Mundo do Trabalho

A humilhação cotidiana das 3 mil trabalhadoras da De Millus que costuram as peças íntimas de sedução das mulheres brasileiras mereceu algum destaque da imprensa brasileira e atualizou o velho tema do trabalho feminino.

As denúncias encaminhadas pelas trabalhadoras e confirmadas pela Delegacia Regional do Trabalho são conhecidas e usuais: o piso salarial é baixo e implica uma jornada diária de mais de nove horas de trabalho; os critérios de admissão, as práticas de gestão agridem as trabalhadoras com exigências sobre seu aspecto físico e sua vida privada, para impedir a contratação e o emprego de mulheres grávidas; as humilhações na fiscalização para impedir roubos são dignas de um campo de concentração. Nada disto é novo. Apenas atesta, mais uma vez, as perversidades da sociedade brasileira, as mazelas do Brasil profundo, o avesso da modernidade morena.

E porque o episódio De Millus ocorre quando outros velhos temas vêm à tona - maioria e minoria, igualdade e cidadania - e porque todos eles, apesar das aparências, não são neutros, vale a pena pensá-los no feminino, a partir do exemplo das meninas da De Millus.

O lugar das mulheres

Entre as transformações recentes da sociedade brasileira, o crescimento da participação das mulheres na atividade econômica não terá sido a menos importante. Não apenas pelo que representa em termos quantitativos para a população economicamente ativa mas pelas transformações nas relações sociais que estão embutidas nesta entrada maciça das mulheres no mercado de trabalho. Assim, entre 1970 e 1985, a PEA (População Economicamente Ativa) feminina triplicou, passando de 6,1 para 18,4%. Ainda em 1970, no total da população feminina, 18,2% trabalhavam, em 1985 este percentual sobe para 36%, assim, neste ano, 33% das pessoas que trabalhavam no Brasil eram mulheres.1

Os dados ilustram a importância da femininização do mercado de trabalho e mostram que nestes últimos anos, ricas e pobres, casadas, solteiras, separadas e viúvas, universitárias ou apenas escolarizadas, as brasileiras saíram de casa para trabalhar. Assim se por um lado foi a necessidade de completar o orçamento familiar que levou as mulheres, solteiras ou casadas, a "trabalhar fora", como observa C. Bruschini, é alta a atividade das mulheres casadas, com alta escolaridade e com filhos, o que indica que a necessidade não é a única explicação para o ingresso das mulheres no mercado de trabalho.

Por outro lado, com este lugar das mulheres no mercado de trabalho não significa que os trabalhadores homens estão perdendo terreno. Mas as formas do desenvolvimento industrial e a expansão do terciário ampliaram a oferta de empregos femininos. De maneira clássica, a expansão do terciário e de alguns ramos industriais - eletroeletrônica, por exemplo - consolidou a divisão sexual do trabalho. Há tarefas masculinas e tarefas femininas na sociedade configurando verdadeiras culturas profissionais sexuadas: as costureirinhas, as enfermeiras, as professoras primárias, as domésticas e secretárias, as embaladoras na indústria farmacêutica, as montadoras na eletroeletrônica ou no setor de autopeças. Enquanto na metal-mecânica, na automobilística, na química, na siderurgia são ramos masculinos.

A esta configuração clássica correspondem desigualdades também clássicas. Apesar da crescente escolarização das mulheres, suas possibilidades de carreira são mais restritas e seus rendimentos são inferiores. Em 1985 cerca de 16,5% dos homens ocupados ganhavam mais de cinco salários mínimos, enquanto apenas 7,2% das mulheres estavam nesta faixa salarial. Em compensação, 58,6% das mulheres tinham em 1985 renda de até um salário mínimo.2

Por outro lado, o processo de terceirização da economia atinge especialmente o trabalho feminino: em 1985, 69,2% das mulheres estavam ocupadas em atividades terciárias - a informatização bancária fez aumentar o trabalho feminino no setor, cresce o número de secretárias e digitadoras.

Ao mesmo tempo, estudando os dados sobre o nível de ocupação em São Paulo, observa-se uma diminuição significativa do emprego doméstico remunerado das mulheres, provavelmente resultado do acesso à educação, de um modo de vida urbano que valoriza os empregos "formais" e faz aumentar as resistências à "escravidão doméstica" que sempre fez das empregadas domésticas trabalhadoras inferiorizadas na própria legislação, o que só começa a mudar com a nova Constituição.3

Mas se por um lado a diminuição do trabalho doméstico assalariado nos grandes centros urbanos é significativa das novas práticas femininas, maior escolarização e especialmente do que se poderia analisar como uma tentativa surda de ruptura com as trajetórias profissionais tradicionais, por outro lado a distribuição das mulheres no mercado de trabalho reproduz as tendências já apontadas da divisão sexual do trabalho. O detalhamento desta distribuição é indicativo: os setores que absorvem com mais intensidade o trabalho feminino no Brasil são o de prestação de serviços e o social. Aliás, setores não valorizados socialmente por meio dos salários.

Assim, se por um lado é verdade que as mulheres trabalham mais, como nas velhas polêmicas do feminismo do começo do século, coloca-se a questão: trabalhar fora significa uma maior igualdade entre mulheres e homens na sociedade brasileira? E se não há igualdade, é este um tema maior de política?

A humilhação cotidiana das meninas da De Millus é apenas a ponta do iceberg de uma relação de poder que, entre as muitas desigualdades sociais, inclui a desigualdade entre homens e mulheres. É claro que ter seu corpo vasculhado, ter sua vida sexual controlada faz parte de práticas de controle que atingem particularmente as mulheres. Trata-se de se perguntar, mais uma vez, o que faz com que patrões, ou outras autoridades, se sintam no direito de invadir o corpo e a vida privada de suas funcionárias.

Não cabe aqui remontar à história da dominação de gênero na nossa cultura: as idéias que identificaram as mulheres à natureza, à irracionalidade, à reprodução biológica e à maternidade e como o trabalho não doméstico, apesar de historicamente realizado também pelas mulheres, foi considerado próprio dos homens. Como consequência de tudo isso, se para os trabalhadores foi necessário lutar pelo direito à cidadania por meio de séculos, a luta das trabalhadoras foi sempre mais difícil porque por definição eram trabalhadoras ilegítimas, salvo naquelas funções que se assemelhavam à maternidade, ao trabalho doméstico. Estes mesmos serviços sociais que ocupam majoritariamente as brasileiras.

A situação das mulheres brasileiras combina assim as formas da dominação: assalariamento crescente, mas em setores "femininos", o que implica o reforçamento das desigualdades salariais e de carreira etc. Por outro lado, apesar da escolarização crescente, a definição das tarefas femininas, principalmente na indústria, ainda repousa no falso naturalismo das tarefas que exigem "dedos finos", agilidade, concentração e "disciplina", todas, obviamente, qualidades "inatas" das mulheres.

Mas, confirmados os dados das desigualdades salariais, profissionais etc., cabe analisar as outras dimensões deste processo de mutações em que as mulheres saem de casa. Porque se de um lado é certo que as relações domésticas ainda são fortemente marcadas pela subordinação feminina, por outro lado, nos vários grupos sociais, cresce o número de mulheres chefes de família, que criam seus filhos sozinhas, que fazem projetos de carreira profissional. É esta situação que coloca a questão da igualdade.

Há igualdade de direitos entre mulheres e homens trabalhadores(as)?

Parece que não. Isto porque, no quadro dominante da violência social e de desigualdades, vimos que as mulheres ainda ganham menos, e são menos qualificadas. Mas, mais ainda, para serem trabalhadoras, têm que deixar de ser mulheres. Isto é, as trabalhadoras são controladas na sua sexualidade, na sua vida privada, para terem acesso ao direito ao trabalho reconhecido pelos mesmos defensores das liberdades privadas e do direito à vida, que, no entanto negam às trabalhadoras.

A comparação das faixas salariais de homens e mulheres, das qualificações e das carreiras indicam claramente que as trajetórias profissionais masculinas e femininas são não só diferentes mas desiguais em seus resultados. Por outro lado, se consideramos o texto da nova Constituição como indicador de uma preocupação de igualdade presente na sociedade brasileira, o problema de que igualdade queremos e quais os mecanismos que são necessários acionar para alcançá-la se coloca.

Concretamente há um problema: como fazer para que as oportunidades profissionais de homens e mulheres sejam iguais, ou isto é impossível?

Ainda faz parte da nossa mentalidade a idéia de que o trabalho profissional das mulheres é secundário e que naturalmente nela se reproduzem as preferências de homens e mulheres. Assim, os guetos ocupacionais, as diferenças na ascensão de carreira teriam explicações senão biológicas, de que as mulheres pensam menos ou que são inaptas para gerir até mesmo uma simples família3, explicações culturais de que as mulheres se relacionam com o trabalho de forma diferente, são menos ambiciosas e, sobretudo, colocam a maternidade como primeira opção. O segundo argumento foi amplamente utilizado por um certo feminismo radical, preocupado com a defesa de uma cultura feminina, que recentemente ressurgiu nos Estados Unidos em torno do caso Sears - quando a empresa, utilizando a argumentação de uma intelectual feminista, definiu alguns postos para os quais as mulheres não seriam adequadas, justamente por sua cultura feminina menos competitiva, menor dedicação ao trabalho etc. O caso virou processo e a discussão serviu para chamar a atenção para as armadilhas da cultura da diferença.

Mas no Brasil enfrentamos situações bem mais marcadas. Em primeiro lugar, os guetos ocupacionais não são contestados. Não há mecanismos para incentivar que as mulheres façam cursos técnicos e sobretudo tenham oportunidades de trabalho correspondentes a sua qualificação. Ao contrário, as estatísticas indicam que há um subaproveitamento da escolarização feminina. As mulheres estudam mais, mas nem sempre têm a formação necessária para, por exemplo, chegar ao posto de inspetora de qualidade numa indústria. Mas, num segundo momento, é preciso considerar que tampouco se recrutam mulheres para este posto. A forma de enfrentar esta desigualdade de carreiras foi, em muitos países europeus e também nos EUA, promover políticas de discriminação positiva, isto é, forçar o recrutamento de homens e mulheres em quotas iguais, através de uma legislação que vise a paridade mas não a proteção.

A nova Constituição apenas enuncia o princípio da igualdade, mas as formas de sua promoção devem ser objeto de uma regulamentação que nem os partidos, nem as centrais sindicais, nem as trabalhadoras apresentaram ainda para discussão. Assim, se a igualdade de acesso ao mercado de trabalho e a reformulação das qualificações dependem de uma legislação paritária, a igualdade salarial depende da implementação de contratos coletivos de trabalho.

A promoção da igualdade significa também o reconhecimento do direito das mulheres e dos homens à maternidade e à paternidade. Para que a legislação sobre o trabalho feminino não seja desigualmente protetora, é preciso introduzir também os direitos da paternidade - a licença paternidade. O avanço neste item é ainda pequeno, o novo texto constitucional apenas reconhece o princípio, mas sua regulamentação vai depender do interesse e do investimento dos grupos sociais. A julgar pelo que está acontecendo com a aplicação da licença maternidade, as perspectivas não são positivas.

Na verdade, é esta a única tradição de política com relação ao trabalho feminino existente no Brasil: a proteção à maternidade. A nova Constituição, ao aumentar o período de licença maternidade, apenas seguiu uma tendência geral na legislação mundial. No entanto, a mentalidade dos empresários brasileiros ainda não parece ter alcançado este nível de reconhecimento de direitos individuais. Para os empresários brasileiros a maternidade não é direito das mulheres pobres. Não se trata de romper a divisão sexual do trabalho, pois seria difícil requalificar homens para todas as funções exercidas por mulheres, trata-se de impossibilitar a aplicação da licença maternidade, impedindo que as mulheres engravidem. O exemplo da De Millus é aqui o mais notório, mas as denúncias individuais se multiplicam e envolvem não só indústrias mas setores do comércio. Na verdade, caberia uma ampla investigação sobre os questionários de recrutamento em que se pergunta se a candidata ao emprego "fez ligadura de trompas", ou sobre a aplicação de testes periódicos de controle de gravidez.

Este é talvez o ponto mais interessante para a discussão da igualdade e diferença nas relações de gênero. A vivência maternidade é uma diferença que atinge mulheres, uma especificidade, ou maternidade e paternidade são vivências de mulheres e homens iguais que compõem uma humanidade que nem é masculina nem é neutra, mas sexuada, e que por isso mesmo implica vivências sexuadas.

Assim, é preciso poder viver a maternidade e a paternidade, e se os homens não a vivem é também porque a paternidade só é entendida através da ética do provedor. Não se dá tempo aos homens para que sejam pais. E para que as mulheres sejam mães é preciso que renunciem ao trabalho. Isto não só porque se considera a licença maternidade um luxo, mas porque as mulheres não encontram equipamentos coletivos que facilitem as tarefas domésticas: as creches, os parques infantis, as escolas com tempo integral. Por isso é tão difícil ser operária, bancária, médica ou professora universitária e, especialmente, avançar nas carreiras.

Mas será que as mulheres querem avançar nas carreiras, ou este é um desejo apenas de algumas mulheres excepcionais, espécies de supermulheres, que renunciam ou limitam a vida afetiva, o envolvimento familiar? Ou será ainda que as mulheres não querem subir na carreira porque a competição não faz parte dos seus valores, como pensam os gerentes da Sears.

Para as meninas da De Millus considera-se que o emprego é uma necessidade que elas manterão se não puderem encontrar alguém que as sustente. Por isso, como seu trabalho não é visto como uma atividade que faz parte do exercício de sua cidadania, seus direitos enquanto trabalhadoras também não são reconhecidos. Seguindo esta lógica, a necessidade de políticas paritárias é apenas uma questão de minorias. Depois de resolvida a pobreza na sociedade brasileira, as mulheres chegarão quem sabe à igualdade, ou quem sabe à diferença escolhida de uma carreira intermitente subordinada ao prazer da maternidade.

Mas a história ainda desconhecida das relações de gênero indica que a igualdade de direitos individuais, sociais e políticos vem sendo penosamente construída como um direito através de séculos e lutas. Por um lado, esta história atesta a necessidade de políticas que promovam a igualdade. Por outro lado, a própria reflexão sobre estas políticas e sobre as relações de gênero configuram um quadro muito mais complexo. Como traduzir no cotidiano os direitos sociais e individuais assegurados na Constituição: a igualdade em direitos e obrigações, a licença remunerada de 120 dias à gestante, a proteção ao mercado de trabalho da mulher, a proibição de diferenças de salário, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil.

A experiência européia e a norte-americana ao mesmo tempo que apontam para as políticas de paridade reconhecem também as dificuldades de sua implementação, a necessidade de uma vigilância permanente por parte das próprias mulheres, no caso italiano, ou dos organismos encarregados de políticas antidiscriminatórias - nos EUA a Equal Employment Opportunities Comission4 - para que a paridade não permaneça como princípio abstrato.

Neste sentido é necessário combinar medidas imediatas que favoreçam a igualdade de oportunidades de emprego e de salário, tanto quanto medidas de largo prazo que tenham como objetivo a capacitação das mulheres. Tudo isto apoiado em políticas sociais que multipliquem creches e equipamentos coletivos para que a trajetória profissional de mulheres e homens, mães e pais, possa se fazer sem o sacrifício da vida cotidiana, sem dupla jornada, sem penalização das crianças, elementos fundamentais para redefinir a divisão do trabalho doméstico.

O objetivo de uma política de paridade deve ser promover a igualdade de homens e mulheres no exercício da cidadania, e não sancionar as desigualdades através de medidas protecionistas como aquela que antecipa a aposentadoria das mulheres, justa se considerarmos a dupla jornada de trabalho das mulheres, mas perigosa na medida em que tende a reforçar uma diferença que na perspectiva da igualdade tem que ser questionada no dia-a-dia da vida doméstica, nos espaços privados, tanto quanto no trabalho e nos espaços públicos.

A humilhação cotidiana das meninas da De Millus, os dezessete autos de infração da legislação trabalhista e as 73 notificações sobre medicina e segurança do trabalho emitidos pela Delegacia Regional do Trabalho do Rio5 atestam apenas uma parte do que se entende por dignidade e respeito das trabalhadoras, do terror que se esconde embutido na magia das rendas e na sedução dos brilhos dos lançamentos da De Millus e nos trabalhos femininos.

A cidadania das trabalhadoras é um tema para os anos 90.

Elisabeth Souza Lobo pertence ao Departamento de Sociologia da USP.