Internacional

O terror implementado pelo Partido Comunista Chinês contra o seu próprio povo, com o assassinato em massa dos manifestantes concentrados na praça da Paz Celestial, na capital do país, abre uma interrogação monstruosa para os socialistas e comunistas de todos os países: até que ponto são capazes de chegar os burocratas que governam Estados socialistas para garantir seus privilégios? Muitas outras perguntas vêm na sequência: Como conquistar a democracia e as liberdades nos países socialistas? Como se deve conceber o socialismo democrático neste fim de século? Rever o que se deu em Pequim - o que este artigo faz com isenção, objetividade e rara competência jornalística - é um passo indispensável para esta reflexão

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A bandeira da República Popular da China está desfigurada. O fundo vermelho, símbolo do sangue derramado pelos trabalhadores na luta por sua emancipação, que parecia encerrada na China em 1949, está novamente manchado com o sangue do seu povo. E as cinco estrelas, que se convencionou simbolizarem o Partido Comunista Chinês (a maior) e os quatro principais setores sociais que ele "lidera" (camponeses, operários, estudantes e soldados), estão com seu brilho e pulsar tragicamente alterados. A estrela-mãe hipertrofiada, após engolir as "estrelinhas" dos estudantes e dos operários, mantém-se por quanto tempo? - num equilíbrio instável com as duas estrelas que lhe restam: a dos soldados (chamuscada) e a dos camponeses, aparentemente ainda distante anos-luz da guerra travada nas outras estrelas.

Durante as sete semanas que durou o histórico levante iniciado pelos estudantes universitários de Pequim, irradiou-se da praça Tiananmen (da Paz Celestial) para o mundo um sopro de entusiasmo e esperança. Eles pediam democracia e fim da corrupção; a justeza de sua bandeira fez em poucos dias multiplicarem-se os manifestantes, que passaram de 20 mil para quase 2 milhões, envolvendo praticamente todos os setores da sociedade. Mas a "Comuna de Pequim" foi abatida a golpes de baioneta e massacrada pelos canhões.

A fúria desesperada dos dirigentes do PCC prossegue na caça dos que participaram das manifestações em todo o país. "Mas a China nunca mais será a mesma", diz o povo. O mundo também não é mais o mesmo. O sangue dos estudantes e trabalhadores chineses serve de dura lição sobre os males do partido único; por mais libertador que tenha sido no passado, o PCC é hoje o maior inimigo do povo chinês. "A tarefa da libertação não estará completa enquanto existir na China o domínio do partido único", diziam os manifestantes.

Apesar de acusados de contra-revolucionários e defensores do capitalismo pelo governo, não se encontra em nenhuma das reivindicações levantadas pelo movimento uma única demonstração anti-socialista. O máximo que chegam a dizer é que "o marxismo precisa ser renovado" (do físico dissidente Fang Lizhi). Além das exigências específicas de melhoria de condições de ensino, foram listadas quatro grandes demandas, a saber: 1) publicação da declaração de rendas e bens de todos os altos funcionários do governo e de seus parentes; 2) controle de preços; 3) abolição da censura à imprensa; 4) diálogo do governo com as organizações autônomas dos estudantes e demais setores da população.

A primeira reivindicação tem a ver com a corrupção que assola o país. Nós caçamos os marajás e os chineses, o guanxi, o pistolão. Em qualquer nível, nada se consegue sem o suborno. Já se foi o tempo em que alguns milhares de fuzilamentos sumários continham o crime. Cada vez mais o exemplo vem de cima. Hong Kong se tornou a Suíça dos novos mandarins chineses, e dizem que é o próprio filho de Mao Tse-tung, responsável pela filial do Banco da China, quem controla as contas numeradas.

Tirando os funcionários corruptos e aqueles que partiram para montar negócio próprio (permitido há uma década), a massa de empregados do Estado vê seus salários corroídos pela inflação, que promete chegar a 100% neste ano. Um professor universitário, um ministro (sem contar as mordomias) ou operário tem um salário de cem a duzentos iuanes por mês (26 a 53 dólares), enquanto um vendedor ambulante, um motorista de táxi ou um camponês médio ganha mais de quinhentos iuanes (133 dólares). Os novos empresários-patrões recebem pelo menos dez vezes mais. "Os duzentos iuanes que Deng Xiaoping nos paga não valem os quarenta da época de Mao", reclamam os servidores.

Quanto à liberdade de imprensa, ela está inscrita na Constituição, embora esta proíba, desde 85, o recurso aos dazibaos (murais de denúncias políticas). A censura, porém, só deixou de ser obedecida durante as duas semanas anteriores à lei marcial, por rebeldia dos jornalistas. Sem alternativa, os intelectuais e estudantes reclamam: "Para nos informarmos, somos obrigados a ouvir a 'Voz da América' ou ler a revista Time".

A exigência do diálogo com a organização autônoma dos estudantes foi negada, desde o início das manifestações, como já se dera nos primeiros protestos estudantis de 86-87. No único e rápido encontro do primeiro-ministro Li Peng com os estudantes, ele exigiu o fim incondicional da greve de fome e saiu dali para decretar a lei marcial. Zhao Ziyang, que perderia em seguida o cargo de secretário-geral do PCC, visitou os grevistas de fome e lamentou-se: "Cheguei tarde".

A temida aliança

Admitir a existência de organizações independentes de estudantes e, pior ainda, de trabalhadores (começavam a surgir em Pequim e Xangai) seria reconhecer a quebra do monopólio do PCC como representante legítimo e único da classe operária. A emergente aliança entre intelectuais e trabalhadores revelava o quanto o governo estava divorciado do povo e que uma reconciliação significativa era agora quase impensável.

Na véspera do massacre de 2-3 de junho, empresários estrangeiros em Xangai se davam conta de que apenas 30% das fábricas funcionavam; o resto estava em greve. Começavam a surgir cartazes: "Nasceu o Solidariedade chinês".

Pela primeira vez os clamores do povo surgiram de baixo, sem a bênção da direção do partido. Nas manifestações que eclodiram nas décadas passadas, sempre havia uma facção do partido que as utilizava para derrubar outra facção e em seguida reprimia as iniciativas populares. Desta vez o povo ficou sozinho.

Deng Xiaoping já havia revelado simpatia pela lei marcial polonesa, que o general Jaruzeiski decretara em 1981 contra o Solidariedade. O ressurgimento do sindicato autônomo como partido político, ameaçando o PC polonês, mostrava que os ditadores chineses tinham de ser ainda mais radicais.

Na condição de chefe da Comissão Militar do Partido e do Exército, o líder máximo Deng Xiaoping teria dito: "Se for preciso fazer duzentos mil mortos para garantir vinte anos de paz, acho justo". As informações não permitem dizer se a repressão tardou apenas pela recusa de tropas em atirar no povo, ou se Deng seguia um de seus provérbios prediletos: "Para destruir a erva venenosa é preciso primeiro deixá-la crescer".

Perdida a aura de legitimidade, aos donos do poder só restou o recurso ao terror. Dias antes do massacre os líderes estudantis, apesar de sua ousadia, já se sentiam derrotados pela falta de uma organização popular nacional e um programa mais estruturado. Wang Dan, 24 anos, estudante de história e considerado um dos principais dirigentes do movimento, confessava na manhã de 2 de junho que "não poucos de nossos problemas provêm da ausência de maiores referências teóricas". Vale a transcrição de trechos dessa entrevista concedida ao jornal francês Libération. Eles são tragicamente reveladores da tragédia que se iniciaria na noite do dia seguinte:

"O que mudou para você neste período?
W. D. -
Primeiro, aprendi que a democratização deve vir passo a passo. Não se deve procurar dar grandes saltos adiante pela ação de rua. Nós ignoramos essa lei, e isto teve conseqüências sérias, que não queríamos. Creio que o movimento deve se apoiar em coisas mais sólidas, como a democracia no campus ou a defesa dos direitos constitucionais, por exemplo. Segundo, não se pode dirigir um movimento como este sem uma base teórica... Terceiro, a democracia direta é uma coisa perigosa, sobretudo para a escolha dos dirigentes. Nós mudamos de direção sem parar... E em quarto lugar, precisamos nos aliar a outros setores sociais. Mesmo o apoio dos intelectuais nos chegou muito tarde...

Você se arrepende de algo?
W.D. - Meu maior remorso é não ter sido capaz de convencer os intelectuais a nos apoiarem diretamente. Agora, o movimento não é mais um movimento estudantil mas popular e nacional. O próprio fato de ele ser dirigido por estudantes o leva necessariamente à derrota.

Você tem medo de ser preso?
W. D. - Os riscos são reais.

Mas há que 'ousar se revoltar'...

(Ri ao fazer a citação de Mao.)".

E eles ousaram lutar, mesmo sabendo-se momentaneamente derrotados. Primeiro ocuparam a praça Tiananmen cantando a Internacional. Nada. Então, recorreram à greve de fome, expressamente inspirada em Gandhi, uma novidade nos métodos tradicionais de luta do país. Após duas semanas sem resultado, o sinólogo americano Orville Schell colheu um grevista a revoltada declaração: "Agora ficou óbvio que nossos líderes não dão a mínima se nós, estudantes, estamos vivos ou se morremos. Da próxima vez eu não vou ser tão burro. Vou sair como os estudantes sul-coreanos, com coquetéis Molotov". Para tanques e metralhadoras, os coquetéis são refresco.

Todos os estudantes universitários de Pequim não são mais de 100 mil pessoas. De repente, eles se viram como a "fagulha que incendeia a pradaria" (Mao Tse-tung). De cada dez habitantes da capital, dois ocupavam as ruas. E a cada dia chegava gente de todos os rincões do país. O protesto se estendeu por mais de vinte grandes cidades. É ainda Orville Schell quem captou o clima de euforia e falsa vitória: "Jamais, em quinze anos visitando Pequim, vi tantas pessoas sorrindo e felizes quanto agora. Até os trombadinhas resolveram parar seus furtos e ajudar os estudantes... Mas esta ebulição criou uma atmosfera estranhamente irreal, que levava muitos a acreditarem que 'nem as balas poderão nos ferir!'".

Afinal, o planeta estava observando a China, aberta para as transmissões de TV ao vivo, devido à histórica visita do líder soviético Gorbatchev a Pequim. Sentindo seu poder ameaçado, os burocratas resolveram mais uma vez mudar do rumo do pêndulo da sua história, lixando-se para a opinião pública interna ou mundial. O "País do Meio" (Zhong Guo, que é o nome do país em chinês), de centro das atenções esperançosas do mundo, virou, da noite para o dia, a vergonha da humanidade.

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Revolução do Pêndulo

Que voltas deu o mundo em quatro décadas... Em 1º de outubro de 1949 a liderança do PCC e seu Exército Popular de Libertação eram aclamados por 300 mil pessoas em sua entrada triunfal em Pequim. Mao Tse-tung bradou às grandes massas: "Nós, os 475 milhões de chineses, agora ficamos de pé, e o futuro de nossa nação é infinitamente brilhante... De hoje em diante, e para sempre, acabaram-se os negócios da China".

Uma década depois, após estimular o movimento "Que cem flores desabrochem, que uma centena de escolas polemizem", Mao reprime o entusiasmo libertário dos intelectuais, acusando-os de direitistas.

Quase duas décadas depois, em 1968, a Revolução Cultural era desencadeada na China e empolgava multidões de jovens manifestantes em Paris, Berlim, Califórnia, São Paulo... Boa parte da esquerda, desiludida com a degenerescência revisionista na União Soviética - onde seria necessária uma nova revolução -, recobrou as esperanças com a iniciativa do "Grande Timoneiro", Mao Tse-tung, de purificar o socialismo e o partido, apelando para a mobilização dos jovens, dos guardas vermelhos.

Na terceira década pós-Libertação, começa a era Deng, e mais um sopro de liberdade; o Muro da Democracia é derrubado, depois de cumprido seu papel de desmaoização e de começar a ameaçar o poder.

Na quarta década, a história se inverteu. Na URSS, um novo líder, Gorbatchev, impulsiona as reformas a partir de cima. Ao visitar Deng Xiaoping em maio, ele exclamara: "Então, você tem aqui uma revolução?!".

Mao, embalsamado em Tiananmen, assiste às grandes massas pedirem aos líderes de seu apodrecido partido que retomem à casa. Voltaram os negócios da China e, para garanti-los, reaparece agora a sanguinária tortura chinesa.

Esses movimentos pendulares são tradição da história chinesa, que assistiu a vinte dinastias imperiais se sucederem em trinta séculos. Comparando o movimento atual com o período maoísta, Liu Binyan, ex-editor do Diário do Povo de Pequim, afirma: "Mao estava certo em atacar os líderes privilegiados do partido e a nova classe burocrática emergente. Seu erro foi estimular o movimento de massas sem mudar o sistema político. O povo aprendeu uma lição. Não pode mais seguir um líder cegamente".

"Democracia e ciência!" e "Abaixo o imperialismo!", gritam os estudantes e intelectuais de Pequim em 4 de maio de 1919, lançando um movimento que levaria toda uma geração ao marxismo e à revolução. Um de seus líderes, Chen Duiu, seria o primeiro presidente do Partido Comunista Chinês, fundado em 1921. Exatamente setenta anos depois do 4 de maio, suas reivindicações democráticas foram resgatadas pelos estudantes chineses.

"Depois do 4 de maio", diz o professor de história Xu Lyangin, "sob influência da URSS, passamos a considerar por muito tempo que a democracia é uma arma da burguesia imperialista." O PCC sofreria, quase no seu nascedouro, seguidas interferências - em geral negativas - da política stalinista, que se implantava na URSS e no movimento comunista internacional. Mas as condições específicas da história chinesa também favoreciam o autoritarismo e a crença num grande líder, expressos na própria bandeira da nova China adotada em 1949, em que a estrela maior representa o partido.

"Um partido camponês desceu das montanhas para acabar com a corrupção, a invasão, a humilhação; eles usavam sandálias de palha e falavam a verdade; pareciam-nos moralmente superiores: como poderíamos questioná-los?", rememora o escritor dissidente Wang Ruoshi. E a esta auto-abnegação, o editor Liu Binyan sugere acrescentar "o tradicional dever confuciano de que o intelectual deve servir o Estado acima de si mesmo; a deslealdade se tornou impensável".

É possível ter arroz e liberdade ao mesmo tempo? Dez anos atrás, um operário chinês dizia que sim: "A democracia não é mera conseqüência", escrevia o eletricista Wei Jinsheng no Muro da Democracia que Deng estimulou e depois reprimiu. "A democracia é condição da qual depende a sobrevivência das forças produtivas", prosseguia o famoso dazibao de Wei. "Sem ela, a sociedade afunda na estagnação... A bandeira da democracia foi substituída pela da 'ditadura do proletariado', tornando líderes uma ínfima porcentagem de milhões." Wei acabou condenado a quinze anos de prisão.

Porque a China jamais desfrutou da democracia em seus cinco mil anos de história, não significa que ela jamais vá vivê-la. Os camponeses foram subjugados durante milênios pelos senhores da terra e da guerra e conseguiram se libertar, acabando com as epidemias que matavam milhões de fome ou na guerra quase todos os anos, desde meados do século XIX. Foi por meio dessa longa luta antiimperialista e antilatifundiária que o PCC e seu Exército Popular ganharam a confiança das massas, alcançaram a "Libertação" e se legitimaram no poder.

Numa década, a revolução chinesa já ganhava a admiração mundial. Olhando para o passado ou para vizinhos como a Índia, o povo chinês se sentia no paraíso. A esperança de vida saltara de 37 para 68 anos, enquanto a dos indianos não chegava aos cinqüenta. A mortalidade infantil na índia permanecia em mais de 120 por mil; na China, esse índice revelador a aproximava dos países desenvolvidos, reduzido para 38 (por mil). Como comparação, a mortalidade infantil no Brasil é de 78 por mil.

Mesmo no poder, os quadros do PCC cultivavam um estilo de vida frugal, contrastante com os privilégios das burocracias socialistas da Europa. Mao, ele próprio filho de camponeses, cuidou de acentuar progressivamente o igualitarismo. Com a Revolução Cultural, que foi de 1966 a 1976, os jovens deixaram por vários anos as escolas e formaram as brigadas de guardas vermelhos, encarregadas de questionar ideologicamente todos os que ocupavam cargos de poder. Ninguém escapou, do professor primário da aldeia ao presidente da República, que, aliás, foi derrubado e morreu na prisão. Enquanto isso, Mao era endeusado. Dizia-se: "A condição para se ser um bom comunista é amar o presidente Mao".

Milhões de quadros do partido e elementos da classe média foram mandados para o campo - a maioria indiscriminada ou injustamente -, para ser reeducados no trabalho árduo junto aos "camponeses pobres da camada inferior". Quase todo chefe era obrigado periodicamente a exercer as funções mais subalternas, como limpar banheiros, lavar pratos ou adubar a terra. Deng Xiaoping trabalhou anos como jardineiro (assim como o ex-imperador Pu Yi).

Com o sistema das comunas - unidades de cerca de cem mil pessoas, visando total auto-suficiência -, Mao propunha saltar do feudalismo para o estágio mais avançado do socialismo. Seus sucessores e críticos hoje ironizam, dizendo que tudo não passou de um "socialismo feudal". A verdadeira história da Revolução Cultural ainda está para ser contada, mas é certo que, apesar do amplo movimento de massas, o poder único do partido e o de Mao jamais puderam ser colocados em questão.

O socialismo de Deng

O "País do Meio" se fechara para o resto do mundo e, quando abriu os olhos, deparou-se, ali na sua porta, com os "milagres econômicos" da Coréia do Sul, de Taiwan, Hong Kong e Singapura, intensamente integrados aos Estados Unidos. E, pior de tudo, o Japão - que humilhação! -, derrotado em sua sanguinária guerra de agressão à China, se reerguia perigosamente. Não importava se isso se dera graças ao maciço apoio americano. A realidade era que os japoneses conquistavam a mais alta renda per capita do mundo (16 mil dólares), enquanto a dos chineses não conseguia chegar a trezentos dólares. Não dava mais para segurar.

Mao deixara o mundo em 1976. Deng Xiaoping voltou triunfal com seu diagnóstico, apontando para duas causas básicas da estagnação econômica: o igualitarismo, que negava os estímulos individuais, e o secular isolamento da China em relação à economia mundial. Uma terceira causa, a explosão demográfica, que aumentou a população em 500 milhões de pessoas em 25 anos (hoje passa de 1,1 bilhão), já começara a ser atacada em 1973, por iniciativa do primeiro-ministro Chu Enlai.

O sistema coletivista no campo onde vivem, 80% da população - não atingira a cooperação complexa que caracteriza as forças produtivas do capitalismo e do socialismo. Ao fim de duas décadas de experiência das comunas, verificou-se que a maioria delas mal tinha passado de um longo e gigantesco mutirão baseado no cabo da enxada. Ela perdurou graças à retenção artificial e antieconômica na agricultura de uma média de três trabalhadores por hectare (no Brasil são cinco hectares por agricultor e nos EUA trinta hectares).

Por seu turno, os setores industrial e de serviços não se desenvolviam, devido à exagerada centralização e isolamento do avanço tecnológico mundial. Assim, não podiam fornecer os insumos necessários à modernização agrícola e nem absorver os trabalhadores excedentes que esta geraria.

Desestimulados, centenas de milhões de trabalhadores careciam de fazer uma surda operação tartaruga. Não mais serviam os apelos ao pensamento de Mao Tse-tung ou à ameaça de guerra com o "social-imperialismo soviético".

Para a doença "ultra-esquerdista", Deng receitou remédios do extremo oposto. Acabou com o culto à personalidade de Mao, chamou a Coca-Cola e trouxe de volta seus "revisionistas". Contra o slogan "Prefiro a erva daninha do socialismo que o grão do capitalismo", lançou: "Não importa se o gato é preto ou branco, o que importa é que ele cace ratos". Contra o socialismo feudal, o socialismo de mercado.

Mais uma vez a China deslumbrou o mundo. Em cinco anos dobrou a renda per capita dos camponeses, e a produção de grão subiu 50%. Delfim Neto, em visita à China em 1984, comentou: "Só um governo socialista pode construir habitações populares num ritmo tão intenso e massivo".

Com o mesmo autoritarismo com que Mao implantou o igualitarismo, Deng implantou a desigualdade. A palavra de ordem "é preciso que alguns se enriqueçam primeiro para estimular os demais" passou a reger todas as relações. Na agricultura, inverteu-se completamente o quadro: os 10% das terras sob cultivo familiar e 90%, coletivo, passaram para 90% familiar ou empresarial e 10% coletivo. Hoje mais de 60% de toda a economia já está fora de controle do Estado.

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Os novos empresários privados são na maioria provenientes dos quadros do partido, talvez ainda não pareçam configurar uma classe burguesa, mas não se vê tampouco a aplicação das prometidas medidas fiscais de controle da diferenciação social em curso. Os impostos são raros e desmoralizados pela corrupção. Por outro lado, os sindicatos, restritos aos trabalhadores urbanos, são totalmente atrelados ao Estado. Os demógrafos informam que os camponeses expulsos da terra já ultrapassaram os 50 milhões de andarilhos, que vagam pelas cidades em busca de trabalho temporário. Pelo menos outro tanto já se tornou assalariado ou semi assalariado rural. A mortalidade infantil, drasticamente reduzida nas primeiras três décadas pós-Libertação, subiu quase 25% entre 1979 e 1984, informou o demógrafo Nick Eberstadt. A produção de cereais volta a escassear, agora pela diversificação da agricultura.

Essas "desigualdades perigosas" foram denunciadas pela nada socialista revista U.S. News & World Report, que dá um puxão de orelha nos dirigentes chineses, criticando-os por abandonarem a economia às forças do mercado, esquecendo-se do papel do Estado nas políticas sociais e no planejamento da produção. Os brasileiros já conhecem essa história de "vamos primeiro fazer crescer o bolo para depois dividi-lo"...

Os que alimentavam a esperança antes do massacre - de que a liberalização econômica acabasse trazendo a abertura política, que leiam o teórico oficial do PCC, Wu Jianxing; ele informa com todas as letras que o modelo perseguido por eles é o "neo-autoritarismo praticado na Coréia do Sul e em Taiwan".

Em síntese, Deng Xiaoping conseguiu reproduzir em seu país os vícios dos dois sistemas: a opressão da burocracia do partido único e a exploração dos novos capitalistas. O teórico marxista (não oficial) Wang Ruoshi faz uma análise devastadora da degeneração moral da burocracia dominante na China de hoje: "No marxismo clássico, o indivíduo deve alcançar a sua completa realização através do coletivo; no sistema chinês, os que estão incumbidos de determinar o interesse coletivo abandonaram, em todos os níveis, essa busca, em favor de puro interesse pessoal. Eles exploram o sangue e o suor do povo; suprimem a individualidade no falso nome do coletivo. O povo, compreensivelmente, se tornou alienado e regrediu ao cínico interesse pessoal. Será que agora nós temos o individualismo? Não. O individualismo implica uma certa integridade pessoal. O que nós temos agora é só egoísmo". Esse lamento foi feito na véspera do maio chinês, quando o povo começou a se desalienar...

Defendendo a abertura econômica, os dirigentes chineses diziam: "Ao abrirmos nossa janela, vão entrar moscas; mas não podemos ficar sem respirar". Agora eles identificam o tufão de liberdade com as vespas mais venenosas do "capitalismo" e da "contra-revolução". É a completa inversão dos valores humanistas e democráticos do marxismo por aqueles que se dizem seus genuínos seguidores.

No rumo em que a China abriu suas portas na última década, não seria estranho se os estudantes estivessem defendendo claramente o capitalismo. A maioria dos programas de TV importados e dos professores convidados vêm dos EUA. Mais ainda, dos 50 mil estudantes que o governo mantém com bolsas de estudo no exterior, 40 mil foram para os EUA.

Paradoxalmente, o tiro saiu pela culatra: "Os professores americanos criticam muito seu próprio governo", diz Yu Renqiu, doutorando de história em Nova York. "O exemplo que eles nos dão é de liberdade", explica. Seja ela Deusa da Democracia ou Estátua da Liberdade, o símbolo do maio chinês não tem nada de defesa do capitalismo e sim de condenação de qualquer tipo de tirania.

"Todas as novas idéias que circularam na China nos últimos anos mudaram a forma de pensar do povo de alguma maneira", diz o escritor e ex-guarda vermelho Philip Cheung, 45 anos. "No passado, tudo era preto ou branco, certo ou errado, bom ou mau. Agora, não apenas os intelectuais mas o povo em geral estão pensando de forma mais sofisticada."

Na verdade, a burocracia jamais conseguiu transmitir a teoria revolucionária do marxismo às novas gerações. Até hoje persiste a decoreba dos clássicos do "marxismo-leninismo-pensamento de Mao Tse-tung". Não é piada a explicação do príncipe cambojano Sihanouk do porquê ele mandava seus filhos estudarem em Pequim, em plena era maoísta: "Se mandasse para Paris, eles voltariam todos comunistas...".

Se os estudantes e intelectuais chineses parecem conseguir separar o ar de liberdade das moscas da exploração made in USA, o mesmo não se pode dizer dos homens que os governam. Nos últimos quinze anos, a política externa da China tem se alinhado com a dos EUA ou no máximo se omitido em quase todas as grandes questões. Ela é acusada de apoiar Pinochet no Chile e a Unita em Angola. O coronel North revelou - e os chineses não desmentiram - que a China forneceu mísseis para os contras que tentam derrubar o governo da Nicarágua. São ainda fontes do Exército americano que informam ter montado toda uma rede de postos de observação ao longo da fronteira chinesa para acompanhar movimentos militares na URSS.

Em 1985 a CUT de Manaus denunciou funcionários do governo chinês por terem chamado a polícia para bater nos trabalhadores em greve de uma madeireira, a Manasa, de propriedade mista da China e de empresários brasileiros. Em seguida, os chefes chineses demitiram todos os grevistas. Deng Xiaoping ensinou seu povo a "aprender com a verdade dos fatos". Pois bem: por aqui desfilaram páginas de fatos. Vale a pergunta: quem são os contra-revolucionários?

Para os governos da República Democrática Alemã, Coréia do Norte e Bulgária e para Luís Carlos Prestes, contra-revolucionários são os estudantes e o povo chinês. Por seu suspeito mutismo, Cuba, Vietnã e Albânia parecem concordar com a repressão de Pequim. Os governantes da URSS se igualaram aos dos EUA nas cuidadosas condenações à violência dos burocratas. Todos têm seus telhados de vidro para proteger.

Os países capitalistas estão interessados em resguardar os 25 bilhões de dólares que dizem ter investido na China, por meio de 16 mil empresas. Já os países socialistas temem referendar para o seu próprio povo insatisfeito as formas de rebeldia dos chineses. Apenas a Hungria e a Nicarágua, que, coincidentemente, permitem o pluripartidarismo, ousaram condenar com veemência o massacre de Pequim.

O PT, que hão tem e nunca teve o rabo preso com nenhuma burocracia e nem defendeu o partido único, protestou contra a "matança" no dia seguinte. E, em seu Encontro Nacional, realizado em 19 de junho, cortou relações com o Partido Comunista Chinês. Esta postara reforça seu caráter de partido que se demarca por sua convicção na democracia socialista.

"Esquerda" e direita agem com cuidado, a fim de não jogar fora a criança junto com a água do banho. Mas a criança é na verdade um bando de velhos senis banhado com o sangue do seu próprio povo. Não é a primeira vez que uma burocracia no poder massacra a população desarmada em nome do socialismo. Entretanto, é a primeira vez que, graças à intensa cobertura televisiva e ao clima de contestação popular que impera em todo o bloco socialista, não dá mais para dizer "não foi bem assim, é complicado" ou "isso é invenção da imprensa burguesa" ou "intriga dos trotskistas"...

O massacre de Pequim enterra um modelo de construção socialista que se apropriou e deturpou as idéias concebidas por Marx também a partir de um massacre, quando a burguesia francesa, auxiliada por tropas prussianas, esmagou a Comuna de Paris, em 1871. Marx vibrou quando os trabalhadores parisienses "tomaram o céu de assalto" e torceu pela sua vitória, embora soubesse que as chances eram mínimas. A partir da crítica à ingenuidade dos comunards, que não expropriaram a burguesia, não centralizaram o poder e não buscaram o apoio dos camponeses, Marx elaborou a teoria que chamou de "ditadura do proletariado". Vinte anos depois, Engels observava que "a Comuna de Paris é a tumba do velho socialismo francês e o berço do comunismo internacional".

Hoje se poderia dizer que a "comuna" de Pequim é o túmulo do velho comunismo burocrático e o berço do socialismo ou comunismo democrático.

Marx nunca pregou o partido único. Lenin defendia o pluralismo e que o próprio Partido Comunista deveria ser uma federação de revolucionários de diversos matizes. A ditadura do proletariado, coitadinha, que visava tão somente garantir o poder nas mãos da massa dos trabalhadores que o tomaram à burguesia, acabou virando, nas mãos de Stalin e tantos outros, a ditadura do partido único da burocracia sobre o proletariado.

É a revista inglesa The Economist que adverte o PCC: "Eles não permitem o pluralismo de idéias dentro do partido. Se demoram muito, vão apenas provar que Marx estava certo: os partidos políticos que não conseguem mudar com o tempo vão se ver, mais cedo ou mais tarde, na lata de lixo da História. Deng Xiaoping, Li Peng e muitos outros podem não gostar, mas esta é uma verdade também para os comunistas".

Os ingênuos estudantes de Pequim jogaram esse tipo de comunismo na lata de lixo da História.

Marília Andrade é socióloga. Acaba de escrever o livro A Comuna de Pequim, em co-autoria com Luís Favre.

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Cronologia

1º de outubro de 1949 - fundação da República Popular da China sob a direção PCC, após duas décadas de guerra contra a invasão japonesa e contra o Kuomintang, o Nacionalista, no poder desde a derrubada do império em 1911.

1958 - o governo desencadeia o "Grande Salto Adiante", plano qüinqüenal que visava superar rapidamente o atraso. Considerado um fracasso.

1960 - a URSS retira da China todos os técnicos e corta toda a ajuda econômica. Começa o rompimento entre os dois países, cujas relações só foram retomadas em maio 1989, com a visita de Gorbatchev a Pequim.

1965-66 - desencadeamento da Revolução Cultural Proletária; queda do presidente Liu Shaochi e do secretário-geral Deng Xiaoping.

1969 - incidentes na fronteira sino-soviética fazem dezenas de mortos de ambos lados. O "social-imperialimo soviético" torna-se o pior inimigo dos povos.

1971/72 - Kissinger e, em seguida, Nixon visitam a China, restabelecendo as relações com os EUA.

1976 - morte do primeiro-ministro Zhou Enlai; Deng Xiaoping, após ser reabilitado, é expurgado novamente e, em outubro, um mês depois da morte de Mao, consegue voltar, derrubando a "gangue dos quatro", composta pela viúva de Mao, Jiang Qing, e outros três dirigentes do PCC.

1978/79 - O Vietnã invade o Camboja, e a China ataca a fronteira do Vietnã. Começam as reformas econômicas.

1986 - eclodem os protestos estudantis pedindo democracia, mais controle da entrada das multinacionais, em especial as japonesas, e melhoria das condições de ensino.

1987 - Hu Yaobang, secretário-geral do PCC, perde o cargo, acusado de apoiar o "liberalismo burguês" dos estudantes.

1989 - em 15 de abril morre Hu Yaobang. Os protestos recomeçam.

17 de abril - início das manifestações estudantis na praça Tiananmen (Paz Celestial), dias após a morte de Hu Yaobang.

27 de abril - cerca de meio milhão de pessoas se reúnem na praça, na maior manifestação desde a Revolução Cultural.

13 de maio - começa a greve de fome de três mil estudantes para exigir diálogo com as autoridades. A greve se encerraria no dia 19 de maio, sem resultados.

15-18 de maio - visita de Gorbatchev a Pequim. Os estudantes permanecem acampados na praça e Gorbachev é recebido pelas portas do fundo do Salão do Povo.

17 de maio - mais de um milhão de manifestantes invadem o centro de Pequim. A onda de contestação ganha muitas cidades provinciais, em especial Xangai.

18 de maio - fracassa o curto diálogo do primeiro-ministro Li Peng e do secretário do PC Zhao Ziyang, com os líderes estudantis. Segunda manifestação de mais de um milhão de pessoas.

19 de maio - Li Peng chama o Exército. A população bloqueia os caminhões na periferia da cidade.

20 de maio - a lei marcial é decretada em Pequim.

21 de maio - quase dois milhões de pessoas invadem as ruas da capital.

25 de maio – o Exercício declara seu apoio ao primeiro-ministro. Zhao Ziyang parece ter caído em desgraça. Os líderes estudantis defendem o abandono da praça, mas os manifestantes votam pela permanência.

29 de maio - os estudantes erguem a estátua da "Deusa da Democracia" em plena praça Tiananmen. Os estudantes de Xangai desfilam com a Estátua da Liberdade.

2 de Junho - tentativa frustrada do Exército de controlar Pequim pacificamente. Os soldados recuam frente aos apelos da massa.

3 de junho - intervenção militar da tropa que abre fogo sobre os estudantes e o povo em a cidade. Os mortos são estimados entre duzentos e quatro mil. A repressão continua, em todo o país, com prisões e execuções de estudantes, operários e populares acusados de contra-revolucionários. Eclodem em vários países manifestações de protesto contra o governo chinês e de solidariedade para com os combatentes da democracia na China.

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