A bandeira da República Popular da China está desfigurada. O fundo vermelho, símbolo do sangue derramado pelos trabalhadores na luta por sua emancipação, que parecia encerrada na China em 1949, está novamente manchado com o sangue do seu povo. E as cinco estrelas, que se convencionou simbolizarem o Partido Comunista Chinês (a maior) e os quatro principais setores sociais que ele "lidera" (camponeses, operários, estudantes e soldados), estão com seu brilho e pulsar tragicamente alterados. A estrela-mãe hipertrofiada, após engolir as "estrelinhas" dos estudantes e dos operários, mantém-se por quanto tempo? - num equilíbrio instável com as duas estrelas que lhe restam: a dos soldados (chamuscada) e a dos camponeses, aparentemente ainda distante anos-luz da guerra travada nas outras estrelas.
Durante as sete semanas que durou o histórico levante iniciado pelos estudantes universitários de Pequim, irradiou-se da praça Tiananmen (da Paz Celestial) para o mundo um sopro de entusiasmo e esperança. Eles pediam democracia e fim da corrupção; a justeza de sua bandeira fez em poucos dias multiplicarem-se os manifestantes, que passaram de 20 mil para quase 2 milhões, envolvendo praticamente todos os setores da sociedade. Mas a "Comuna de Pequim" foi abatida a golpes de baioneta e massacrada pelos canhões.
A fúria desesperada dos dirigentes do PCC prossegue na caça dos que participaram das manifestações em todo o país. "Mas a China nunca mais será a mesma", diz o povo. O mundo também não é mais o mesmo. O sangue dos estudantes e trabalhadores chineses serve de dura lição sobre os males do partido único; por mais libertador que tenha sido no passado, o PCC é hoje o maior inimigo do povo chinês. "A tarefa da libertação não estará completa enquanto existir na China o domínio do partido único", diziam os manifestantes.
Apesar de acusados de contra-revolucionários e defensores do capitalismo pelo governo, não se encontra em nenhuma das reivindicações levantadas pelo movimento uma única demonstração anti-socialista. O máximo que chegam a dizer é que "o marxismo precisa ser renovado" (do físico dissidente Fang Lizhi). Além das exigências específicas de melhoria de condições de ensino, foram listadas quatro grandes demandas, a saber: 1) publicação da declaração de rendas e bens de todos os altos funcionários do governo e de seus parentes; 2) controle de preços; 3) abolição da censura à imprensa; 4) diálogo do governo com as organizações autônomas dos estudantes e demais setores da população.
A primeira reivindicação tem a ver com a corrupção que assola o país. Nós caçamos os marajás e os chineses, o guanxi, o pistolão. Em qualquer nível, nada se consegue sem o suborno. Já se foi o tempo em que alguns milhares de fuzilamentos sumários continham o crime. Cada vez mais o exemplo vem de cima. Hong Kong se tornou a Suíça dos novos mandarins chineses, e dizem que é o próprio filho de Mao Tse-tung, responsável pela filial do Banco da China, quem controla as contas numeradas.
Tirando os funcionários corruptos e aqueles que partiram para montar negócio próprio (permitido há uma década), a massa de empregados do Estado vê seus salários corroídos pela inflação, que promete chegar a 100% neste ano. Um professor universitário, um ministro (sem contar as mordomias) ou operário tem um salário de cem a duzentos iuanes por mês (26 a 53 dólares), enquanto um vendedor ambulante, um motorista de táxi ou um camponês médio ganha mais de quinhentos iuanes (133 dólares). Os novos empresários-patrões recebem pelo menos dez vezes mais. "Os duzentos iuanes que Deng Xiaoping nos paga não valem os quarenta da época de Mao", reclamam os servidores.
Quanto à liberdade de imprensa, ela está inscrita na Constituição, embora esta proíba, desde 85, o recurso aos dazibaos (murais de denúncias políticas). A censura, porém, só deixou de ser obedecida durante as duas semanas anteriores à lei marcial, por rebeldia dos jornalistas. Sem alternativa, os intelectuais e estudantes reclamam: "Para nos informarmos, somos obrigados a ouvir a 'Voz da América' ou ler a revista Time".
A exigência do diálogo com a organização autônoma dos estudantes foi negada, desde o início das manifestações, como já se dera nos primeiros protestos estudantis de 86-87. No único e rápido encontro do primeiro-ministro Li Peng com os estudantes, ele exigiu o fim incondicional da greve de fome e saiu dali para decretar a lei marcial. Zhao Ziyang, que perderia em seguida o cargo de secretário-geral do PCC, visitou os grevistas de fome e lamentou-se: "Cheguei tarde".
A temida aliança
Admitir a existência de organizações independentes de estudantes e, pior ainda, de trabalhadores (começavam a surgir em Pequim e Xangai) seria reconhecer a quebra do monopólio do PCC como representante legítimo e único da classe operária. A emergente aliança entre intelectuais e trabalhadores revelava o quanto o governo estava divorciado do povo e que uma reconciliação significativa era agora quase impensável.
Na véspera do massacre de 2-3 de junho, empresários estrangeiros em Xangai se davam conta de que apenas 30% das fábricas funcionavam; o resto estava em greve. Começavam a surgir cartazes: "Nasceu o Solidariedade chinês".
Pela primeira vez os clamores do povo surgiram de baixo, sem a bênção da direção do partido. Nas manifestações que eclodiram nas décadas passadas, sempre havia uma facção do partido que as utilizava para derrubar outra facção e em seguida reprimia as iniciativas populares. Desta vez o povo ficou sozinho.
Deng Xiaoping já havia revelado simpatia pela lei marcial polonesa, que o general Jaruzeiski decretara em 1981 contra o Solidariedade. O ressurgimento do sindicato autônomo como partido político, ameaçando o PC polonês, mostrava que os ditadores chineses tinham de ser ainda mais radicais.
Na condição de chefe da Comissão Militar do Partido e do Exército, o líder máximo Deng Xiaoping teria dito: "Se for preciso fazer duzentos mil mortos para garantir vinte anos de paz, acho justo". As informações não permitem dizer se a repressão tardou apenas pela recusa de tropas em atirar no povo, ou se Deng seguia um de seus provérbios prediletos: "Para destruir a erva venenosa é preciso primeiro deixá-la crescer".
Perdida a aura de legitimidade, aos donos do poder só restou o recurso ao terror. Dias antes do massacre os líderes estudantis, apesar de sua ousadia, já se sentiam derrotados pela falta de uma organização popular nacional e um programa mais estruturado. Wang Dan, 24 anos, estudante de história e considerado um dos principais dirigentes do movimento, confessava na manhã de 2 de junho que "não poucos de nossos problemas provêm da ausência de maiores referências teóricas". Vale a transcrição de trechos dessa entrevista concedida ao jornal francês Libération. Eles são tragicamente reveladores da tragédia que se iniciaria na noite do dia seguinte:
"O que mudou para você neste período?
W. D. - Primeiro, aprendi que a democratização deve vir passo a passo. Não se deve procurar dar grandes saltos adiante pela ação de rua. Nós ignoramos essa lei, e isto teve conseqüências sérias, que não queríamos. Creio que o movimento deve se apoiar em coisas mais sólidas, como a democracia no campus ou a defesa dos direitos constitucionais, por exemplo. Segundo, não se pode dirigir um movimento como este sem uma base teórica... Terceiro, a democracia direta é uma coisa perigosa, sobretudo para a escolha dos dirigentes. Nós mudamos de direção sem parar... E em quarto lugar, precisamos nos aliar a outros setores sociais. Mesmo o apoio dos intelectuais nos chegou muito tarde...
Você se arrepende de algo?
W.D. - Meu maior remorso é não ter sido capaz de convencer os intelectuais a nos apoiarem diretamente. Agora, o movimento não é mais um movimento estudantil mas popular e nacional. O próprio fato de ele ser dirigido por estudantes o leva necessariamente à derrota.
Você tem medo de ser preso?
W. D. - Os riscos são reais.
Mas há que 'ousar se revoltar'...
(Ri ao fazer a citação de Mao.)".
E eles ousaram lutar, mesmo sabendo-se momentaneamente derrotados. Primeiro ocuparam a praça Tiananmen cantando a Internacional. Nada. Então, recorreram à greve de fome, expressamente inspirada em Gandhi, uma novidade nos métodos tradicionais de luta do país. Após duas semanas sem resultado, o sinólogo americano Orville Schell colheu um grevista a revoltada declaração: "Agora ficou óbvio que nossos líderes não dão a mínima se nós, estudantes, estamos vivos ou se morremos. Da próxima vez eu não vou ser tão burro. Vou sair como os estudantes sul-coreanos, com coquetéis Molotov". Para tanques e metralhadoras, os coquetéis são refresco.
Todos os estudantes universitários de Pequim não são mais de 100 mil pessoas. De repente, eles se viram como a "fagulha que incendeia a pradaria" (Mao Tse-tung). De cada dez habitantes da capital, dois ocupavam as ruas. E a cada dia chegava gente de todos os rincões do país. O protesto se estendeu por mais de vinte grandes cidades. É ainda Orville Schell quem captou o clima de euforia e falsa vitória: "Jamais, em quinze anos visitando Pequim, vi tantas pessoas sorrindo e felizes quanto agora. Até os trombadinhas resolveram parar seus furtos e ajudar os estudantes... Mas esta ebulição criou uma atmosfera estranhamente irreal, que levava muitos a acreditarem que 'nem as balas poderão nos ferir!'".
Afinal, o planeta estava observando a China, aberta para as transmissões de TV ao vivo, devido à histórica visita do líder soviético Gorbatchev a Pequim. Sentindo seu poder ameaçado, os burocratas resolveram mais uma vez mudar do rumo do pêndulo da sua história, lixando-se para a opinião pública interna ou mundial. O "País do Meio" (Zhong Guo, que é o nome do país em chinês), de centro das atenções esperançosas do mundo, virou, da noite para o dia, a vergonha da humanidade.