Economia

A discussão no PT sobre salário mínimo

Talvez o primeiro ponto a ser ressaltado é que o conceito de salário mínimo necessárioA magnitude do salário mínimo necessário tem variado entre 5 e 6 vezes mais do que o piso nacional de salários.

Talvez o primeiro ponto a ser ressaltado é que o conceito de salário mínimo necessárioA magnitude do salário mínimo necessário tem variado entre 5 e 6 vezes mais do que o piso nacional de salários. que vem sendo calculado pelo Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Sócio-Econômicos – Dieese – começa a ocupar um espaço bem menos abrangente, circunscrevendo-se à agitação e à propaganda, e tornando-se ausente das plataformas de luta e programas de governo que o PT tem elaborado ultimamente, o que me parece um bom sinal, isto é, a magnitude desse salário mínimo necessário representa muito mais a dimensão da dívida social ou, como salienta Mattoso, "um marco, uma referência legal e de justiça social para o movimento sindical", do que um objetivo que precise ser alcançado, num período presidencial de quatro anos, por um governo petista.

Outro ponto crescentemente consensual: ainda que o aumento seja realizado em níveis inferiores ao salário mínimo necessário, essa operação deverá ser feita gradualmente. As pressões que um crescimento repentino da demanda pode exercer sobre os preços, desorganizando o mercado e provocando forte expansão inflacionária e/ou desabastecimento, tornaram-se não apenas um conhecimento teórico entre os economistas do PT, mas também prático, à luz da experiência do Plano Cruzado. No entanto, existem algumas discrepâncias sobre a forma pela qual esta elevação gradual poderia ser feita.

Notas complementares sobre o salário-família
Quando afirmei que o caminho para esta elevação seria o aumento do salário-família (o que obviamente não excluiria outras formas), minha preocupação era e continua sendo a seguinte: nem sempre o salário mínimo legal é confirmado, na prática, pelo salário mínimo de mercado. Um governo pode tomar a iniciativa de elevar o primeiro, mas, dependendo das condições de mercado (momento do ciclo econômico que se atravessa) ou do grau de sindicalização dos trabalhadores ou de fiscalização governamental, este salário nem sempre é efetivamente pago ao trabalhador. Desta forma, a elevação do salário mínimo legal pode não se concretizar num aumento real do salário mínimo, pois, através de vários artifícios, muitos trabalhadores acabarão recebendo menosNos setores pouco formalizados da economia, onde se pagam os salários mais baixos, para manter o emprego os trabalhadores negociam sua remuneração com os empregadores, geralmente recebendo menos do que deveriam por lei..

Quando a discrepância é muito grande, o que ocorre no setor formal é um certo grau de desemprego. Ao contrário, quando o salário mínimo legal é muito baixo, uma proporção crescente de trabalhadores recebe mais do que ele. Isto é, os níveis mínimos de mercado que os empregadores estão dispostos a pagar superam o mínimo legal. A proposta de elevação do salário mínimo por meio do salário-família teria por objetivo central minimizar os obstáculos impostos por esses movimentos do mercado.

O salário mínimo legal poderia aumentar, portanto, com a elevação substancial do salário-família, e os recursos necessários seriam obtidos pela via tributária. Dessa forma, o poder de compra se expandiria, e o nível de vida dos trabalhadores melhoraria, com todas as conseqüências econômicas e sociais que isso acarreta, sem que o mercado de força de trabalho fosse parcialmente inviabilizado. A tensão evidentemente se deslocaria para as espinhosas relações entre o governo e os contribuintes.

Obviamente, uma política tributária de um governo democrático-popular deve escolher como fontes principais de arrecadação os mais ricos, o problema aqui seria como impedir que estes últimos passassem a carga adiante, via preços, alimentando a inflação etc., ou que os investimentos fossem inibidos. Em meu artigo anterior, já adiantava que essa não seria uma tarefa simples. Em todo caso, creio ter esclarecido que:

1 - a elevação do salário mínimo via salário-família não exclui a elevação do salário mínimo legal, desde que este não se situe muito acima dos níveis de mercado;

2 - a elevação do salário-família pago com fundos públicos não significa passar do patronato para as mãos do Estado a responsabilidade de proporcionar um salário justo aos trabalhadores, pois os recursos adicionais necessários seriam obtidos, via tributação, especialmente dos próprios empresários.

O salário mínimo e a Constituição
A nova Constituição brasileira reafirmou o princípio do salário mínimo como a remuneração necessária para manter o trabalhador e sua família; isto é, o salário mínimo como salário familiar. Mas reafirmou também um dispositivo redundante: aquele que estabelece o salário-família para os dependentes do trabalhador. Se o salário permite à família seu sustento, para que um salário-família?

 Sem entrar na discussão sobre as origens da redundância, diria que uma hábil combinação do salário mínimo individual com um salário-família mais elevado permitiria contornar, pelo menos temporariamente, a irrespondível demanda (como em mandados de injunção) de obediência ao art. 7º da Constituição. Pois um salário mínimo capaz de atender às necessidades vitais básicas do trabalhador e de sua família resultaria (se as bases de cálculo fossem as mesmas do Dieese) num montante até mais elevado do que a multiplicação do atual PNS por 5 ou 6. Em outras palavras, ao contrário de apresentar problemas jurídicos (como "se o salário mínimo é definido como familiar na Constituição, ele não pode ser proposto como individual")Ver artigo de Jorge Mattoso, Teoria e Debate nº 4. , esta abordagem seria uma forma de viabilizar a execução do seu art. 7º, especialmente dos itens IV e XII.

Quantos recebem o salário mínimo?
Um dos pontos pouco aprofundados no debate sobre a questão talvez seja, como já assinalei, o da relação entre o salário mínimo legal e aquele efetivamente pago no mercado.

Quantos trabalhadores recebem efetivamente o salário mínimo em cada época? Se apresentarmos uma série estatística sobre o salário mínimo real, desde sua efetivação em 1940 até agora, verificaremos que ele sofreu várias flutuações. Se atribuirmos o valor de 100 para 1940, o máximo teria sido atingido em 1957 na cidade de São Paulo: igual a 123, isto é, 23% maior do que o primeiro mínimo pago. O ponto mínimo teria ocorrido em 1951: igual a 37, que é praticamente o salário mínimo real médio nos últimos anos da década atual. Muitos autoresVeja-se, entre outros, João Sabóia, Salário mínimo, a experiência brasileira, LP&M, 1985, Jorge Mattoso, op. cit. vêm apresentando esses dados para mostrar como o salário mínimo real diminuiu e, portanto, como os trabalhadores perderam poder aquisitivo durante os últimos decênios. É claro que esta perda ocorreu, especialmente nos últimos anos, mas para sabermos sua real magnitude seria indispensável verificar quantos trabalhadores, em cada época, receberam efetivamente este salário. Por exemplo, depois de implantado em 1940, o salário mínimo sofreu dois reajustes em 1943 (somando cerca de 60%) e permaneceu congelado até o início de 1952. Isto é, em 1951 o salário mínimo legal de 1940 havia diminuído de 100 para 37; diminuiu, portanto, mais de 60% em termos reais. Isto significa que o nível de vida dos trabalhadores da base da pirâmide ocupacional acusou a mesma trajetória? Claramente não. Embora a queda possa ter ocorrido, é pouco provável que tenha alcançado essa proporção. Em primeiro lugar, é fácil verificar que este salário mínimo legal de 1940 devia ser recebido apenas por uma pequena fração de trabalhadores: a maioria provavelmente recebia salários inferiores. Um indicador sintomático é que o salário mínimo de 1940 não se estendia ao campo e, de uma população total de 41 milhões, quase 70% residiam no meio rural. Por outro lado, uma pesquisa realizada em 1937Ver Samuel H. Lowrie, "Pesquisa de padrão de vida das famílias dos operários da limpeza pública da municipalidade de São Paulo"., na cidade de São Paulo, com os trabalhadores da limpeza pública, mostrou que seu nível de consumo de alimentos estava bem abaixo do previsto na ração essencial mínima (fixada no ano seguinte). As maiores diferenças se encontravam no consumo de carne, leite, manteiga, feijão, legumes e frutas. Ou melhor, o consumo dos produtos mais caros era bem inferior ao previsto na ração essencial mínima, o que permite suspeitar que o salário recebido era inferior ao mínimoA estimativa é precária, uma vez que estes dados são de 1937 e o primeiro salário mínimo começou a ser pago em 1940, mas pelo Editor. e que mesmo este não possibilitava adquirir a ração essencial estabelecida em 1938.

Portanto, as comparações temporais do salário mínimo real deveriam, na medida do possível, indicar a porcentagem de trabalhadores que em cada época recebiam efetivamente aquele salário.

Para finalizar, considero perfeitamente endossável a proposta lançada por Jorge Mattoso em seu artigo: remeter aos trabalhadores e ao conjunto da sociedade a rediscussão do tema, uma vez que vários de seus pressupostos já ultrapassam meio século de existência. Aliás, minha intenção ao abordar o assunto, em Teoria e Debate nº 2, foi exatamente esta: reabrir a discussão.

Paulo Sandroni é economista, membro do Conselho Editorial de Teoria e Debate.