: sua relação com a reestruturação produtiva das últimas décadas, suas motivações, suas práticas e a composição do capital empregado. Esses elementos são usados para “radiografar” a produção do “terciário avançado” na capital paulista e seus efeitos econômicos, políticos e sociais.

Pautados pelas considerações descritas no começo dessa resenha, e com base nas posições expressas pelo autor, destacaremos algumas questões críticas que nos parecem capitais para o correto entendimento do tema e para a justa apreciação da política urbana progressista numa cidade como São Paulo.

1. Primeiramente, o uso da concepção de cidade global, por Whitaker Ferreira, é indevido. O conceito tematizado por Saskia Sassen não carrega prescrições político-programáticas, mas representa um suporte analítico sério que capta, na abordagem do fenômeno urbano contemporâneo, os aspectos essenciais nele envolvidos: a economia global e suas determinantes, as manifestações espaciais dela derivadas e os vetores políticos e sociais correspondentes.

Sem dúvida, as análises de Sassen se prestam a críticas, mas dois níveis analíticos precisam ser estabelecidos: um plano conceitual, no qual a aderência da teoria à realidade deve ser aferida, e, no outro nível, suas decorrências empíricas, quando eventuais conseqüências práticas da aplicação e utilização do conceito em políticas públicas necessitam de avaliação. Contudo, as técnicas de “marketing urbano” e “planejamento estratégico” – para o autor, intrinsecamente relacionadas à tematização de “cidade global” – são ilações injustificadas da elaboração analítica de Sassen, que jamais utilizou tais nomenclaturas, nem prescreveu políticas de apoio ao “terciário avançado”, ao contrário, por exemplo, de autores como Keinichi Ohmae. Inclusive, Sassen descreve claramente como o fenômeno por ela identificado reforça hierarquias existentes e tende a aumentar as desigualdades dentro de um aglomerado urbano, se deixado à lógica do mercado. Nosso autor não observa a máxima citada em nota de rodapé por seu prefaciador, Flavio Villaça: “Explicar um processo social não é justificá-lo”.

2. Ademais, o livro desconsidera as exigências e vicissitudes da gestão de uma grande cidade brasileira no século 21 (e isso serve para qualquer gestão, em qualquer tempo). A prioridade concedida às ações de inclusão social não impediu, no governo de Marta Suplicy, as iniciativas voltadas a trazer o mundo para São Paulo e projetar a maior cidade da América Latina no mundo. A política estabelecida para o centro da cidade, por exemplo, privilegiou a implantação de projetos de moradia social na região, sem negar a importância de São Paulo resgatar uma centralidade dinâmica e organizada, atrativa também ao turismo de negócios. Não se trata de uma contradição ou uma ambivalência, mas partes de uma mesma política de desenvolvimento urbano.

Desse modo, a avaliação concreta da correlação de forças, a necessidade de governar para toda a cidade e não parte dela, a hierarquia de prioridades, o realismo e pragmatismo das ações – que encerram considerações de viabilidade e financiamento das propostas –, a percepção lúcida da exata dimensão e dos limites da política urbana, em suma, o imperativo de “sonhar com os pés no chão”, orientaram as políticas da gestão municipal paulistana entre 2001 e 2004.

Fazemos votos para que, na esteira das pesquisas ulteriores de Whitaker Ferreira sobre a natureza do mercado imobiliário e a construção de políticas públicas de recuperação social da valorização fundiária, sejam consideradas, de forma realista, as exigências da legitimidade política. Evita-se, assim, o perfeito irrealizável, e adotasse o possível, ao alcance de nossas forças.

Giorgio Romano Schutte é sociólogo, professor de Relações Internacionais na Faculdade Belas Artes. Foi secretário-adjunto de Relações Internacionais na gestão de Marta Suplicy

Ricardo Carlos Gaspar é cientista social, professor do Departamento de Economia na PUC-SP e diretor de Finanças da Prefeitura de Osasco (SP). Foi coordenador da Secretaria de Relações Internacionais na gestão de Marta Suplicy