Estante

Políticas Culturais no BrasilAo final da leitura do livro Políticas Culturais no Brasil, que conta com ensaios de vários estudiosos da área, fica a impressão positiva de que está em andamento a constituição efetiva de uma política pública cultural no país, a partir das iniciativas do Ministério da Cultura sob o governo Lula, com Gilberto Gil à frente. Nenhum dos autores, no entanto, desconhece que são passos iniciais. Há uma longa caminhada pela frente para que a cultura, como política pública, deixe de ser um adereço ou peça de manipulação comercial nas mãos do mercado. Há, ainda, como diz Albino Rubim, organizador da obra, enormes desafios a enfrentar.

A compreensão que perpassa o livro é que o momento inaugural da política cultural no Brasil tenha se dado nos anos 30 do século passado, marcado por duas experiências: a passagem de Mário de Andrade pelo Departamento  de Cultura da Prefeitura da Cidade de São Paulo (1935-1938) e a implantação do Ministério da Educação e Saúde, em 1930, e, de modo particular, a presença de Gustavo Capanema à frente do ministério, de 1934 a 1945. Esse momento inaugural assinala duas tradições essenciais do desenvolvimento cultural no país: a imensa dificuldade para a cultura se desenvolver e a íntima relação entre políticas culturais e ditaduras – ou situações autoritárias, como se queira.

Há os que acreditam que  a inauguração das políticas culturais tenha ocorrido no período do Segundo Império, como Márcio de Souza, por conta da postura ilustrada e de mecenas que o imperador Pedro II eventualmente assumia. Como não havia, de fato, intervenções conjuntas e sistemáticas visando ao desenvolvimento de políticas culturais, como não havia atores coletivos e metas, na avaliação de Rubim, não seria correto endossar a visão de Souza. É evidente, ainda, que a República oligárquica nascida nos finais do século 19 também não desenvolveu políticas culturais. Só os anos 30, de fato, mudarão esse quadro, o que revela o caráter tardio das políticas culturais no Brasil.

Curioso seja uma experiência municipal – a presença de Mário de Andrade no Departamento de Cultura de São Paulo – a pavimentar o caminho das políticas culturais no Brasil. Isso demonstra o quanto pode um gestor público, se convencido da necessidade das inovações, se consciente do que quer, se disposto a perseguir os objetivos definidos. Com ele, estabelece-se uma intervenção estatal sistemática envolvendo diferentes áreas da cultura; desenvolve-se um novo conceito de cultura, que inclui as belas artes mas vai além delas, assumindo a importância das culturas populares. O patrimônio passa a ser compreendido, também, como algo imaterial, intangível e pertinente às várias classes sociais.

Gustavo Capanema, sob Getúlio Vargas, mesmo durante o Estado Novo, acolheu muitos intelectuais e artistas progressistas, como Carlos Drummond de Andrade, que foi seu chefe de gabinete, Cândido Portinari e Oscar Niemeyer, para citar três dos mais famosos. Pela primeira vez, o Estado brasileiro, de modo aparentemente contraditório porque sob uma ditadura – a tradição de que se falou anteriormente –, formulava sobre cultura, praticava, legislava e fazia aparecer novas organizações culturais.

A política cultural desse momento, no entanto, não era inocente, como nada o é. Valorizava o nacionalismo – trata-se de uma característica das ditaduras, ou de algumas delas –, a brasilidade, a harmonia entre as classes sociais, o trabalho e o caráter mestiço do povo brasileiro. Todo um discurso muito próprio para o ideário getulista, voltado para aplacar a luta de classes, para unificar tudo sob a idéia, generosa até, da construção da Nação. Uma construção que pretendia, sempre, sufocar as diferenças, apagar a diversidade, como o livro registra.

São muitas as instituições criadas no período Capanema: Superintendência de Educação Musical e Artística, Instituto Nacional de Cinema Educativo (1936), Serviço de Radiodifusão Educativa (1936), Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (1937), Serviço Nacional de Teatro (1937), Instituto Nacional do Livro (1937) e o Conselho Nacional de Cultura (1938). Essa fase é paradoxal: ditadura, de um lado; e de outro, como diz Alexandre Barbalho, alguma independência dos produtores simbólicos brasileiros. Não se desconheça, no entanto, o que diz o mesmo Barbalho: a ótica do corporativismo getulista implicava que ao Estado cabia decidir que benefícios conceder e a quem concedê-los.

A fase posterior – momento de afirmação democrática, entre 1945 e 1964 – representa, de um lado, um extraordinário desenvolvimento cultural do país e, de outro, uma ausência completa do Estado brasileiro quanto às políticas culturais. Até ali, portanto, permanecia, e aqui pela negativa, uma odiosa tradição: a presença do Estado em políticas culturais estava vinculada a situações de ditadura.

Viveríamos outra em 1964. Três momentos culturais marcariam a ditadura iniciada em 1964. No primeiro momento, de 1964 até o final de 1968, há uma grande efervescência cultural, fundada na concepção nacional- popular, uma floração nitidamente de esquerda e voltada exclusivamente às camadas médias. A ditadura até ali não havia mostrado todas as garras. O segundo momento é o do vazio cultural, de 1968 a 1974. Época do terror absoluto – violência, torturas, assassinatos, desaparecimentos, censura. E a imposição crescente de uma cultura midiática controlada e reprodutora fiel da ideologia oficial.

No terceiro momento, de 1975 a 1985, vê-se a ditadura militar tomar iniciativas na área cultural,  retomando a tradição. Para realizar a transição sob sua hegemonia, a ditadura busca cooptar os profissionais da cultura. Pela primeira vez o país terá um Plano Nacional de Cultura (1975) e são criadas inúmeras instituições culturais. Destaque nesse momento para a figura de Aloísio Magalhães, que em sua curta gestão à frente da Secretaria da Cultura do MEC (1981-1982) conseguiu alargar o conceito de cultura, no qual, como diz Isaura Botelho, sua dimensão antropológica é privilegiada, correspondendo ao que a Unesco defendia nos anos 70 – a noção de que não pode haver verdadeiro desenvolvimento de um país se não for considerada a dimensão cultural.

Sob a democracia, com Sarney na Presidência da República, cria-se o Ministério da Cultura, sem que, no entanto, tenha força alguma, sem dispor de instrumentos para efetivar políticas públicas de cultura. Collor representou uma espécie de terra arrasada para a cultura. Desconsiderou-a inteiramente, extinguindo o ministério, inclusive. Com Fernando Henrique Cardoso, e sua ideologia neoliberal, a política cultural passou a ser determinada pelo mercado, com as leis de incentivo que, na prática, significava entregar recursos públicos para o marketing de empresas privadas.

O ministro Gilberto Gil chega a uma pasta quase a ser construída e um vazio quanto a políticas públicas na área. Ele formula um conceito amplo de cultura – dito antropológico –, compreende, nas próprias palavras dele, que formular políticas culturais “é fazer cultura”. Em decorrência dessa visão, o público privilegiado será a sociedade brasileira, não os criadores, como lembra Rubim. E propõe-se a retomada do papel ativo do Estado nas políticas culturais, inclusive com a criação de um Sistema Nacional de Cultura.

Pelas mudanças que começou a efetivar, o ministério sofreu um ataque concentrado da grande mídia e daqueles artistas acostumados aos privilégios anteriores. Durval Muniz defende a necessidade de que o Estado formule políticas e adote medidas de regulação, “assumindo seu papel de indutor de determinadas produções ou no sentido de que determinados conteúdos devam estar presentes nos veículos de comunicação”. Está certo. Só que são conhecidas as resistências a isso, e a força dessas resistências, como se comprovou durante o primeiro governo Lula. Os autores, apesar de localizar muitos desafios, são unânimes em afirmar que, sob o governo Lula, a cultura foi colocada no centro da agenda política, e, assim, deixou de ter um papel decorativo entre as políticas governamentais.

Emiliano José é jornalista, escritor, professor-doutor da Faculdade de Comunicação da UFBA. Membro do Diretório Nacional do PT e da Comissão Executiva Estadual na BA