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Diante da impotência das elites para formular novos projetos para o país, o PT avança na campanha para a Presidência da República. A primeira condição para viabilizar a candidatura (e o governo) de Lula consiste na clara definição dos objetivos e da natureza do seu programa.

Esta análise divide-se em duas partes: na primeira, faz-se um apanhado geral do quadro sucessório; na segunda, um exame das condições de viabilização da candidatura Lula e do governo de uma frente de forças políticas e sociais, coligadas em torno de um projeto de ampliação e aprofundamento da democracia.

Dentro de oito meses, cerca de 80 milhões de brasileiros irão às urnas para votarem pela primeira vez em 25 anos num candidato a presidente da República. O processo eleitoral, em pleno curso, desenvolve-se no quadro de uma grave crise econômica, caracterizada pela perda de dinamismo da economia (a taxa de crescimento do produto brasileiro nesta década foi inferior à de todas as outras, nestes últimos cinquenta anos) e pelo risco de aceleração descontrolada da inflação. O pano de fundo dessa crise é o esgotamento do modelo de desenvolvimento das últimas três décadas.

A ninguém passa despercebido também o quanto essa crise econômica está desgastando o governo e os partidos que o apóiam, além de agravar as tensões sociais provocadas pela acumulação, durante décadas, de problemas não resolvidos de marginalidade econômica e de pauperismo.

O processo eleitoral desenvolve-se ainda no meio de uma profunda crise institucional, que afeta os três ramos e os três níveis do poder do Estado. Provavelmente, em nenhum outro período da nossa história a autoridade moral e o conceito dos homens públicos estiveram tão aviltados na opinião pública, o que também se reflete na credibilidade do governo e dos partidos que estiverem juntos na Aliança Democrática.

Golpeada por essas crises, a elite dominante tradicional caiu numa situação de perplexidade que prejudica sua capacidade de iniciativa.

Na Constituinte, não foi capaz de formular um projeto coerente de reestruturação jurídica do país, limitando-se, por meio das atuações do "Centrão" e da UDR, a deter iniciativas das esquerdas.

No plano econômico, também não foi capaz de uma atuação minimamente eficaz para superar seus impasses econômicos. As quatro políticas que conseguiu produzir, nos últimos cinco anos - o esquema Dornelles, o Plano Cruzado, o Plano Bresser e o Plano "Feijão com Arroz" -, tiveram duração efêmera e, após fracassos retumbantes, não fizeram mais que aprofundar as dificuldades e golpear duramente a economia popular. O Plano Verão segue rapidamente para o mesmo destino.

O país se debate com uma dívida externa que inviabiliza qualquer tentativa séria de retomada do crescimento econômico, mas a elite dirigente não consegue negociar com os núcleos centrais da economia capitalista nenhum esquema coerente de solução desses débitos.

Há, em pleno curso, um processo acelerado de alteração do esquema tradicional de divisão internacional do trabalho, mas essa mesma elite mostra-se impotente para formular projetos e alianças que assegurem uma posição menos subordinada à economia brasileira nesse novo contexto mundial.

Diante de um modelo de desenvolvimento claramente esgotado, o máximo de proposta ideológica que conseguiu esboçar foram imprecisas e toscas tentativas de privatização de empresas estatais, fundamentadas em um pseudoliberalismo, que não se apresenta de modo coerente, nem no plano ideológico, nem no programático, e que não conta com o menor respaldo do eleitorado, como se pôde ver nas últimas eleições.

As propostas menos conservadoras dos seus setores mais ao centro tiveram sua melhor expressão no Plano Cruzado, mas não conseguiram superar os obstáculos políticos às respostas que financiariam seu êxito e por isso fracassaram melancolicamente.

O processo eleitoral desenvolve-se, finalmente, em meio à desestruturação interna dos partidos que lideraram a "transição democrática", gerando uma competição política exacerbada, que dificulta a tradicional unificação dessa elite dirigente diante da ameaça do avanço popular.

Para complicar seus problemas, ela foi surpreendida, nas eleições municipais passadas, com o sucesso eleitoral do PT e, em menor medida, do PDT e do PSB.

Esse conjunto de fatos mostra que, provavelmente, em nenhuma outra oportunidade nestas últimas décadas tenham se reunido condições eleitorais tão favoráveis à vitória de forças que negam o poder dessas elites dirigentes e que sempre estiveram comprometidas com propostas de reformas estruturais, na economia e no arcabouço institucional do Estado. São forças de esquerda, democráticas e progressistas. Chamemo-las de bloco democrático1.

Até o momento, três candidaturas disputam essa chance de vitória, no bloco democrático: Brizola, Covas e Lula.

A vitória de qualquer uma delas representará o fim da transição do autoritarismo para a democracia, pois, pela primeira vez, desde 64, o Poder Executivo deixará de estar nas mãos das forças que criaram e deram sustentação ao ciclo de governos militares.

Mas a natureza e a profundidade das mudanças serão muito diferentes, em cada caso, não cabendo dúvidas de que a vitória de Lula representaria a alternativa mais avançada das três: uma "virada" histórica da mesma natureza da "revolução de 1930" e da "contra-revolução conservadora de 64".

A primeira condição para viabilizar a candidatura e o governo de Lula consiste na clara definição dos objetivos e da natureza do seu governo.

Estaríamos nós, na hipótese da vitória de Lula em 15 de novembro, diante da possibilidade de reprodução de uma experiência de "transição para o socialismo em democracia", nos moldes do governo da Unidade Popular, no Chile?

A comparação do quadro chileno dos anos 70 com o quadro brasileiro atual não possibilita uma resposta positiva a esta indagação. O processo da Unidade Popular só foi possível porque o Chile contava, nos anos 70, com uma formação social e uma organização institucional bem mais adiantada do que as do nosso país nos dias de hoje2. Por isso, a "virada" histórica que a eleição de Lula significaria teria amplitude mais restrita. Não se trataria - como tentou Allende - de passar imediatamente à construção do socialismo, mas da construção de uma democracia mais ampla e mais estável do que as que conhecemos até hoje. Como se afirma nas conclusões do V Encontro do PT, a conjuntura atual determina a necessidade de uma estratégia de acumulação de forças. O governo Lula será um momento dessa estratégia. Seu governo não culmina com o processo de acumulação de forças e por isso não terá ele a tarefa de resolver a questão do poder e da efetivação de transformações de caráter socialista nas estruturas da sociedade brasileira. Sua tarefa consistirá na realização - dentro ainda dos parâmetros do modo de produção capitalista de reformas estruturais que ampliem o espaço da cidadania e da participação popular. Essas reformas deverão apontar na direção do socialismo, mas não serão ainda transformações propriamente socialistas.

A que conduziriam então essas reformas estruturais, caso pudessem vir a ser efetivamente realizadas? A configuração, no curso de alguns anos, de um cenário com os seguintes contornos: eliminação da pobreza absoluta e das disparidades gritantes entre os níveis de renda e de consumo, mediante processo gradual, porém efetivo, de redistribuição de renda, impulsionado pela pressão de sindicatos e movimentos populares, livres do controle e da pressão do Estado, fim das discriminações sociais; universalização da aplicação das normas legais; subordinação efetiva de todos - inclusive do Estado - à lei; controle, pelos cidadãos, do exercício da autoridade; participação mais ampla de todos nas decisões políticas; possibilidade real de transferência do poder político, a partir do resultado de eleições regulares, livres e não viciadas pelo abuso da máquina administrativa e do poder econômico; eliminação do risco de golpe militar e da tutela das forças armadas sobre as instituições civis3.

Dessa concepção acerca dos objetivos e do caráter do governo derivam duas conseqüências essenciais para o êxito do projeto. A primeira é que os conflitos provocados pelas reformas estruturais poderão ser resolvidos dentro da institucionalidade vigente, não sendo, portanto, inevitável um confronto global e final entre o governo e o poder burguês. Nesta perspectiva, a adoção de uma tática dupla que consistiria em jogar o jogo institucional e em preparar-se ao mesmo tempo para o confronto definitivo (ou a mera ambigüidade de linguagem em relação a este problema) só poderia levar ao pior dos mundos: o governo perderia a credibilidade necessária para usar os instrumentos de que dispõe a fim de manter a institucionalidade democrática e não ganharia forças para o confronto global, posto que as classes médias, assustadas, bandear-se-iam para os grupos conservadores, viabilizando o retrocesso.

A segunda consequência diz respeito às expectativas populares. Todos sabem que, a curto prazo, serão estreitas as margens de variação dos recursos de que o governo disporá para executar seu programa, e por isso mesmo será necessário evitar, desde a campanha eleitoral, que se criem expectativas e se estimulem condutas que, posteriormente, o governo não terá condições de satisfazer ou de sustentar.

A segunda condição para viabilizar a candidatura e o governo de Lula consiste na formulação de um arco de alianças entre forças sociais e políticas comprometidas com o programa de reformas estruturais orientadas para a ampliação e consolidação da democracia.

No terreno social, parece claro que a possibilidade de vitória eleitoral e de exercício do governo está condicionada a uma aliança entre as classes populares e as classes médias4. Esta não é uma aliança fácil, pois, tradicionalmente, as classes médias têm se aliado à elite dominante para marginalizar as classes populares tanto do consumo quanto da participação política. No entanto, a grave crise social, econômica e política em que o país vem se debatendo há uma década criou condições para reverter essa tendência. As classes médias, que sofreram nesse período um processo evidente de estratificação e proletarização de seus estratos médios e inferiores, estão cada vez mais assoberbadas com problemas de emprego, de custos da educação e saúde, da aquisição de casa própria, de previdência social. Isto favorece a quebra de barreiras ideológicas que as separavam do proletariado e a possibilidade de que venham a dar seu apoio a um governo capaz de garantir a solução de seus problemas5. Mas o aproveitamento dessa possibilidade depende da capacidade das forças políticas representativas das classes populares de oferecerem aos setores médios uma aliança estratégica e não meramente tática. Não se trata de atrair as classes médias, mediante vantagens ou garantias econômicas imediatas, ao papel de coadjuvante subsidiário da luta das classes populares contra as elites dominantes, mas de propor, por meio de um programa de reformas estruturais bastante claro, uma aliança duradoura para, numa luta de longo prazo, subordinar as elites dominantes e construir uma sociedade pluralista e democrática.

O instrumento privilegiado para a realização dessa aliança social é o Programa de Governo, e sua concretização passa, necessariamente, pela formação de uma aliança entre grupos e lideranças que representam os setores populares e de classes médias, em nossa sociedade.

Aqui também as dificuldades são grandes e requerem rigoroso senso das etapas a serem cumpridas para conseguir o resultado almejado.

Numa primeira etapa seria necessário articular PT, PCB, PC do B, PSB e PV e grupos políticos socialistas, social-democratas, democráticos e progressistas - hoje dispersos em várias legendas - numa coligação. Lula deveria ser o candidato dessa coligação, e o pacto firmado entre as forças que a compõem deveria valer tanto para a etapa eleitoral como para o exercício do governo6.

Juntas, essas forças deveriam formular o Programa de Governo, constituindo este o cimento da coligação e o termo de compromisso tanto do presidente quanto das forças coligadas.

Numa segunda etapa - já que a eleição será disputada em dois turnos - a coligação das esquerdas precisará (sem perder a nitidez e aquela homogeneidade requeridas para dar coerência ao governo e garantir o cumprimento do programa) ser capaz de incorporar contingentes populistas e social-democratas, a fim de assegurar a vitória no segundo turno e respaldo político ao governo.

A terceira condição consiste na formulação de um Programa de Governo que unifique as forças de esquerda, progressistas e democráticas, que possibilite uma aliança estratégica entre as classes populares e as classes médias, e que sirva de regra de jogo e de instrumento de diálogo entre o governo e os setores que serão afetados pelas reformas estruturais e pelas novas políticas públicas.

Para chegar à formulação desse programa torna-se necessário, antes de mais nada, distingui-lo do programa político do PT e dos outros partidos que conformariam o "bloco democrático".

Programas políticos de partidos são proposições estratégicas destinadas a orientar o percurso de longo prazo dessas agremiações em direção aos seus objetivos últimos. Programa de Governo é compromisso que se estabelece entre o governante, as forças que o apóiam e a população e que inclui aquelas partes dos programas políticos suscetíveis de serem realizadas no período do seu mandato.

Para cumprir suas finalidades, o Programa de Governo precisará abranger tanto as reformas institucionais quanto as reformas econômicas e satisfazer dois requisitos básicos: clareza e precisão.

O primeiro diz respeito à fixação de claras regras de jogo para todos os setores da sociedade e para os países com os quais mantemos relações políticas e econômicas. De particular importância neste aspecto serão as formulações que assegurarem o pluralismo e a plena vigência das liberdades democráticas: fixem o papel das Forças Armadas; e estabeleçam as diretrizes da política internacional do Estado brasileiro. A clareza e a precisão dessas formulações serão indispensáveis não só para obter os apoios de que o governo carecerá para a execução de suas políticas como para evitar polarizações e radicalizações desnecessárias, decorrentes da desinformação, de confusões provocadas por formulações ambíguas.

O segundo requisito - referente à precisão das reformas estruturais - diz respeito especialmente ao programa econômico. Este programa fixará as regras do jogo às quais terão de se subordinar os diferentes agentes econômicos e precisa ser bastante claro, a fim de facilitar o ajuste das condutas de cada um deles a essas novas regras.

A dificuldade maior aqui está em articular as transformações estruturais, cujos efeitos far-se-ão sentir a médio e longo prazos, com a política econômica de curto prazo.

O programa econômico precisa, portanto, quantificar e determinar a intensidade e a velocidade do processo redistributivo; compatibilizar a redistribuição de renda com as restrições políticas decorrentes do próprio caráter do governo; estabelecer a seqüência das mudanças na propriedade; formular mecanismos eficazes de avaliação do impacto simultâneo da redistribuição da renda e das mudanças na propriedade, no mercado, a fim de possibilitar correções oportunas na política econômica e, desse modo, evitar círculos viciosos que inviabilizem a condução racional da economia.

Plínio de Arruda Sampaio é deputado federal do PT-SP e líder da bancada do PT na Câmara.