Internacional

Pouco a pouco, começa-se a perceber que o edifício montado pela ditadura é bem maior do que a pessoa do general-ditador Augusto Pinochet. Apesar do estridente não, que a sociedade lhe impôs, o tirano arvora-se a "missão" de organizar o recuo de suas forças, entrincheirando-se em tramóias legais, ardis constitucionais e esquisitices jurídicas generalizadas

O general Augusto Pinochet sofreu uma contundente derrota no plebiscito realizado em 5 de outubro de 1988. Quase 55% do eleitorado chileno votou não: rechaçou a proposta de que Pinochet continuasse no poder por mais 8 anos. Após quinze anos de ditadura militar, a derrota do general-candidato terá outras repercussões além das eleitorais, que marcarão os caminhos por que passará o processo de transição que parece iniciar-se.

Um pouco de história

O plebiscito convocado pela ditadura chilena era um mecanismo de sucessão, estabelecido pela Constituição de 1980, mediante o qual os eleitores, com um simples SIM ou NÃO, prorrogavam ou rechaçavam o mandato do ditador. No caso da recusa à continuidade do mandato, a Carta fundamental estabelece a realização de eleições abertas para presidente da República em dezembro de 1989.

O plebiscito foi concebido em 1979/80 como um mero trâmite para legitimar e prolongar uma ditadura pessoal. Quando a Constituição foi redigida, em 1979, pensava-se que o Milagre econômico de 1976-1980 continuaria e que, ao cabo de alguns anos, seus benefícios alcançariam vastos setores sociais, principalmente os empresários de todos os tamanhos e as classes médias, além de alguns segmentos dos assalariados. Segundo os ideólogos do regime, essa seria a base da ampliação da aliança que dera sustento à ditadura. Aliança social que, seguramente, deveria se transformar em votos no momento de convocação às urnas.

A Constituição de 1980 foi aprovada por meio de um fraudulento plebiscito. Até hoje se desconhece a magnitude da fraude imposta naquela oportunidade. Basta dizer que o regime indicou que essa Constituição contou com o apoio de quase 70% da população eleitoral. É necessário assinalar que o plebiscito de 1980 realizou-se sem registros eleitorais, sem acesso da oposição aos meios de comunicação de massa e sem controle de nenhum tipo sobre o ato eleitoral. Naquele momento, ademais, milhares de chilenos permaneciam no exílio, havia centenas de presos políticos e os aparatos repressivos estavam em plena atividade.

Além de enfrentar com relativo sucesso as grandes mobilizações populares de 1983 a 1986, Pinochet logrou outro êxito aparente. Conseguiu que o grosso das forças opositoras aceitasse as regras do jogo, impostas por meio da institucionalidade constitucional. O ditador, por certo, não esperava perder o referendo.

A camisa-de-força

Muitos juristas qualificaram a institucionalidade pinochetista como um traje sob medida para que o ditador se perpetuasse no poder. Mas não é só isso. A Constituição de 80 desenha um modelo refundacional da sociedade chilena tanto em seus aspectos políticos como econômicos, sociais, culturais e ideológicos. Permite também a permanência de uma tutela militar sobre o conjunto da sociedade, que se materializa pela inamovibilidade dos comandantes-em-chefe das Forças Armadas e pela existência de um Conselho de Segurança Nacional (CSN) integrado por uma maioria de representantes militares.

A Constituição de 1980, ademais, foi acompanhada de uma articulação transitória que se aplicou irrestritamente durante oito anos, permitindo ao regime manter em atividade seus aparatos repressivos (a Central Nacional de Informação-CNI, principalmente) e uma ampla lista de medidas restritivas das liberdades individuais e públicas (interdições ao direito de reunião, aplicação de estados de emergência, proibições à imprensa etc.). Toda essa articulação transitória deixará o comando do país no próximo mês de março de 1989.

O mais importante, porém, para efeito desta análise, é consignar que a Constituição de 1980 estabeleceu o mecanismo de sucessão presidencial: o plebiscito de 1988. Este, entretanto, não podia reproduzir uma fraude tão aberta como a de 1980: seus resultados deveriam gerar um consenso mais amplo do que os do plebiscito de 1980. O objetivo era que as urnas legitimassem a permanência da ditadura.

Para conseguir legitimidade, o regime precisava que a oposição participasse do evento - pelo menos a oposição burguesa e um segmento da oposição popular. A ditadura se propunha a derrotar e subordinar a primeira e infringir à segunda, a oposição popular, uma derrota que impedisse sua rearticulação a longo prazo.

No entanto, a oposição - toda ela - tinha logrado rearticular-se nacionalmente no curso dos anos 80, principalmente com as jornadas de protesto que se verificaram a partir de 1983. Um fator que não fora previsto pelos ideólogos da ditadura quando elaboraram os procedimentos que permitiriam perpetuar institucionalmente o regime. Tampouco estava previsto que o modelo econômico iria por água abaixo e que sofreria um novo ciclo crítico, de meados de 1981 até 1984.

De qualquer forma, o chamado calendário institucional seguiu seu caminho. Posteriormente confirmou-se que, no interior do regime, mantinha-se a idéia de que o plebiscito seria inevitavelmente ganho pelo candidato proposto pelos comandantes das Forças Armadas. Por isso, durante todo o ano de 1987, a ditadura se empenhou em fazer tramitar, com rapidez e eficiência poucas vezes; conhecidas, a totalidade das leis políticas que regeriam a realização do plebiscito. Assim, promulgou-se a lei dos partidos políticos, a dos registros eleitorais e, mais tarde, a das votações e escrutínios. Já em meados do ano passado, o pacote estava completo. Naturalmente, isso introduziu um novo tema de debate entre as forças oposicionistas. As definições giravam em torno da participação ou não nos eventos programados pela ditadura, o que significava aceitar ou não parte da institucionalidade do regime.

Rumo ao plebiscito

Foram as forças políticas de centro e centro-esquerda que primeiro chegaram a definições sobre a forma de participação na institucionalização do regime. Já no final de 1987, o recentemente criado Partido pela Democracia (PPD - organizado como uma coletividade instrumental pelo PS-Nuñez para participar do plebiscito) lançou sua proposta de enfrentar Pinochet nas urnas. Mais tarde, em fevereiro de 1988, a Democracia Cristã (DC) fez o mesmo: iniciou os trâmites para sua legalização e convocou os chilenos para a inscrição eleitoral. Tal decisão foi assumida em seguida por outras coletividades do centro político, enquanto alguns agrupamentos da esquerda (Partido Socialista-Almeyda - PS-Almeyda, PR, IC, Movimento de Acción Popular Unificada-MAPU) inclinaram-se a favorecer somente a inscrição nos registros, para viabilizar o voto nas urnas. Deve-se ressaltar que a legislação ditatorial impede que os principais partidos de esquerda (Partido Comunista - PC, PS-Almeyda, Movimiento de Isquerda Revolucionária - MIR) possam ser legalizados nas suas formas atuais. Esse é um problema que começa a ser analisado pelas forças esquerdistas.

Em fevereiro de 1988 um total de treze partidos oposicionistas decidem fazer um acordo e convocar o NÃO no plebiscito; naquele momento, entretanto, não se conhecia a data de realização do evento. A partir de março, esses partidos iniciaram a campanha pelo NÃO. No entanto, do acordo estavam marginalizados o Partido Comunista e o MIR - entre outras coisas, por não terem se decidido a respeito da participação no plebiscito.

Os setores do centro político, aliados a segmentos importantes da esquerda (entre os quais várias das forças socialistas), iniciaram sua campanha nacional. Primeiro, com o objetivo de tentar romper o padrão eleitoral que a ditadura pretendia impor. Convinha à ditadura, segundo suas estimativas, que o eleitorado votante não ultrapassasse os 3 ou 4 milhões de inscritos, já que com esse universo as possibilidades do candidato oficial aumentariam consideravelmente. Por isso, a oposição se propôs a alcançar um universo próximo de 6 milhões de cidadãos, como garantia básica para participar no referendo. Como esta não era um exigência da ditadura, foi a própria oposição que trabalhou durante vários meses, até alcançar um universo que chegou, finalmente, a pouco mais de 7 milhões de inscritos - o mais alto número de votantes que se conhece na história do Chile.

Outras condições que a oposição exigiu se referiam à supressão dos estados de exceção (que regeram o país ininterruptamente, durante quinze anos), o término do exílio e o acesso aos meios de comunicação, principalmente a TV. Enquanto isso, milhares de jovens realizaram pequenos atos e jornadas preparando a população para o evento que se aproximava. Tudo isso se fez em um clima de incertezas ainda não se conhecia a data de realização do plebiscito, nem o nome do candidato que as Forças Armadas proporiam. Ainda que, é claro, todos soubessem que o designado seria o general Pinochet.

Pinochetização da campanha

A Constituição de 1980 havia estabelecido mecanismos para designação do candidato ao plebiscito. Tal designação era prerrogativa exclusiva dos comandantes-em-chefe das Forças Armadas, os quais deviam adotar a decisão por consenso. No caso de não poderem chegar a um acordo, a prerrogativa de indicação passaria ao Conselho de Segurança Nacional, onde Pinochet contava com a maioria dos membros. Mas não houve necessidade de recorrer a esta segunda instância. Desde janeiro de 1988 Pinochet pressionava descaradamente para obter sua designação; e, de fato, sem escrúpulos, iniciou sua campanha. Por isso a oposição pôde, desde o início, centrar seu trabalho na idéia de que Pinochet seria o candidato.

Surpreendentemente, como costumam atuar os militares, no início de agosto anunciou-se que os chefes militares se reuniriam no final do mês para fazer a designação. Em 30 de agosto, os chefes das Forças Armadas, incluindo o próprio Pinochet, reuniram-se e deram a notícia que não surpreendeu ninguém: o ditador seria o candidato e o plebiscito se realizaria em 5 de outubro.

Desde as primeiras horas do dia da designação, milhares de chilenos mostraram seu repúdio à decisão dos chefes militares. Já no começo da noite o país inteiro exercia, nas ruas e nas praças, seu direito ao protesto. A partir desse dia, a campanha plebiscitária, no dizer de alguns analistas, se "pinochetizou".

A campanha pelo NÃO adquiria mais força. Em todo o país, cerca de 200 comandos comunitários de base foram organizados, os quais desenvolviam atividades diárias de propaganda e organização. No plano político, o PC e o MIR também se decidiram por convocar o voto no NÃO. Assim o arco oposicionista completo se encaminhou para uma conduta comum frente à ditadura.

Os partidos oposicionistas decidiram aproveitar todos os espaços que a lei eleitoral permitia para controlar o evento. A partir daí lançaram-se à tarefa de capacitar os fiscais de mesa que vigiariam a votação, ao mesmo tempo que quase uma centena de técnicos montava um sistema computacional de registro dos votos. A idéia central era impedir que nova fraude se consumasse. A oposição tinha fundadas suspeitas e nada permitia supor que o regime reconheceria sua derrota, como se verificaria mais tarde.

Nas fileiras do regime também se produziam realinhamentos. As forças políticas de direita e ultradireita não duvidaram em proclamar seu apoio à ditadura e lançar-se à captura dos votos em todos os segmentos da sociedade. Mas a secular desconfiança dos militares em relação aos políticos fez com que a ditadura tomasse uma decisão que mais tarde, quando não poderia fazer mais nada, consideraria equivocada: organizou sua campanha sob a direção de alguns generais, aliados incondicionais de Pinochet, e submeteu as forças políticas ao mando destes. O principal gestor da campanha pinochetista foi o vice-comandante do Exército Santiago Sinclair, que contou com o apoio de dezenas de altos oficiais na condução política direta. Para efeitos públicos, o chefe do gabinete ministerial, Sérgio Fernandez (casualmente o mesmo que ocupava esse cargo no plebiscito de 1980), coordenou as forças favoráveis ao SIM ao general Pinochet.

Até hoje se desconhecem os gastos financeiros da campanha pinochetista, embora se conheça sua origem: os fundos públicos. De fato, toda a estrutura eleitoral de Pinochet se assentou no próprio governo e seus funcionários. O Estado se transformou em uma gigantesca máquina eleitoral, valendo-se de todos os recursos disponíveis e do apoio militar-repressivo das Forças Armadas e dos quadros de segurança.

Maoísmo ao inverso

A grande dificuldade da oposição era que suas forças concentravam-se e eram vigorosas nos grandes centros urbanos, mas sua organização e presença no campo e comunidades afastadas era incipiente. Isso tem uma explicação: a rearticulação democrática se produziu nas cidades, no calor das jornadas de mobilização.

Por isso, os dirigentes oposicionistas propuseram-se a avançar das cidades em direção ao campo, exatamente o inverso da estratégia maoísta. Para isso, o essencial, mais que o ativismo político, sem dúvida, era aproveitar o poder de penetração da televisão.

Hoje, muitos analistas assinalam que um dos fatores determinantes do triunfo do NÃO foi o bom aproveitamento que a oposição fez desse veículo de comunicação de massa. A partir de meados de setembro, diariamente e durante 27 dias, por 15 minutos, a população pôde receber a mensagem oposicionista - o que não havia ocorrido em 15 anos. Os programas do NAO foram criativos, divertidos, e souberam transmitir uma mensagem desprovida de revanchismo. Dessa maneira desarticularam o discurso oficial segundo o qual o triunfo do NÃO significava o caos, o desastre econômico e a violência. Com inteligência, a faixa de propaganda do NÃO se impôs sobre a mal-elaborada publicidade da ditadura. E foi um fator de importante penetração nas zonas rurais e localidades distantes.

As gigantescas mobilizações de massa dotaram o plebiscito de um caráter distinto daquele que o regime queria. A campanha plebiscitária, com todos seus componentes, conseguiu, em síntese, o que o trabalho de muitos anos não havia conseguido: politizar o país e articular nacionalmente o repúdio à tirania.

O dia do plebiscito

Desde muito cedo, o dia 5 de outubro começou com uma não habitual atividade de pessoas que se deslocavam para seus lugares de votação. Nem sequer o corte de luz que aconteceu na noite anterior (cuja autoria não se conhece, mas as opiniões coincidem em responsabilizar os aparatos de segurança) conseguiu inibir o desejo dos cidadãos de comparecer às urnas. A inquietação, entretanto, começou a partir das 10 horas da manhã, quando se percebeu que o regime tentava falsear os cômputos, ao entregar cifras erradas que subvalorizavam o processo de votação nas mesas receptoras. Mais tarde, quando o porta-voz da ditadura decidiu entregar os primeiros cômputos, as suspeitas se confirmaram. Tornou-se evidente que a ditadura manipulava as cifras, com a esperança de consolidar uma fraude e, inclusive, autogolpe. A oposição, que contava com um sistema de recontagem paralela, foi audaz e desmentiu o governo, anunciando suas próprias contas: o NÃO estava ganhando. O regime, entretanto, resistia. Até o início da noite, já no final da jornada, Pinochet convocou seus ministros e também os comandantes dos outros ramos das Forças Armadas à sede do governo. Entretanto, pouco antes de chegar à reunião, o chefe da Força Aérea, Fernando Matthei, reconheceu que a oposição ganhara o plebiscito. Foi o primeiro reconhecimento não-oficial do triunfo do NÃO.

Mais tarde, se saberia que estas declarações significaram um sério revés para os setores militares que, nessa mesma noite, pretendiam ignorar os resultados e, eventualmente, chegar a uma situação de golpe de Estado. A pouco mais de um mês do plebiscito, ainda não se conhece em toda sua magnitude a intentona golpista que fracassou naquela noite.

De fato, as possibilidades de um golpe de mão foram bloqueadas por vários fatores. Os mais importantes estão relacionados à falta de unidade de critérios no interior das Forças Armadas, ao desprendimento e à separação de águas que caracterizaram algumas das principais forças direitistas, à contundência da votação oposicionista e à presença no país de centenas de observadores e jornalistas estrangeiros. Mas, mais que todos esses fatores juntos, pesou para os analistas da ditadura a percepção de que a permanência de Pinochet no poder, pela força, não garantiria os interesses dos grupos sociais e econômicos que o regime militar pretende representar. Fora uma aventura sem destino, com o agravante de uma séria fratura nas forças que deram sustentação ao regime militar.

Foi assim que o plebiscito culminou com um claro triunfo das forças oposicionistas, que obrigou seu reconhecimento pelo regime. A partir desse momento iniciou-se uma nova fase política no Chile.

Depois do desastre eleitoral

O triunfo do NÃO foi uma grande derrota para a ditadura. Por isso, na mesma noite da derrota, todo o gabinete de Pinochet apresentou sua renúncia. No entanto, hábil e calculista, Pinochet percebeu que reorganizar os ministérios equivalia a reconhecer a profundidade do fracasso. Por isso, preferiu esperar.

A oposição, entretanto, tomou a si a tarefa de preparar sua proposta de negociação. Não aproveitou a situação para pedir a saída do ditador. Concentrou-se em solicitar uma série de reformas constitucionais que "favoreceriam uma transição ordenada para a democracia". A ruptura da institucionalidade ditatorial foi diferente, isso porque, no transcurso da campanha do NÃO, o centro político conseguiu hegemonizar politicamente a condução. A esquerda somente conseguiu definir o perfil das mobilizações, mas ficou relegada a segundo plano no nível das decisões mais transcendentes.

O regime militar aproveitou esse espaço para tentar reorganizar suas forças. Três semanas após sua derrota, anunciou uma nova equipe ministerial, integrada por conhecidas figuras da direita chilena, partidária convicta do modelo econômico, e que tem como tarefa claramente explicitada terminar de privatizar as poucas empresas que estão em mãos do Estado. E um gabinete cuja missão política será também a de iniciar sondagens entre as forças oposicionistas, mesmo que não seja diretamente. Presume-se que a negociação entre a ditadura e algumas forças oposicionistas (excluída a esquerda, é claro) se realizará através das forças políticas de direita.

A segunda esfera de mudanças e reordenamentos produziu-se na área militar, principalmente no Exército. Ali o próprio Pinochet dirigiu as promoções e retiradas dos mais altos oficiais. Um total de treze altos chefes do Exército foram reunidos das fileiras - entre eles, os mais diretamente envolvidos na fracassada campanha eleitoral.

Se na noite do dia 5 o povo decidiu não ocupar as ruas, a situação mudou radicalmente a partir da manhã do dia 6 de outubro: em todas as cidades do país, milhões de chilenos celebravam a vitória e cantavam com esperança a queda do ditador. Mais uma vez, se repetia uma curiosa originalidade que caracteriza a história chilena. De fato, em setembro 1970, um candidato de esquerda ganhava as eleições com um programa que colocava explicitamente um governo de transição ao socialismo. E, apesar das tentativas de golpe, a classe dominante reconhecia o triunfo. Dezoito anos depois, um tirano era derrotado nas urnas e, apesar das tentativas de golpe e fraude, a classe dominante se via obrigada a reconhecer o triunfo da oposição. Estas situações históricas não se podem explicar com manuais, senão compreendendo a dinâmica específica da luta de classe em países como o Chile, que gera fenômenos dificilmente repetitivos em outros países do continente.

Entretanto, também não se devem esquecer as velhas lições da história. Recordemos que em 1970 a esquerda tomou o governo mas não o poder. E para o socialismo avançar era imprescindível a resolução da questão do poder, problema que a esquerda não soube nem pôde resolver. Dezoito anos depois, um dilema semelhante se apresenta novamente, ainda que as condições históricas sejam muito diferentes.

De fato, o triunfo do NÃO é uma derrota de Pinochet e da ditadura, mas não assegura, por si só, um processo de transição para a democracia. E é por isso que as esperanças populares de uma derrubada rápida da ditadura foram se desvanecendo com o passar dos dias. O tirano compreendeu que não podia continuar como presidente, mas entendeu como sua missão organizar um recuo ordenado de suas forças, entrincheirando-se no vasto território da Constituição de 1980, com suas casamatas e tramóias legais, destinadas a impedir o desenvolvimento da democracia no Chile. Dessa forma, ficou claro que o triunfo do NÃO não resolvia a questão democrática; ao contrário, colocavas com maior grandeza que antes. Pouco a pouco, começa-se a perceber que o edifício ditatorial erigido é maior que Pinochet. Progressivamente, vai se mostrando que para conquistar a democracia no Chile é imprescindível resolver a questão do poder, desalojando as forças autoritárias do Estado e desmantelando a aberração jurídica que caracteriza a Constituição de 1980.

Libio Perez é editor de política da revista Analisis.