Estante

Capa O Paraíso PerdidoDesde sua primeira viagem a Cuba, Frei Betto passou a protagonizar acontecimentos que se confundem com a própria trajetória do socialismo nos anos cruciais da década de 80. Quando descreve, em seu último livro, essas andanças, é possível refazer um itinerário crítico dessas desventuras, que incluem de Cuba à Nicarágua, da China à ex-URSS, passando pela ex-Alemanha Ocidental.

Frei Betto tem representado dentro da esquerda brasileira - e latino-americana - uma referência obrigatória, combinando uma opção clara pelo socialismo, ele integra em seus escritos e em sua ação prática os condimentos do humanismo com o da identificação com as classes subalternas, os ofendidos, os humilhados, os postergados. Seu livro reflete tudo isso de forma enfática.

O objetivo central de O paraíso perdido é o acerto de contas com um período prenhe de viagens, em que ele foi espectador e ator de acontecimentos que sofreram viradas vertiginosas. Para ele trata-se de um resgate e de um exorcismo de experiências socializadas no livro, como costuma fazer com aqueles que têm o privilégio de conviver com ele. O ponto de partida é 1979, no próprio ano da vitória sandinista, no momento em que, pela primeira vez os cristãos - como tais - participaram de um processo revolucionário. Um começo que não poderia ser mais significativo. Dali para frente, somente a Cuba, Frei Betto realizou mais de vinte viagens.

Somam-se a estas viagens as que ele fez a ex-URSS, Letônia, Polônia (onde teve um indigesto e conflitivo almoço com Lech Walesa), Tcheco-Eslováquia, China, Alemanha Oriental e até aos Estados Unidos, viagens, quase sempre mediadas por algum contato religioso.

As idas a Cuba evidentemente têm um destaque especial, tanto pela freqüência quanto pela difícil - e fracassada - tentativa de aproximar Igreja e Estado. Um relacionamento que teve o encorajamento da confissão do próprio Fidel Castro: "desde o início da Revolução houveram muitos pecados de ambos os lados. Mais do nosso lado do que da Igreja". E, do lado dos religiosos cubanos, a confissão de que se os soviéticos fossem embora de Cuba, "os americanos invadiriam a ilha".

Essas visitas estenderam-se até o período atual da crise e permitem conhecer as críticas que acompanham a irrestrita solidariedade de Frei Berro a um país onde "é mais fácil ser solidário e, por isso, ser humano". Ele propõe: "é preciso fugir da idéia de progresso... e introduzir a idéia de felicidade". E acrescenta: "é preciso criar espaços em que as pessoas possam falar, protestar, criticar e tecer sonhos, a partir dos quais o partido reaja. O povo precisa ser sujeito do sentido de sua existência e, inclusive, de seu sacrifício".

O tema do socialismo e da fé, da ideologia e da religião, é recorrente em todo o livro. "Em nome de Deus, a Igreja cometeu crimes tão hediondos como aqueles que o socialismo real repetiu em nome da emancipação do proletariado. Nem por isso, a fé desapareceu da face da terra". E, como ele tem afirmado repetidas vezes: "para poder privatizar os bens materiais, o capitalismo socializa os bens simbólicos, através da religião ou da mídia eletrônica que não distinguem o barraco do pobre da mansão do rico.

O socialismo tem feito exatamente o contrário: socializa os bens e privatiza o sonho".

Ao contrário de outros livros contemporâneos, o de Frei Berro se conclui com a reivindicação do sonho. Se o socialismo deixou de ser um mito, fica "a certeza de que a socialização dos bens é a única via capaz de arrancar a humanidade dessa longa etapa em que a vida de uns se nutre da morte de outros".

Emir Sader é membro do Conselho de Redação de T&D.