Nacional

As lições de uma vida intensa e diversificada.

Na noite de oito de agosto de 1977, o pátio da Faculdade de Direito do Largo São Francisco sediou a primeira leitura pública da Carta aos Brasileiros: "Para nós, a Ditadura se chama Ditadura, e a Democracia se chama Democracia. Os governantes que dão nome de Democracia à Ditadura nunca nos enganaram e não nos enganarão". Redigido pelo professor Goffredo Telles Jr., o documento foi assinado pelos juristas mais importantes do país, por advogados e políticos, exigindo "O Estado de Direito, já". Teve repercussão nos principais jornais do mundo e redirecionou a luta pela democracia no seio da sociedade civil. Raros foram os momentos de tamanha unanimidade naquela escola especialmente diversa.

Quase nada é unânime nas "arcadas", de onde saíram nada menos do que onze presidentes da República1. De lá emergiram, além de presidentes, seres humanos disparatados: artistas modernos, como Oswald de Andrade, e comunistas do porte de Caio Prado Jr.; trotskistas como Plínio Mello, caçadores de esquerdistas, dedos-duros e monarquistas temporões. Ao seu país, a São Francisco deu políticos de todos os matizes, deu bêbados de inúmeras estirpes e até mesmo formou advogados. Alguns de importância histórica. Muitos poucos se tornaram unanimidades.

Goffredo Telles Jr. é um desses. Em 1988, ele foi advogado dos professores e funcionários da Universidade de São Paulo no primeiro mandado de segurança coletivo da história brasileira, logo após a promulgação da atual Constituição Federal. Impetrado contra o governador e seu secretário de Segurança, o mandado pretendia abrir o acesso dos servidores em greve às mais altas autoridades do estado para dar curso às negociações. O professor Goffredo foi pessoalmente despachar sua petição no Tribunal. À sua presença, um desembargador levantou-se do seu lugar - uma atitude absolutamente contrária ao rígido protocolo -, atravessou o salão, e foi abraçar seu ex-professor. Ali, simbolicamente, o Judiciário homenageava uma instituição: um homem livre com sede de justiça.

"Eu sou apenas um estudante", costuma repetir o professor. Pois é isto mesmo: acima de tudo, estudante é o que ele é. E por ser um estudante, como seus alunos, é um professor tão amado. Para quem passou por aquela faculdade, ouvir aplausos nas salas do primeiro ano, depois das aulas de Goffredo, era algo tão corriqueiro quanto ser abordado por um colega distribuindo panfletos. Tão corriqueiro que parecia que teria sido sempre assim.

Claro que não foi. Formado em 1937, Goffredo só começou sua carreira de professor em 1940. Após 45 anos de docência, foi terminá-la, compulsoriamente, por força de lei, quando completou seus setenta anos, no dia dezesseis de maio de 1985. Entre os alunos que aplaudiam suas aulas, paira a tentação de uma pequena brincadeira: a lei que o aposentou é uma lei ilegítima, dizem eles. E nenhum aluno de Goffredo pode se permitir a confusão entre o legal e o legítimo. De qualquer maneira, aos 75 anos, ele é hoje um velho mestre aposentado. Mas aposentado somente à luz da legalidade, bem entendido. À luz da legitimidade, o eterno estudante continua professor. Todas as quartas-feiras, ou quase todas, por volta das cinco horas da tarde, lá está ele, cercado de jovens discípulos, em alguma sala da Faculdade, ou no Centro XI de Agosto, na sala que leva o seu nome, conversando sobre a dignidade do ser humano, o Direito e os destinos do país. É o chamado "Círculo das quartas-feiras ", no qual todos têm a palavra e no qual o mestre também fala, mas despretensiosamente.

São lições de uma vida intensa e diversificada. Primogênito entre cinco irmãos, filhos de Goffredo-pai e Carolina, viveu com fartura a sua infância. Foi aprender a ler e escrever em Paris. Aos cinco anos falava francês e inglês, e este último "melhor que o português". De volta ao Brasil, em 1922, conviveu com alguns dos grandes nomes do modernismo. Adolescente, em 1933 entrou para a Faculdade de Direito da qual não saiu nunca mais. É sob o prisma das pulsações políticas que tiveram lugar nessa escola que devem ser compreendidos os movimentos de sua vida. Na década de 30, Goffredo aderiu ao integralismo, ao lado de dois de seus irmãos e muitos amigos. "Nós não éramos fascistas, tanto que muitos dos nossos saíram diretamente do integralismo para entrar no PC", lembra, lamentando a interpretação histórica segundo a qual todos os integralistas eram reacionários empedernidos. Em 1946, elegeu-se deputado constituinte. Durante o regime militar, chegou a elaborar dois projetos de Constituição que, entregues a Costa e Silva e Médici, em nada resultaram. Ao mesmo tempo, esteve ao lado dos estudantes em várias atividades durante a histórica ocupação da Faculdade. Desde o surgimento do PT, tem estado junto dos trabalhadores nas grandes campanhas cívicas, como as diretas-já, ou nas jornadas eleitorais. Eleitor de Lula, desde o primeiro turno em 1989, não abriu mão de apoiar os candidatos do PT em 1990.

Um pouco de tudo isso ele conta nesta entrevista, que exigiu de sua agenda um generoso espaço para duas longas conversas. Ele recebeu Teoria & Debate no seu escritório, onde trabalha com sua mulher, num prédio alto da avenida São Luís, em São Paulo. Ali mesmo, um andar abaixo, ele mantém sua residência, onde vive com a esposa, Maria Eugênia, advogada pelo Largo São Francisco, com quem é casado há 23 anos, e com a filha do casal, Olívia, dezoito anos, estudante do segundo ano da mesma escola (o professor tem um outro filho, o cineasta Goffredo Telles Neto, de 37 anos, de seu casamento com a escritora Lígia Fagundes Telles). Em casa e no escritório, cultiva plantas e tem pássaros e gatos. Adora a natureza, diz. Além disso, tem livros. Muitos livros por todas as paredes. Alguns deles, certamente, são as melhores testemunhas da vida de Goffredo Telles Jr., alguém que tem a discreta elegância de uma família tradicional, a paixão de um jovem estudante e a dignidade de um trabalhador que quer mudar o mundo.

Quantos livros o senhor tem aqui professor?
Creio que temos cerca de 10 mil livros. A biblioteca cresce todos os meses. Direito, política, história, filosofia, biologia, física, aqui no escritório. Ficção e poesia, ali em casa. Como não é possível viver todas as vidas do Universo, procuramos viver todas as vidas lendo nossos livrinhos.

É verdade que a primeira vez em que o Lula veio aqui, ele teria perguntado se o senhor já tinha lido tudo?
(risos) O nosso escritório de advocacia não pode deixar de ser um centro político. Aqui nós recebemos os líderes das mais diversas tendências. A visita do Lula foi uma festa para nós. Sempre será recebido como um querido amigo. Lembro-me que, efetivamente, na hora de sair, ele parou diante das estantes, ficou olhando, pensativo, e me disse: "É livro, hein, professor.. Sabe, eu também tenho, na minha casa, uma estante. É uma estante de uns setenta, oitenta centímetros, e tenho uns livros ali. Meus companheiros olham para aquilo e me perguntam, espantados: 'Lula, você já leu tudo isso?' Daí eu respondo que vontade não falta, mas quando começo a ler, lá pela página vinte ou trinta, me dá um sono... Não posso dizer que tenha lido tudo." Aí, eu perguntei ao Lula: "Mas, então, me diga: como é que você sabe tantas coisas, todas as coisas de que você fala?" Ele me olhou, sorriu e disse: "O senhor quer saber como eu sei dessas coisas? É muito simples: aprendi com vocês. "

E então, professor, o senhor leu tudo mesmo?
Durante meu curso, li muito. Estudei com amor as disciplinas do Direito. Utilizei-me principalmente de autores franceses ou de autores traduzidos para o francês - naquele tempo eram poucos os bons livros em português. Com máxima dedicação, estudei filosofia, sobretudo a metafísica, a lógica e a psicologia. Li os filósofos gregos. Li Homero, Horácio, Lucrécio e Virgílio. Li o que pude da grande literatura mundial. Até hoje, sou um inveterado. Leio e releio meus poetas preferidos. Li recentemente O sorriso do lagarto, de João Ubaldo Ribeiro, e O Mulo, de Darcy Ribeiro. De lápis na mão, reli agora as Odes, de Horácio. Há vinte anos, venho estudando química, física e biologia. Convenci-me da unidade do mundo. Convenci-me de que a ordem jurídica é um simples setor da ordem cósmica.

Pois é, professor, desde o aparecimento do Partido dos Trabalhadores a sua posição tem sido de apoio e solidariedade. Digamos que entre muitos líderes que andaram aqui pelo escritório, o senhor acabou fazendo uma opção pela de esquerda. O senhor é socialista?
Sou socialista sim. Mas atenção! A palavra socialista é uma palavra que os filósofos chamam de analógica, porque ela se aplica a coisas diversas, embora análogas. Ela é o nome de pensamentos diferentes, mas que guardam certa relação entre si. Há vários tipos de socialismo e de socialistas, e aqui não estou dizendo nenhuma novidade. Eu sempre tive uma tendência natural, uma simpatia voltada para o socialismo, no seu sentido mais genérico. Em resumo: meu espírito e meu coração tendem para a esquerda.

O que o senhor pensa de Gorbatchev?
Parece-me que Gorbatchev é a quinta-coluna capitalista dentro da URSS. Talvez eu esteja enganado. Mas esta é a minha impressão.

Mas então o senhor acha que a vitória da perestroika é a destruição do socialismo no mundo?
Vou tentar resumir meu pensamento. Você se lembra do célebre lema dos revolucionários franceses: "Liberdade, igualdade, fraternidade"? A luta pela liberdade criou os chamados Direitos Humanos, que constituíram uma barreira contra a prepotência dos governos absolutistas. Depois, a luta pela igualdade é a nossa luta atual, contra a exploração do homem pelo homem, contra a prepotência dos economicamente fortes sobre os economicamente fracos, isto é, nossa luta pelas liberdades democráticas e pelos direitos concretos dos trabalhadores. Agora, a luta mais alta é nossa luta pela fraternidade, que é a luta por uma humanidade melhor, por um regime chamado socialismo. Fraternidade entre os homens é socialismo. Socialismo, em última análise, é fraternidade. A perestroika teve um grande papel. Multidões de trabalhadores tinham sido imobilizadas pela burocracia soviética. Imobilizadas no processo político de socialização. Libertados pela perestroika, os proletários unidos se puseram novamente em movimento, e é isto o que mais importa. O que os trabalhadores querem não é o capitalismo. O que eles querem é eqüidade e bem-estar. Mais do que nunca, estamos caminhando em direção da fraternidade universal, ou seja, em direção ao socialismo.

Que tipo de socialista é o senhor, professor? O senhor não é um marxista, certo?
Não, mas Marx é um dos pensadores que mais me impressionaram.

Quando o senhor leu Marx?
Há muito tempo. As primeiras leituras foram feitas enquanto cursava a faculdade. Eu me formei em 1937. Comecei a dar aulas em 1940. Desde estudante, eu já me preparava para meu futuro concurso de professor. Fiz muitas leituras durante a mocidade. Mas essas leituras da juventude não costumam ser muito bem feitas. Nós não as entendemos direito. Pensamos que estamos entendendo, mas não. Isto se dá tanto com os livros sobre política quanto com os livros de filosofia. É curioso como a releitura, mais tarde, dos mesmos livros tem um outro sabor e, muitas vezes, tem também um outro sentido. Vou citar um exemplo bem típico. Ainda me preparando para o concurso de livre docente, li "A crítica da razão pura", de Kant, que me abalou profundamente. Eu me lembro que eu dizia a mim mesmo: "preciso reler este livro". Muito bem: quando fui fazer meu concurso para catedrático, em 1954, fui reler. Tive então dois anos fora da Terra. O arrebatamento intelectual que ele me causou foi indescritível. Aí é que eu realmente entendi Kant. Isto me aconteceu com Kant, mas também me aconteceu com Spinoza e Descartes. Depois, outras releituras marcaram muito o meu espírito. Marx, Lenin e Engels, todos eles tiveram grande repercussão em mim. Imensa impressão me causou a releitura de Jean-Jacques Rousseau.

Me parece que o senhor é socialista em decorrência de ser democrata...
Vamos ser claros. Para mim, a democracia é o processo político que assegura a permanente penetração da vontade dos governados nas decisões dos governantes. É um processo de abertura de canais por onde os anseios do povo penetram, para atingir o governo e nele influir. Com esses canais, a democracia tende a ser o caminho da fraternidade entre povo e governo. Com o aperfeiçoamento do processo, a democracia se faz socialismo. A meus olhos, o socialismo é a perfeição da democracia.

Seria correto afirmar que o socialismo é a materialização dessa mesma democracia?
Eu não tenho dúvida nenhuma. A tendência da democracia é uma tendência socialista. É uma tendência para a esquerda.

A sua vida também é um pouco assim, não é professor? Sempre tendendo à esquerda, cada vez mais tendendo para o socialismo.
É verdade. O ser humano tem a pretensão de ser inteligente. Ora, a inteligência é uma faculdade muito exigente. Ela nunca está satisfeita. Sempre quer mais e melhor. Ela se acha atraída pela perfeição. Como a perfeição é inatingível, a inteligência está sempre em movimento, à procura de um bem que ela almeja, mas nunca alcança inteiramente. Está sempre à procura de justiça, de equidade, de fraternidade. Ora, os políticos de direita dão férias à inteligência, instalam-se nos cômodos existentes, não querem mudar nada, ou fingem fazer mudanças, mas somente para garantir que nada vai mudar. Proclamam que a justiça está feita, e, entre eles, qualificam a revolta, a indignação, o clamor dos infelizes, de baderna e subversão. Por outro lado, os políticos de esquerda, ao invés de dar férias à inteligência, fazem a inteligência funcionar a todo vapor. Não preciso dizer mais nada.

Em 1946, o senhor foi eleito deputado constituinte por São Paulo. Na sua vida, que pode ser vista como uma caminhada na direção da esquerda, o que representou aquele momento? O senhor foi pelo Partido de Plínio Salgado, um direitista, não?
Não. Eu fui eleito por uma coligação de partidos: o Partido Social Democrático e o Partido de Representação Popular.

Bem, ao menos na juventude, o senhor esteve alinhado a Plínio Salgado, durante o movimento da ação integralista brasileira. O senhor foi integralista?
Nunca fui "alinhado" com homem nenhum. Durante toda a minha vida, somente estive a serviço de minhas próprias idéias. No apogeu do fascismo e do nazismo, escrevi o seguinte: "Chamamos Estado Moderno o Estado Ético, antiindividualista e antitotalitário. (...) Criado para servir ao homem, orienta-se para os alvos que estejam em conformidade com o destino supremo do mesmo. (...) O Estado Moderno é antitotalitário porque faz prevalecer o Moral sobre o Social e o Espiritual sobre o Moral. Reconhecendo a iniqüidade da tirania, proclama o princípio da intangibilidade da pessoa humana." Estas palavras estão escritas aqui, você está lendo, páginas 31 e 32, do meu primeiro livro, Justiça e júri no Estado moderno, elaborado durante os anos de 1936 e 1937, e publicado em 1938. Para a defesa destas idéias, é que fiz política na minha juventude, e que, em 1945, fui eleito deputado constituinte. Estas, e só estas, são as minhas idéias - idéias que estão escritas e publicadas, e que sempre foram sustentadas por mim. Não me venham agora atribuir idéias que nunca tive. Sempre fui antifascista, antitotalitário. Dentro do integralismo, sempre fui antifascista, antitotalitário. Para mim e para meus colegas integralistas, o Estado Integral era precisamente o Estado que se opunha ao Estado Totalitário. Há quem diga, bem sei, que o integralismo era fascista. Hoje, eu sei que o integralismo não era um movimento unificado. Havia uma ala fascista dentro dele. Mas nós, estudantes universitários, nunca tomamos conhecimento desta ala discordante. Nós defendíamos o integralismo para combater o fascismo. E também para combater os partidecos inexpressivos de uma burguesia apática. Esta é a verdade nua e crua. Esta é a verdade comprovada pelo que escrevi em meu citado livro.

Por favor, professor, ninguém o acusa de fascista...
Realmente, era só o que faltava. Quando saiu a Carta aos Brasileiros, Franco Montoro, que assina a carta também e que era senador, fez um discurso no Congresso Nacional e a leu. Houve lá dentro uma discussão acalorada. Eu, autor da carta, fui, na mesma sessão, chamado de fascista e comunista.

Quem o acusou de fascista?
O coitado já morreu. Chegou a ser vice-prefeito de São Paulo. Tempos antes, ele se encontrou comigo numa reunião política, e me pediu desculpas. Águas passadas... Sobre as minhas convicções, sobre as minhas idéias políticas, desde a minha juventude até os dias de hoje, não é possível manter dúvidas. Está tudo escrito por mim. Escrito e reescrito. Creio que bem poucas pessoas podem provar o que pensavam na juventude. Eu posso. Basta ler o que escrevi em meus livros e em minhas proclamações.

Que idade o senhor tinha no tempo do integralismo?
Eu tinha dezessete anos, em outubro de 1932; eu tinha 22 anos de idade em 1937, quando Getúlio Vargas fechou a Ação Integralista e os demais partidos, e implantou a ditadura do Estado Novo. Em 1938, muitos de meus companheiros entraram para a clandestinidade, na extrema-esquerda. Roland Corbisier, extraordinário companheiro integralista, querido amigo, o maior líder estudantil da Faculdade de Direito e de toda a universidade, por exemplo, foi um desses. Orador fantástico. Foi para o comunismo. Muito natural esta evolução. Como nós éramos contra os melancólicos partidos da burguesia, que não significavam nada e que estavam estorvando a vida nacional, o que nos restava? Fomos caluniados torpemente. Éramos apresentados pelo avesso do que éramos. De boa e má-fé, houve quem nos tachasse de fascistas. Mas como, se lutávamos exatamente contra o fascismo? Foi chocante. Tão chocante que muitos entraram, revoltados, para o Partido Comunista.

E o senhor, por que não entrou no PC?
Não entrei no PC porque não sou comunista. Não tolero o totalitarismo da burocracia soviética. Eu sou um democrata que sonha com a fraternidade universal. Não quero ditadores por cima de minha cabeça. Caminharei para o socialismo por força de minhas próprias idéias.

Como foi sua eleição em 1946? O senhor mesmo costuma dizer que foi uma surpresa.
Eu estava em minha casa quando, às quatro ou cinco horas da manhã recebi um telefonema do Rio pedindo para que eu entrasse para a chapa do Partido Social-Democrático.

Não era esse o Partido de Plínio Salgado?
Não, o Plínio era do Partido de Representação Popular.

Que estavam em coligação?
Depois esteve. Porque eu estava na chapa do PSD e eles me apoiaram. Foi por isso. Mas não foram só eles que me apoiaram. Esta história até me encabula um pouco. Sabe por quê? Aconteceu o seguinte: eu tive a segunda maior votação do Brasil2, de forma que não seriam os integralistas, que eram minoria absoluta, que iriam me eleger.

Ou tutelar.
Absolutamente. Tive votos no estado todo. O maior surpreso fui eu.

O senhor conheceu Luís Carlos Prestes no Congresso Nacional, certo? Eu me lembro de ouvir do senhor que o Prestes era uma pessoa que não gostava de ouvir...
Ele era um homem brusco, mas me dava a impressão de ser muito sincero – e eu o admirava pela sua sinceridade. Nessa ocasião, tive a alegria de conhecer pessoalmente nosso grande Jorge Amado. No senador Prestes, o que não me agradava era seu estilo intolerante. Eu nunca tive paciência para suportar gente intolerante, que não sabe ouvir, pessoas que se consideram donas da verdade. Mas, no nosso país, Prestes foi modelo de muitas virtudes: fidelidade, coerência. retidão, coragem.

Mas, professor, voltando um pouco ao integralismo. No primeiro número de Teoria e Debate, eu entrevistei o Fúlvio Abramo. Ele me contou de um episódio em 1934, dia 7 de outubro, na praça da Sé, quando se deu um enfrentamento armado entre integralistas e socialistas, ao qual esteve presente. O Mário Pedrosa, ferido a bala, foi parar no hospital. Ao que consta, era um comício integralista que os socialistas pretendiam desmanchar.
Não houve enfrentamento nenhum. O que houve foi uma repressão policial a uma manifestação de operários e estudantes. Foi uma tristeza. Operários morreram. Uma bala da polícia atingiu Mário Pedrosa.

O senhor estava lá, nesse dia?
Estava. Assisti a tudo. Eu era um estudante da Faculdade de Direito. Tinha dezenove anos de idade nessa ocasião.

Vocês estavam armados?
A manifestação era de operários e estudantes. Naquele tempo, ninguém andava armado.

E no cotidiano do movimento, vocês tinham reuniões, grupos de estudo?
Na Faculdade de Direito, existiam diversas associações, onde se realizavam reuniões animadas e acalorados debates sobre a política brasileira. Na Associação Álvares de Azevedo, na Academia de Letras da Faculdade, no próprio Centro Acadêmico XI de Agosto, reuniam-se estudantes de todas as tendências e de todos os partidos, para esses prélios políticos de grande interesse para a formação de líderes populares. Comunistas, integralistas e liberais ali vinham defender seus princípios. Lembro-me de uma longa polêmica, durante vários dias, sobre o tema "Autópsia de um regime". Este simples nome revela o desprezo dos estudantes pelo regime vigente naquela época. Lembro-me, também, que, na Associação Álvares de Azevedo e na Academia de Letras da Faculdade, realizavam-se conferências doutrinárias sobre os mais diversos assuntos. Devo dizer que os comunistas e os integralistas eram bons estudantes: liam muito e discutiam muito. Hoje, quando penso sobre esses fatos, verifico que, na verdade, todos eram idealistas, sonhando com um Brasil melhor. Quando nos encontramos na rua, abraçamo-nos comovidos, e com muita saudade. Quanto sonho, quanta pureza, quanto patriotismo, naqueles tempos!

Os militantes do integralismo eram pobres ou ricos?
O integralismo era um movimento de operários e estudantes, contra a burguesia em geral.

E não havia algum tipo de vinculação com forças políticas internacionais?
De forma nenhuma. O integralismo era um movimento essencialmente nacional, com sedes em todo o Brasil.

E na Constituição de 1946, qual era sua plataforma?
Sempre a defesa da democracia. Acontece que durante a Constituinte eu era muito jovem e inexperiente. Eu tinha 29 anos. Quase nunca conseguia a palavra. O Otávio Mangabeira, presidente da Câmara, e bom amigo, achava graça na minha batalha, e de vez em quando me abria uma janela. Uma luta que vale a pena lembrar foi aquela que travei contra o Instituto Internacional da Hiléia Amazônica, em 1947. Uma madrugada - as coisas muitas vezes me acontecem de madrugada porque sou muito madrugador, as pessoas sabem disto - recebo um telefonema do velho Dr. Artur Bernardes, deputado, ex-presidente da República, que me disse o seguinte: "Professor Goffredo, tome um táxi e venha imediatamente ao meu apartamento porque estão vendendo o Brasil." Chegando lá ele me contou tudo. O governo acabava de assinar um tratado internacional de fundação do Instituto Internacional da Hiléia Amazônica. Em seguida, me mostrou os papéis sobre as funções e os planos do instituto. Era uma vergonha. O instituto, com sede em Manaus, sustentado por dinheiro brasileiro, reunia delegados dos Estados Unidos e dos nossos países vizinhos. O Brasil comparecia com o mesmo direito deles e com o ônus de todas as despesas. Tudo feito em segredo, sem conhecimento da nação. Uma invasão do território nacional.

Quem assinou o tratado, o presidente da República em pessoa?
Foi. O general Dutra. Nessa madrugada ficou resolvido que eu faria o trabalho no plenário da Câmara, e o Dr. Artur Bernardes trabalharia nas comissões da Câmara e do Senado. No dia seguinte pronunciei meu primeiro discurso de alerta contra o instituto, que era uma intromissão perigosíssima dos Estados Unidos na Amazônia. Era uma cunha, uma ponta-de-lança que poderia se transformar em base militar dos Estados Unidos no meio da região.

E que justificativa foi usada pelo governo?
O pretexto era cultural, de pesquisas e de estudos. Li os documentos na tribuna da Câmara. A soberania nacional estava em jogo. Mas o tratado dependia do referendo do Congresso. Eu fiz o meu discurso. O Parlamento se emocionou. Interesses suspeitos imediatamente se manifestaram. Nesse tempo eu morava no Hotel Serrador, que ficava perto da Câmara. Uma coisa surpreendente aconteceu. A Marinha resolveu, sem me dizer nada, fazer um corredor de marinheiros. Sabendo que eu voltava a pé do Congresso, postou marinheiros dos dois lados da rua São José, e eu passava por ali sem saber que estava sendo protegido pela Marinha. Temiam que eu fosse agredido. Dois dias depois, fiz meu segundo discurso. O Dr. Artur Bernardes trabalhou com grande competência. E conseguimos que o Congresso negasse o referendo. Assim, derrubamos o tratado, que já estava assinado.

E a cassação do Partido Comunista?
Aquilo foi uma vergonha. Votei contra a cassação e apresentei, por escrito, minha declaração de voto.

O senhor recebeu título de professor emérito da Universidade de São Paulo, logo após sua aposentadoria, em 1985. Porém, pouco tempo antes, a Congregação da Faculdade negou o título a diversos docentes, entre os quais o senhor.
Creio que não foi unia decisão contra mim, pessoalmente. Foi uma decisão de ordem geral, e a Congregação acabou fazendo o que, eu acho, não queria fazer. Foi para mim um grande choque, mas entendi o que havia acontecido. Poucos dias depois, o Conselho Universitário, por proposta de um estudante da Faculdade, corrigiu tudo, e me deu uma alegria inesperada e extraordinária. Concedeu-me, por votação unânime, o título de Professor Emérito da Universidade de São Paulo.

O Conselho Universitário reparou o erro da Congregação da Faculdade?
Eu não pedi nada e não mereço nada. A Congregação da Faculdade é soberana, e fez o que quis. Eu sei que não foi contra mim. mas eu acabei atingido. Mas não penso mais nisso. Todos os professores da Congregação foram queridos alunos meus. O Conselho Universitário, num gesto de grandeza e bondade, me conferiu o mais alto dos títulos.

O senhor deve ter vivido seus piores e melhores dias daquela faculdade.
A Faculdade é a minha casa, minha escola, minha insigne academia. Ela é minha. Ali dentro vivi grandes dias e grandes batalhas. Ali dentro dei cursos de Direito e de Justiça para muitas gerações. Lecionei 45 anos.

Que mistérios há naquelas arcadas, professor? A sociedade secreta da Burschenschast, fundada por Júlio Frank, o Maçom, que está hoje enterrado lá dentro, ainda persiste?
Não sei. A "Bucha" sempre foi muito poderosa no Brasil. Ninguém podia ocupar, em nosso país, os altos postos de mando sem pertencer a esta sociedade. Era uma sociedade muito bem estruturada. que prestava auxílios secretos a políticos, estudantes e funcionários.

Como é um auxílio secreto?
Por exemplo: um funcionário tinha a mulher doente, sem dinheiro para a internação no hospital, e de repente recebia um envelope fechado com a quantia necessária para cobrir todas as despesas. O funcionário nunca ficava sabendo de onde velo o auxilio.

Ou portas que se abriam e fechavam misteriosamente?
É. Pessoas que estavam em desgraça eram amparadas, apoios políticos eram decididos, sustentações eram retiradas, mas tudo no maior anonimato.

A "bucha" ganhou força desde o final do século passado?
É o que dizem.

Ela ainda existe, não é?
Eu não sei. Os que pertencem, ou pertenceram à "Bucha", têm um juramento de não revelar nada.

Durante a Semana de Arte Moderna de 1922, o senhor tinha sete anos de idade. Por mais precoce que fosse, não poderia ser um artista de vanguarda com modernistas. Mas sua família sempre teve ligações estreitas com os modernistas. Como é que o senhor viveu tudo aquilo?
Em 1922 nós não estávamos no Brasil. Estávamos em Paris, já fazia dois anos. Meu pai, o poeta Goffredo Telles, autor de Fada nua e de O Mar da noite, tinha compromissos profissionais na França, e ficamos num apartamento de que conservo uma doce lembrança. Foi lá que aprendi a ler com minha avó. Eu freqüentei um curso, que é célebre até hoje, chamado "Cours Acmèr". Aprendi francês muito bem. E eu falava francês e inglês, principalmente o inglês, melhor do que o português. Isso me fez muito bem porque me levou diretamente aos grandes nomes da literatura dessas duas línguas. Até hoje prefiro lê-los no original.

E o 22?
Eu tomei conhecimento de 22 voltando da Europa. Eu era muito criança, mas como a nossa casa...

Onde ficava a casa de vocês?
Ficava num lugar poético. Na esquina da rua Conselheiro Nébias com a avenida Duque de Caxias, nos Campos Elíseos, bem perto do Palácio do Governo. A casa infelizmente não existe mais, porque a Prefeitura alargou a Duque de Caxias e desapropriou a casa. Foi uma pena. Ela era rodeada de um jardim com imensas árvores, onde os pássaros faziam ninhos... Eu me lembro também dos sabiás fazendo ninhos nas árvores mais altas, junto ao telhado da casa. E foi exatamente neste parque que a minha avó, Olívia Penteado, criou o Salão de Arte Moderna, depois de 1922, onde apareceram, pela primeira vez em São Paulo, obras de grandes artistas modernos: Picasso, Léger, Braque, Lhote, Brancusi, Lipchitz, Foujita, Marie Laurencin e outros. A minha família não participou diretamente da Semana de 22, apenas estávamos muito ligados àqueles que fizeram o movimento. Meus pais e minha avó eram amigos de todos: Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Villa-Lobos, Menotti Del Picchia, Antonieta Rudge, Cassiano Ricardo, Plínio Salgado, Guilherme de Almeida, Annita Malfatti, Lasar Segall, Gregório Warchavchsky, Di Cavalcanti, Brecheret, Camargo Guarnieri. Lembro-me da Pagu mocinha, aos pés do Oswald, Annita Malfatti era nossa amiga muito querida, fez até um retrato de minha mãe. Segall fez o retrato de meu pai. Não posso esquecer Blaise Cendrars, o grande escritor francês de origem suíça, que também pertencia ao grupo. Nota - importante desse tempo: Segall, pessoalmente, pintou as paredes e o teto do Salão de Arte Moderna, de minha avó Olívia. Outra nota: Villa-Lobos foi meu professor de capoeira, no gramado da fazenda. E não é só isso. Aprendi com ele a fazer pipas. Ele construía papagaios extraordinários, de todos os tipos, tamanhos e formas. Havia uma pipa com 2,5 metros de comprimento, feita com varetas de bambu. Eu lembro que no grosso papel das pipas, todos nós escrevemos alguma coisa. Eu escrevi: Non plus ultra. Tarsila foi minha professora de desenho. Devo ter sido um péssimo aluno.

E essa roda cultural também se reunia na fazenda de vocês, em Araras?
Ah, Fazenda Santo Antônio... Nossa velha e querida fazenda, fundada em 1833, por Antônio Álvares de Almeida Lima, bisavô de minha avó Olívia. Ele ali está enterrado, sob uma pequena campa original, atrás do grande cruzeiro de peroba. Nessa fazenda é que aprendi a andar e a sonhar. Ali aprendi a linguagem das árvores, das flores e dos bichos. Aprendi o mistério do tempo e das estações do ano. Aprendi o que é paciência. E aprendi o que é a beleza. Ali se reuniram, muitas vezes, os mencionados amigos. Reuniam-se para conversar, discutir, rir, passear.

A fazenda hoje não está repartida entre os irmãos?
Sim. Antes mesmo do falecimento do meu pai, em janeiro de 1980, ela foi doada aos filhos, e então dividida. Cada filho ficou com uma parte.

Professor, não há como evitar uma pergunta que muitos petistas devem estar querendo fazer, ao ler esta entrevista: Não há contradição entre ser fazendeiro e socialista?
A nossa fazenda é antiga, vem passando de pais a filhos desde princípios do século passado. Eu a amo. Mas se eu tiver que entregá-la para a vitória do socialismo, eu a entregarei sem dúvida nenhuma. Com a vitória de minhas idéias, eu tenho muito a perder. Mas com essa vitória, eu ganho a batalha de minha vida. Eu sou um democrata. Eu sou um socialista. Sonho com um mundo de justiça. Sonho com um mundo de fraternidade humana.

É verdade que o senhor foi cotado, pelos próprios governos militares, para redigir a Constituição depois do Golpe de 1964?
Nunca! Que idéia! A partir de 1964, tudo tenho feito para mudar o rumo dos acontecimentos. Sempre combati os governos militares. Não os tolero. Tentei restabelecer a democracia com um projeto de Constituição que foi entregue ao general Costa e Silva, a pedido dos generais da oposição, velhos amigos de outros tempos.

Quais generais?
Não vou dar nomes. Era gente do Rio Grande do Sul. O fato é que estes generais conheciam as minhas idéias. Devo dizer que eu tive um momento de esperança. Pensei que se poderia alterar o sistema de representação democrática em nosso país. Não é preciso que eu diga que imediatamente perdi essa esperança. Mas fui, mais de uma vez, procurado por militares, sempre do Rio Grande do Sul, que me pediram que expusesse por escrito essas idéias para uma nova democracia no nosso país. Houve muita insistência. Realmente redigi um projeto de Constituição. Eu e minha mulher fomos a Brasília e ali fizemos a entrega, no Gabinete da Presidência. Nunca recebi a menor resposta. O que eu verifico hoje é que eu estava sonhando. Estava fora da realidade. Acontece que, antes disso, o Costa e Silva tinha pedido a colaboração das universidades para a instituição de um novo regime político no Brasil. Tempos depois, eu requeri ao Instituto dos Advogados de São Paulo a elaboração de um outro projeto de Constituição. O Instituto aprovou a proposta e nomeou uma comissão, da qual eu fui o coordenador. Trabalhamos na Faculdade de Direito durante cerca de três meses. O projeto foi então encaminhado ao governo pelo Instituto. Não é preciso que eu diga que este projeto morreu sem resposta nenhuma, sem a menor manifestação do governo.

Este projeto que foi ao Costa e Silva não tem nada a ver com aquele outro que o senhor entregou para o Médici?
As minhas idéias e concepções são sempre as mesmas, e são bem conhecidas. Mas o que foi ao Costa e Silva, o primeiro, foi redigido por mim pessoalmente, e o segundo foi elaborado por uma comissão do Instituto dos Advogados de São Paulo. Em verdade, o que nós queríamos era forçar o governo a convocar uma Assembléia Constituinte, e tomar um caminho que levasse à democracia.

O senhor já não tinha, nessa época, notícias das prisões e desaparecimentos dentro da esquerda brasileira?
Esta pergunta merece uma resposta solene. Em minha casa, veja bem, em minha casa, na rua Martins Fontes, é que nós nos reuníamos à noite, nós, professores de diversas faculdades, em sessões secretas, para acompanhar pelo rádio, pela televisão, pelo telefone, as notícias dramáticas de nossas próprias cassações. Nós ficávamos ali, em volta do rádio, em volta da televisão, à espera do pronunciamento dos nossos nomes. Muitos dos nossos companheiros souberam de suas cassações nessas reuniões em minha casa. Eu mesmo esperava, a qualquer momento, a minha própria cassação. Eu me lembro de um telefonema que recebi, às quatro horas da manhã, do próprio ministro da Justiça, Gama e Silva3, comunicando que o meu nome estava em primeiro lugar na lista de cassações, mas que ele o havia riscado. Eu então perguntei por que motivo ele havia riscado o meu nome. Ele disse: "Eu não suportei, não agüentei a tristeza de vê-lo cassado". Ele também era professor da Faculdade de Direito e era meu amigo desde nossos tempos de juventude. Portanto, eu não só tinha o conhecimento da repressão política como era alvo dela. Vou contar um caso para vocês terem bem idéia da situação em que vivíamos. Eu estava exercendo a diretoria da Faculdade, internamente, quando fui convocado pelo Tribunal Militar para prestar depoimento no processo movido contra Caio Prado Júnior. Fui prestar meu depoimento e aproveitei a oportunidade para fazer a biografia de Caio Prado, mostrando quem era ele, coisa que os juízes desconheciam completamente. Terminei o depoimento dizendo que nenhum de nós, nenhum dos juízes, dos promotores e nem eu mesmo, nenhum de nós tinha, nem de longe, a importância intelectual de Caio Prado. Pela sua obra, pelo alcance internacional de suas idéias, ele era muitíssimo mais importante do que todos aqueles que estavam sentados ali, em volta daquela mesa de juízes fardados. Eu disse finalmente que seria uma injustiça de repercussão internacional qualquer condenação de um homem como aquele. Ele era livre-docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. E eu só não fui preso porque a multidão de acadêmicos do Largo rapidamente me envolveu e me salvou.

Em 1968, a faculdade foi ocupada pelos estudantes. São sempre lembrados aqueles que apoiaram a ocupação, entre esses alguns professores da casa, como o senhor mesmo.
Eu estava ao lado deles. De alma, de coração. Sempre estive ao lado deles. Durante a ocupação, organizamos cursos sobre os rumos futuros da Universidade e da Faculdade. Nós nos reuníamos no Centro Acadêmico XI de Agosto, no pátio, na escadaria. Éramos sete ou oito professores: Cesarino Júnior, Ignácio Mesquita, Rocha Barros, Canuto Mendes de Almeida e outros professores. Estávamos ali constantemente, tínhamos entrada e saída livre no prédio ocupado. Eu me lembro que quando isso começou, bem no começo, estava em curso uma espécie de reunião dos professores. Havia uma grande agitação docente. O diretor era exatamente esse...

Não vamos pronunciar esse nome, professor. Eu já vi, numa reunião com estudantes, o senhor evitando pronunciá-lo.
Pois é, ele mesmo4. Triste figura, de quem não quero falar. Lembro-me que eu lhe disse: "Olha, se os senhores quiserem sair, eu os acompanho até lá embaixo." Ele me respondeu, profundamente irritado: "Você está louco, nós vamos ser lapidados!" Eu lhe disse: "Não, se eu for com os senhores, ninguém será lapidado." E continuei: "Vou sozinho, agora mesmo vou falar com os estudantes." Na qualidade de diretor da Faculdade, ele exclamou: "Não, não vá! Você vai ser morto lá embaixo! " Sorrindo, saída sala, desci e conversei com os estudantes, meus eternos amigos. A mobilização era pacífica, totalmente desarmada. Conversei longamente com os acadêmicos e combinei a retirada dos professores. E assim se encerrou este episódio.

E nem uma vaiazinha?
Olha, eu não me lembro de vaia não.

Pois então: o senhor era um participante da ocupação histórica da faculdade de Direito em 1968; estava permanentemente ameaçado de ser cassado e tinha o conhecimento da repressão política. Ao mesmo tempo, no entanto, levava um projeto de Constituição ao general Médici. Parecem atitudes opostas. Se o tempo voltasse, o senhor agiria da mesma forma?
Se houvesse novamente ditadura militar?

Sim.
Olha, se houver ditadura estarei na primeira linha para combatê-la.

Não, professor, disso ninguém duvida. A pergunta é outra: o senhor entregaria novamente projetos de Constituição para um general?
Esteja quem estiver na Presidência da República, inundarei sempre o país com minhas proclamações democráticas. Não será um general na Presidência que irá me desestimular na minha pregação. Eu tinha a esperança de que meus projetos nas mãos do general-presidente pudessem ter o efeito de mísseis atirados contra a ditadura. Vã esperança. Mas iniciativa válida.

O senhor fala muito em fraternidade e dialogou até com os militares, sem se arrepender. Sua vida parece perseguir o bem, se me permite dizer assim. Professor, o senhor acredita em Deus?
Uniforme é o fenômeno da vida. A célula de uma ameba e a célula de um homem são indústrias muito semelhantes. No protozoário, na árvore, nas flores, na lagarta, na andorinha, no meu cachorrinho, em Beethoven; a oficina primordial da vida é sempre a mesma. Somos todos irmãos, nós, os vivos. Somos irmãos, porque somos biologicamente semelhantes. "Todos são iguais perante a lei", diz o Direito. Tal é o mandamento jurídico mais sublime. Com realismo científico, logo após as descobertas modernas sobre a engenharia uniforme de todas as células, afirmamos, extasiados, que todos nós somos irmãos de todos os seres vivos. Como irmãos, somos criaturas de um mesmo pai. E não seria de surpreender que, em meio do deslumbramento que nos ilumina, nossos lábios se ponham a murmurar as palavras que nos ensinaram quando éramos crianças: "Pai nosso que estais nos céus..."

Eugênio Bucci é editor de Teoria e Debate.