Economia

De inspiração e instrumental monetarista, o plano do novo governo é tão rebuscado quanto irresponsável. Pode pavimentar o caminho do caos com o discurso o empolado dos que falam em pôr as coesas em ordem. E os maiores prejuízos vão recair sobre os trabalhadores.

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O plano Collor é um programa de estabilização centrado em um instrumental monetarista e conservador que pretende deter a inflação e ao mesmo tempo, lançar as bases de um ajuste estrutural neoliberal para a economia brasileira.

O debate tem se concentrado na sua dimensão de política antiinflacionária e suas consequências imediatas como a recessão, o desemprego e o arrocho dos salários, mas muito pouco tem sido discutido sobre o sentido mais profundo do reajuste que se pretende promover no capitalismo brasileiro. Nós pretendemos discutir de forma articulada estas duas dimensões presentes no Plano Collor: a política de estabilização e as bases neoliberais de ajustamento estrutural. Para isso, é absolutamente vital reconstituir as características centrais da crise da economia brasileira.

O Brasil demonstrou um dinamismo econômico imenso ao longo de todo o período pós guerra, com o PIB (Produto Interno Bruto) crescendo a 7% ao ano e aumentando mais de dez vezes entre 1945 e 1980. O PIB por habitante cresceu quatro vezes neste mesmo período. Os anos 80 romperam esta tendência histórica de crescimento acelerado e foram marcados pela estagnação econômica. Nesta última década o PIB por habitante praticamente não cresceu, a economia foi sufocada pelo endividamento externo, sofremos um estrangulamento fiscal, assistimos a uma deterioração dos salários reais e das condições de vida da população. A hiperinflação começou a se manifestar claramente nos últimos meses e as incertezas e a especulação tomaram conta dos agentes econômicos. Uma crise multidimensional, que do ponto de vista econômico representa o esgotamento de um padrão de crescimento e que reivindica a definição de uma nova estratégia de desenvolvimento.

A articulação de qualquer nova estratégia de crescimento teria que enfrentar a crise do Estado brasileiro, que cumpriu tarefas decisivas ao longo da história econômica recente; como promover o crescimento, administrar os ciclos econômicos, articular o financiamento da produção, definir os parâmetros da inserção da economia no capitalismo internacional e disciplinar a política de rendas. Este "Estado-Desenvolvimentista" se exauriu, agigantou-se e está marcado por uma lógica corporativa e cartorial, que continua servindo clientelisticamente ao grande capital, mas é absolutamente incapaz de definir novos horizontes de crescimento e gerir de forma consistente a política econômica.

Do ponto de vista político, a crise do Estado foi também uma crise de regime político e de governo.

As eleições presidenciais marcaram claramente duas alternativas antagônicas de enfrentamento da crise, dois projetos de sociedade, duas propostas de recomposição orgânica do Estado, de redefinição da relação entre Estado e sociedade civil, Estado e mercado, Estado e distribuição de renda, Estado e desenvolvimento. O Plano Collor é programa de estabilização que procura concretizar um projeto de reestruturação do Estado em bases neoliberais.

Este programa de estabilização armou uma complicada armadilha para o governo e para a sociedade. O choque monetário aprisionou uma imensa massa de ativos financeiros, abalando o sistema de crédito e a confiança do governo enquanto guardião da poupança privada. Nestas condições o governo enxugou a liquidez e recompôs os instrumentos para injetar ativos monetários na economia, mas perdeu a confiança do mercado e com ela as condições básicas para financiar seus - déficits por meio da captação de recursos que permitam regular os meios de pagamento. Desta maneira, a pretensa heterodoxia do programa conduzirá rapidamente à uma vigorosa ortodoxia, devendo jogar o país em uma profunda depressão econômica.

Com medo de novos confiscos, os agentes econômicos tendem a consumir os excedentes ou procurar ativos especulativos fora do alcance do governo: a temida dolarização da economia. Paralelamente, a propensão ao consumo aumenta em um quadro de congelamento provisório, especialmente porque os poupadores foram punidos pelo governo. Esta "bolha de consumo" estimulada pelo comércio, que desova estoques e procura liquidez, não está sendo acompanhada de novas emendas e reativação da produção industrial. Uma crise de abastecimento setorializada poderá ocorrer; o que provocará uma pressão sobre-os preços. O governo será compelido a novo aperto de liquidez, estrangulando a demanda e forçando novo surto recessivo. É o conhecido círculo vicioso da estagnação.

A falta de ativos monetários para capital de giro e continuidade dos programas de investimentos das empresas e a ausência completa de critérios de seletividade na reforma monetária estão sufocando a demanda e os investimentos em setores de grande efeito multiplicador na economia: o setor de bens de capital, a indústria de construção civil, a indústria automobilística, a produção agrícola; além do impacto sobre as médias, pequenas e micro-empresas e especialmente sobre a chamada economia informal.

Os indicadores de recessão, associados à cautela e incerteza do empresariado, conduzem a economia para uma situação típica que Keynes chamaria de preferência pela liquidez. Só que neste contexto a preferência é pela liquidez de ativos especulativos e fora do controle do Estado: o dólar.

Este choque monetário promoverá o desemprego em massa, agravando a crise dos grandes centros urbanos e dificultando a capacidade de negociação salarial dos sindicatos de trabalhadores.

O Plano Collor não é apenas uma política de estabilização marcada pela ortodoxia monetária. A recessão econômica é a ante-sala de um ajuste onde o mercado organiza a nação. A privatização do Estado e a internacionalização da economia são partes de uma estratégia de desenvolvimento neoliberal.

A reforma do Estado deve ser entendida dentro de um contexto de ofensiva do ideário e de crise internacional do chamado "Estado-Desenvolvimentista".

No contexto da grande crise de 1929, John M. Keynes lançou as bases teóricas de uma política econômica baseada no Estado ativo e intervencionista. Uma nova relação entre Estado e economia capitalista, que valorizava a participação estatal na dinâmica de acumulação, sobretudo no controle da demanda efetiva da economia, e através dela na regulação dos ciclos econômicos. O liberalismo sofria um ataque teórico e político violentíssimo, que seria reforçado pelo avanço político da social-democracia e do "Estado de Bem-Estar Social" onde as políticas sociais jogavam um papel decisivo, compensando os desequilíbrios das relações capitalistas de produção.

O Keynesianismo e a social-democracia perdem espaço teórico e político desde os anos 70, num contexto de profundas inovações tecnológicas, constituição de macro-mercados, desaceleração econômica e crise fiscal que abalou o projeto de Estado de Bem-Estar Social. O ideário liberal, mais precisamente a grande ofensiva da nova direita, especialmente com Reagan e Bush nos EUA, Margareth Thatcher na Inglaterra e Helmut Kohl na Alemanha, se materializava no projeto neoliberal. O neoliberalismo se fortalecerá mais com a crise do Leste Europeu e lançará a poderosa ofensiva ideológica da supremacia absoluta do mercado sobre o planejamento, onde a privatização do Estado e a internacionalização da economia são o único caminho eficaz para o aumento da produtividade e eficiência do organismo econômico.

Na América Latina o pensamento econômico do pós-guerra foi hegemonia pela Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL) - o organismo da ONU criado em 1949 sob a secretaria de Raul Pebrisch, incorporando importantes economistas brasileiros. O pensamento cepalino, heterodoxo em sua composição, tinha como objetivo central de sua reflexão a constituição de uma política econômica e uma estratégia de crescimento capaz de superar o subdesenvolvimento, tendo como eixo a busca da industrialização do continente: o chamado "nacional-desenvolvimentismo" que pretendia impulsionar a "economia periférica" a partir do processo de "substituição de importações" para constituir uma industrialização integrada, com prioridade para o mercado interno. O Estado também aqui cumpria o papel fundamental de investir no setor produtivo, na produção de insumos, na constituição da infra-estrutura básica, na centralização do esquema de financiamento e na articulação dos pacotes de investimentos.

Esta base teórica, amparada por um conjunto de forças políticas populistas, antiimperialistas de esquerda, nacionalistas conservadoras e de uma certa forma até mesmo pelas ditaduras militares, marcadas pelo binômio "segurança nacional e desenvolvimento", determinou claramente a concepção geral do papel do Estado na economia. Um Estado ativo, que alavanca o investimento, intervém diretamente na produção e faz as vezes do capital financeiro, um "Estado-Desenvolvimentista".

Porém, nos anos 80, no quadro de estagnação econômica prolongado, o sentimento anti-estatismo na elite econômica cresceu, e também aqui o ideário neoliberal emerge como hegemônico no seio das classes dominantes e consegue grande apoio do povo, que não se beneficiou diretamente de todo o crescimento acelerado do período anterior.

O neoliberalismo vem sendo apresentado como solução para o impasse histórico das economias endividadas do Terceiro Mundo e impulsionado de forma orquestrada pelos grandes centros de decisão política internacional como o FMI, o Banco Mundial e demais organismos multilaterais; pelo sistema financeiro e pelos principais governos das economias capitalistas avançadas.

No Plano Collor as bases do ajuste neoliberal se articulam nas propostas de privatização das estatais por uma comissão de oito pessoas, nomeadas com plenos poderes pelo Presidente da República; pela intenção de retomo ao FMI e pela liberdade cambial. A privatização é a base de negociação com os grandes credores internos e externos, onde se pretende trocar títulos de dívidas de altíssimo risco por patrimônio público. A liberdade cambial num quadro de fragilização financeira das empresas nacionais é a face da perspectiva de internacionalização da economia.

Porém, este neoliberalismo tupiniquim não se dá conta de que os espaços abertos pelo Estado serão ocupados por um mercado oligopolizado e internacionalizado. E de que a dinâmica da economia capitalista internacional é altamente desfavorável aos países endividados do chamado Terceiro Mundo. As novas tecnologias estão destruindo as vantagens comparativas da mão de obra barata e das facilidades de acesso às matérias-primas. Nosso papel é transferir capital para o exterior e não somos, como país e continente, uma fronteira importante para o grande capitalismo internacional.

A renda líquida enviada ao exterior mais que triplicou em relação ao PIB, entre a década passada (1970/79) e a atual (1980/89) atingindo cerca de 4,5% do PIB ao ano.

O volume de exportações aumentou em 30% entre 1980 e 1988, enquanto as importações caíram 64%.

A privatização e internacionalização não irão reverter este quadro complexo de inserção perversa da economia brasileira na nova divisão internacional do trabalho.

Definitivamente, o neoliberalismo não é um caminho promissor para a retomada do crescimento. Portanto, a recessão provocada pelo Plano Collor, associada à privatização indiscriminada das empresas estatais e abertura para o capital estrangeiro podem lançar a sociedade em um verdadeiro buraco negro. Estamos assistindo a uma desorganização da produção sem garantias de reestruturação. O FMI não faria melhor.

O Congresso Nacional ganhou responsabilidades de governo e poderia jogar um papel decisivo para reverter o rumo do ajuste imposto pelo Plano Collor.

No entanto o PMDB preferiu o adesismo ao governo, muitas vezes acompanhado pelo PSDB e sempre ancorado pelos partidos de direita; e assegurou a essência da política de estabilização recessiva e o sentido neoliberal do ajuste.

O PT e os partidos de esquerda, apesar da resistência e dos projetos alternativos que apresentaram, acabaram esmagados pela maioria parlamentar conservadora.

As mudanças foram pequenas. A privatização das estatais sofreu uma ligeira moralização, sem reverter a lógica neoliberal. Os salários sofreram pequenas modificações sem que o arrocho fosse eliminado. A reforma monetária foi levemente aliviada sem que a seletividade assegurasse o combate das injustiças com os pequenos poupadores. Assim, não se canalizam recursos para sistema produtivo nem se ameniza a profundidade da recessão em andamento.

Estamos no fim de um ciclo onde a hiperinflação era a expressão mais acabada do esgotamento do padrão de financiamento e crescimento da economia brasileira. O choque monetário sem reforma financeira, a recessão sem horizontes de retomada de investimentos, o desemprego sem políticas compensatórias, as privatizações sem política industrial e a mais completa ausência de diretrizes para a defesa dos salários e a distribuição da renda vão configurando um quadro alarmante, que pode ameaçar a recém conquistada democracia política. Sem profundos avanços na cidadania social do povo brasileiro dificilmente haverá futuro para a cidadania política em nosso país. Olho nelle.

Aloizio Mercadante é professor de economia da UNICAMP e PUC/SP, membro da DR/SP e da assessoria econômica do PT.

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Melhor que o soneto

O PT apresentou mais de 150 emendas às Medidas Provisórias do Pacote Collor, sendo quatro substitutos globais. As principais emendas apresentadas são as seguintes:

Medida Provisória nº 154 - política de preços e salários
A. Reposição do IPC de março – várias alternativas foram apresentadas visando distribuir seu impacto ao longo do tempo;

B. Recuperação da política vigente para o salário mínimo, com a reposição do IPC de março e aumentos reais bimestrais de 6.09%;

C. Reposição mensal e automática da diferença entre a inflação verificada e o índice da prefixação de salários;

D. Garantia de, emprego no período recessivo provocado pelo plano. Várias alternativas foram apresentadas, como a estabilidade de 180 dias, o aviso prévio proporcional ao tempo de serviço e o aumento da multa sobre o saldo do FGTS;

Garantias Jurídicas
O PT apresentou diversas emendas visando preservar garantias existentes na legislação salarial anterior e suprimidas pelo Pacote Collor tais como a irredutibilidade dos salários e a proibição da incidência do afeito suspensivo nos processos de dissídio coletivo.

Medida Provisória nº155 - privatizações
O PT rejeita a concepção neoliberal do Plano Collor e principalmente a forma adotada para as privatizações segundo a qual o governo pode privatizar as empresas que bem entender, na forma que lhe convier e sem nenhuma consulta ao Congresso Nacional. O partido apresentou um substitutivo global à MP 155, vinculando o processo de privatização à política industrial e à política de desenvolvimento do país. O processo proposto se basearia em uma lei qüinqüenal definidora das diretrizes gerais de política industrial, de privatização e criação de empresas estatais, além de uma lei anual discriminando as empresas e os critérios das privatizações. Além disso, foi apresentada uma série de emendas corrigindo defeitos específicos da Medida Provisória.

Medida Provisória nº168 - política monetária e confisco de ativos financeiros
Esta é a medida central do plano. As emendas apresentadas pelo PT à MP 168, entre as quais um substitutivo global, refletiam a preocupação partido com os efeitos recessivos provocados pela redução de liquidez exagerada e sem seletividade do Plano Collor. As principais emendas visavam o estabelecimento de critérios seletivos (em função do Setor de atividades e do tamanho da empresa) para a liberação de capital de giro. Foi igualmente proposto um programa de investimentos financiado total ou parcialmente com os recursos bloqueados e conduzido pelo BNDES e pelo Banco do Brasil. Além de procurar preservar o nível de atividade econômica, o PT apresentou emendas visando resguardar o pequeno poupador através da liberação antecipada dos cruzados novos bloqueados, segundo uma escala progressiva privilegiando o pequeno poupador em detrimento do grande.

Política Fiscal
O PT apresentou diversas emendas visando aperfeiçoar as medidas fiscais do pacote. Entre estas merece destaque um substitutivo global à MP 160 estabelecendo a incidência do IOF em função do valor total dos ativos financeiros de um mesmo proprietário e com alíquotas progressivas de 5% a 30%, elevando assim a arrecadação de impostos ao mesmo tempo em que diminui a carga tributária dos pequenos aplicadores. Além disso, o PT apresentou, duas emendas para elevar a tributação da propriedade imobiliária especulativa: uma modificando radicalmente a base de cálculo e as alíquotas do ITR, e outra estabelecendo a tributação da propriedade imobiliária urbana sub-utilidade.

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