Internacional

O russo Kiva Maidanik, ex-integrante do PCUs, analisa a situação sócio-econômica da URSS após o golpe contra Gorbatchev e diz que a única coisa que os burocratas aprenderam a fazer, depois de décadas no poder, foi lançar cosmonautas ao espaço.

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O historiador Kiva Maidanik, ex-membro do PCUS, trabalha no Instituto de Economia Mundial e Relações Internacionais da Academia de Ciências da URSS. Ele veio ao Brasil em setembro, a convite do Instituto Cajamar, para participar de um seminário. Nesta interessante conversa, Kiva fala da fraqueza do pensamento de esquerda em seu país e afirma que os jovens russos são refratários ao socialismo.

Você estava de férias com sua família no exterior quando aconteceu o golpe na URSS. O que sentiu ao receber a notícia e o que pensou em relação ao que estava acontecendo?
Antes de 1985, viajar com a família para o exterior era, de modo geral, uma coisa muito suspeita. As autoridades procuravam fazer o possível para que isso não acontecesse, pois pensavam que se alguém saísse para descansar com a família muito provavelmente iria permanecer por lá. Se a família ficasse na URSS, havia maiores garantias de que o homem não trairia. Além do mais, sair do país é muito caro. Mas como eu tinha recebido um convite de meus amigos de Herri Batasuna - o partido basco de esquerda - para um seminário, o problema do dinheiro para a viagem estava parcialmente resolvido. Chegamos na Espanha no dia 18 de agosto. Na manhã do dia 19 um companheiro chegou com o jornal dizendo: "tem um golpe na URSS". Liguei a televisão e durante três dias passei todo o tempo na frente dela. O caráter do golpe foi claro desde o primeiro momento. Meu medo era de que as pessoas da esquerda o apoiassem, pois imaginava que haveria uma grande demagogia pseudo-socialista nas declarações dos golpistas. No entanto, não havia uma única palavra sobre socialismo nem nada parecido. A única coisa que interessava a eles era o Estado e seus cargos. Porém meus temores pareciam ter fundamento, porque o Partido Comunista Português o apoiou, algo semelhante ocorreu com o Partido Comunista da Grécia e, ao chegar aqui, fiquei sabendo que no Brasil alguns elementos também apoiaram o golpe, mostrando toda força da ignorância e do dogmatismo louco.

Quais as consequências imediatas do golpe?
Está absolutamente claro que o fracasso do golpe semifascista vai abrir caminho para a direita liberal. Temos três direitas na URSS: uma direita stalinista estatista, a nacionalista liberal nas outras repúblicas e a aliança da direita liberal e do centro democrático liberal na Rússia. Na realidade, o golpe propiciou um quadro onde a esquerda poderia ganhar, com uma condição: que em nome do comunismo, do socialismo, dos valores de esquerda, encabeçasse a luta contra o golpe.

E onde estava essa esquerda?
Havia o Partido dos Comunistas Russos para a Democracia cujos membros atuaram como indivíduos independentes. Colocaram-se como uma força de apoio a Ieltsin, sem nunca proclamar seus próprios valores. Esse partido foi criado como alternativa ao Partido Comunista da República Russa. O vice-presidente da Rússia e um dos principais dirigentes da defesa do Parlamento é desse partido. Em nenhum momento eles atuaram como força de esquerda.

Qual a razão deste comportamento?
Não se deve esquecer que o golpe foi organizado por aparatos do PCUS, que casso do golpe semi-fascista vai abrir os golpistas mandaram a todas organizações regionais do PCUS telegramas dizendo para apoiar ativamente a ação do comitê golpista, que todos os seus oito membros eram integrantes do Comitê Central do PCUS etc. Por isso o contragolpe foi dirigido contra o PCUS, contra o aparato. Ninguém na União Soviética lamenta muito esse fato. Mas foi muito ingênuo achar que o contra-golpe devesse ser só contra o aparato. Ele teve que, necessariamente, voltar-se contra valores, ideologias e o passado socialista. Por isso a esquerda e a idéia de socialismo vão sair perdendo, e muitíssimo, com qualquer resultado dos acontecimentos. Para a esquerda de todo o mundo o pior resultado teria sido a tomada de poder pelos golpistas. Se tivessem tomado o poder, mais cedo ou mais tarde começaria a repressão sangrenta, stalinista, ou inclusive Pol Pothista. Essa repressão teria sido justificada com as bandeiras do socialismo, da esquerda.

Quando você percebeu que o golpe fracassaria?
No dia seguinte ao golpe, eu dizia que os golpistas não se manteriam mais do que uma semana. Duas coisas se evidenciavam: primeiro, que nada se pode fazer contra as multidões; segundo, as caras dos soldados. Eu conheço a expressão dos soldados golpistas e me dei conta de que as caras de quem não quer e não vai participar de uma ação antipopular são absolutamente diferentes. Sem falar na manutenção da resistência em Moscou. Eles perderam no dia seguinte. Houve um momento de distensão, de alegria, na noite de quarta-feira, dia 21, e na noite de 22 chegaram novas notícias: começou o segundo ato do drama, com a ofensiva deflagrada pelo bloqueio liberal-democrático contra as instituições centrais do Estado e, ao mesmo tempo, contra a ideologia, a memória e o passado da esquerda. Primeiro, os monumentos caindo, depois os periódicos proibidos e, em seguida, o primeiro recuo de Gorbatchev que, na verdade, está cedendo a maior parte do poder ao governo e ao presidente russos. O segundo recuo de Gorbatchev foi aceitar a suspensão do PCUS e sua demissão do cargo de secretário-geral. Já no dia 24 ficou claro que o fracasso do golpe abrira caminho à ofensiva generalizada dos liberais radicais. No dia 25 começou o terceiro ato: a desintegração das estruturas estatais da ex-União Soviética, sua transformação, primeiro em confederação, depois, em associação livre, agora não se sabe em que... As repúblicas já não são apenas soberanas, mas independentes. A imagem de Ieltsin no tanque encabeçando a resistência, a equação comunismo-golpismo e anticomunismo-defesa da democracia pelo povo de Moscou por enquanto estão dadas. O problema é o que acontecerá no futuro. As dificuldades, os atos impopulares da política econômica, começarão a desgastar a imagem dos dias heróicos.

Quais são as perspectivas da economia soviética, hoje?
Há dois problemas importantes. Nossa situação econômica é péssima. Este ano haverá uma queda da produção a tal ponto que o ano de 1991 estará como 1971. A queda poderá ser de 20% a 25%. A indústria está sendo paralisada por falta de insumos em virtude da interrupção dos vínculos entre as repúblicas, pois as empresas e kolkhozes preferem a troca natural a vender sua produção. Pela primeira vez na nossa história, desde 1922, aparece o fenômeno da hiperinflação, que não ocorreu nem durante a guerra. O que mais preocupa a população é o problema da alimentação durante o inverno. Não tivemos uma colheita muito ruim, mas os produtores não querem vender porque o dinheiro que receberão não lhes interessa. Desde o ano passado, a maior parte da produção, que antes ia obrigatoriamente para o Estado, agora deve ser vendida a ele. Contudo, como o dinheiro está cada vez mais desvalorizado, eles preferem conservar os produtos em seus depósitos e trocá-los diretamente. Por exemplo, cem toneladas de trigo por três, quatro ou cinco caminhões. A situação da alimentação pode ficar muito feia, apesar de os produtos existirem. O que se quebrou foi todo o sistema de distribuição. Há problemas com a energia: está caindo a produção de petróleo. Também cai parcialmente a produção de carvão. Um outro problema é como será a colaboração econômica entre às repúblicas. Esta é a maior preocupação para as próximas semanas e meses.

E como você vê a evolução da situação política?
O fracasso do golpe antidemocrático terminou com a ameaça à democracia por parte da burocracia central do Estado federal em todas as suas ramificações: exército, KGB, PCUS. Este era uma parte - e das mais centralizadas do Estado. Mas ao mesmo tempo as políticas mais autoritárias aparecem na atuação das burocracias republicanas que agora têm todo o poder e toda a propriedade. Nos dias 22, 23 e 24 de agosto realizou-se um deslocamento da propriedade do governo e da maior parte do poder para as burocracias republicanas. No caso da Rússia, poderiam ser enumerados alguns pontos em torno dos quais surgem tendências para o autoritarismo: a Rússia tem doze repúblicas autônomas que agora reclamam o status de repúblicas federais. Se elas conseguirem algo, virão outras atrás, e a mesma exigência já não terá um caráter étnico, mas regionalista. Então, na luta contra essas tendências para a descentralização, o autoritarismo parece possível num primeiro momento. O segundo problema é que com a ausência da velha ideologia pseudo-socialista e numa situação em que a ideologia democrática é, na verdade, o patrimônio da minoria (intelectuais, uma parte da juventude etc.) existe uma grande tentação de se voltar à ideologia baseada no nacionalismo russo. Os choques com as outras repúblicas federais irão contribuir para o aprofundamento dessa tendência.

O comportamento e a personalidade de Ieltsin reforçam essa tendência?
Ieltsin já deu várias declarações e realizou ações neste sentido. O processo acelerado de desintegração da URSS não se deve tanto ao golpe em si mas as suas conseqüências, ao novo papel da Rússia que, nos dias 22 e 23, se apoderou de 60% do patrimônio, da propriedade da União Soviética. Adjudicou-se os principais ministérios em seu território e se nota que o governo goza de grande apoio da população, apoio que Gorbatchev não teve. Tudo isso assustou as burocracias das outras repúblicas. Elas tiveram medo que a nova Rússia interviesse ativamente em seus assuntos internos, já que ela terá a preponderância quase legalizada na nova confederação. As burocracias preferiram abandonar esta confederação e buscar refúgio na independência, nos laços mais frouxos da associação. Por outro lado, temos o vazio ideológico.

Diante deste quadro, qual tem sido a atuação da igreja ortodoxa?
Produz-se uma tendência, absolutamente repugnante, de superar a separação entre Estado e Igreja: A religião ortodoxa se transforma em uma religião oficial do Estado e a Igreja tende a ocupar, pelo menos ideologicamente, o lugar do PCUS. Creio que não existe no mundo atual um Estado com intervenção do clero tão aberta e tão legalizada nos assuntos laicos como na União Soviética e na Rússia. O presidente russo recebeu antes do golpe a benção do patriarca. O patriarca russo foi o primeiro a proclamar aos quatro ventos o fim da época começada em novembro de 1917. Eu penso que há outro problema, talvez mais importante: a tendência a fortalecer o Poder Executivo contra o Legislativo. Isso significa dissolver os sovietes e entregar todo o poderás prefeituras, mas acredito que para os próximos meses e anos o principal problema político interno russo vai ser o da democracia. E para o pouco que existe de esquerda a situação vai reclamar uma aliança com democratas e liberais burgueses anticomunistas - foram eles os primeiros a reagir de forma clara e contundente contra essas tendências autoritárias do Estado e, particularmente, do governo russo. Há matérias nos jornais que falam deste novo perigo de autoritarismo e proclamam que agora que o conservadorismo está derrotado, é necessário prestar maior atenção a estas novas tendências.

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Como vem se desenvolvendo o processo de privatização na URSS?
Neste processo podemos ver uma tendência que eu qualificaria de "mafioso-democrata". É verdade que existe uma "privatização a partir de baixo" (pequenas empresas, lojas, restaurantes) mas também há uma privatização "por cima" que se desenvolve com toda a força na União Soviética. Os funcionários, o pessoal dos ministérios, o pessoal do PCUS e de modo particular a Juventude Comunista, usando a engrenagem das empresas mistas, dos fundos cooperativos, das sociedades paraestatais, transformam seu poder privilegiado nas empresas numa coisa muito mais direta: na propriedade e/ou co-propriedade. Trata-se de um grande processo de roubo da propriedade estatal.

Por que o golpe fracassou?
Esse é um dos tantos enigmas do golpe que ainda está sem resposta. Agora se diz que poderiam ter dado o golpe no fim do inverno, quando a situação econômica das massas fosse desesperadora; que poderiam ter cercado Moscou, onde a atividade política da população é dez vezes superior à de outras regiões. Em última instância este pessoal perdeu o hábito de fazer bem as coisas. Não conseguem organizar absolutamente nada. É a cultura da "trapalhada". A única coisa que fazem bem, e por inércia, é lançar cosmonautas.

Qual o principal problema hoje?
O problema econômico. Combater a fome e o desmoronamento completo da economia. Junto a isso está a questão étnica nacional que vai projetar-se na questão econômica e da democracia, especialmente dentro da Rússia.

Existe a possibilidade de a Ucrânia, separando-se da União Soviética, tornar-se uma república independente, totalmente ligada à Europa Ocidental?
Eu acredito que seria difícil para o Ocidente digerir a Ucrânia, ele não vai querer ter esse trabalho.

O Ocidente quer arcar com uma nova anexação como a da Alemanha Oriental?
Isso mesmo, só que com uma população três vezes maior. E um atraso econômico também três vezes maior. O Ocidente não poderá suportar. Diante disso acredito que a unidade do Leste Europeu é uma necessidade. Suas mercadorias não competem com a produção ocidental. Podemos ver manifestações de loucura em algumas repúblicas que proclamam que é possível sobreviver de forma indepenO russo Kiva Maidanik, ex-integrante do PCUS, analisa a situação sócio-econômica da URSS após o golpe contra Gorbatchev e diz que a única coisa que os burocratas aprenderam a fazer, depois de décadas no poder, foi lançar cosmonautas ao espaço. Na Rússia, acho que a situação pode evoluir favoravelmente para a esquerda. Mas eu falo pode e não deve.

Que transformações são necessárias para que isso ocorra?
Uma das maiores lições de nossa história é que a esquerda é uma categoria da sociedade civil. Quando a esquerda se identifica com o Estado, está condenada. Nossos amigos sandinistas entenderam isso depois de nove anos. O PT o entende desde o começo e tomara que seja firme até o fim. A esquerda na sociedade civil soviética não existe enquanto tal, pela simples razão de que não existia a sociedade civil: o Estado foi tudo. Cada um recebia seus meios de vida do Estado: no escritório, no sindicato, na fábrica, na sociedade dos filatelistas etc. Os 18 milhões de membros do Partido Comunista da União Soviética não puderam influir minimamente na ação do aparato, que era o centro nevrálgico do Estado. A única participação deles era contribuir ao caixa do partido. Quando foi proclamada a necessidade da separação partido e Estado, o partido fracassou rotundamente. O partido-aparato permaneceu enquanto aparato e participou na preparação do golpe. A parte do partido que não participou tem demonstrado sua completa incapacidade: durante os três dias de crise não conseguiu realizar nenhuma ação. Esses dias do putsch marcaram o fim dos dois setores, tanto por sua participação como aparato, como pela não participação na resistência.

Qual a força da esquerda no interior da sociedade civil?
Na sociedade civil não existe nenhuma esquerda de certo peso. Depois do golpe as forças que conquistaram a hegemonia foram a burocracia das repúblicas na expressão política neoconservadora, os liberais populistas com matizes nacionalistas, logo os liberais democratas, os vários social-democratas, e na ultra-esquerda Gorbatchev, que abertamente continua se proclamando socialista. À esquerda dele não há outras forças. A partir daí se dá uma virada e aparecem os restos do conservadorismo: a burocracia federal que reúne desde neo-stalinistas a nacional-socialistas, a direita estatista que perdeu a Batalha de Agosto. Eles apostaram no fato de que Gorbatchev havia perdido por completo o apoio popular. As eleições presidenciais na Rússia foram como uma enorme pesquisa, que refletiu a consciência política da população: 57% votou em Ieltsin. Mas não votaram pela ideologia liberal que ele representa ou porque fosse um grande democrata. Para essas massas ele representava o antipoder. Ieltsin tem em seu currículo coisas muito importantes: foi o primeiro chefe soviético em 60 anos, que voluntariamente se demitiu de seu cargo. Vocês não conseguem imaginar até que ponto o povo tem apreciado isso. Ele foi martirizado pelo Estado em campanhas de perseguição até 90. Cada uma delas deu a Ieltsin novos partidários. Essa atitude do Estado contra qualquer figura aumenta o prestígio do proscrito.

E a juventude?
Há uma rejeição bastante ideológica ao socialismo, à solidariedade, ao terceiro-mundismo, à ação-política coletiva. No entanto, o Parlamento foi defendido pelos jovens. Para eles foi uma festa. Uma espécie de Maio de 68, mas agora eles estão fora da política e rejeitam qualquer valor da esquerda. As forças de esquerda puderam reorganizar-se... com base na terceira idade. A esquerda ortodoxa e velha. Se somos marxistas devemos reconhecer que não poderia ser de outro jeito: "o ser social determina a consciência". A Revolução de Outubro sempre foi exaltada como a que abriu caminho para o atraso econômico cada vez maior, os privilégios, a super-exploração, a hipocrisia e a mentira oficial, a invasão da Tcheco-Eslováquia, a loucura afegã, a falta completa de democracia política etc. As pessoas identificam socialismo com isso.

Onde se deu o fracasso da revolução?
Inicialmente pensávamos que os problemas seriam superados no caminho para o socialismo a partir das reformas de Kruchev. A Revolução de 17 não foi a revolução socialista, foi uma revolução popular, antiburguesa, proletária por sua força hegemônica. Ela se produziu da única maneira possível, condicionada pelas leis da história e não pelo desejo subjetivo de um punhado de aventureiros. Houve uma fase anterior à industrialização moderna onde as crises do capitalismo chegaram a bloquear seu crescimento, por fortes fatores objetivos, entre os quais a situação semidependente do mercado mundial. Naquela situação se apresentaram duas perspectivas: ou a revolução anticapitalista ou o caos, seguido do regime autoritário, do fascismo. Se nossa revolução tivesse fracassado naquele momento a Rússia seria o primeiro país fascista da história. Lenin compreendia o caráter dessa revolução, mas para ele a Revolução Russa ia existir enquanto tal, ou seja: Russa só por alguns meses. Ela deveria desencadear a revolução socialista, marxista na Europa, antes de mais nada na Alemanha. Quando a revolução não triunfou a Rússia ficou com o poder antiburguês, com o mercado e a burguesia eliminados, mas sem nenhuma das premissas para a construção do socialismo. Havia três possibilidades: uma era esperar que, mais cedo ou mais tarde, a revolução socialista chegasse à Europa. A outra era tentar marchar rumo ao socialismo a partir daquela sociedade atrasada, com base num desenvolvimento auto-sustentado. Essa foi a linha de Lenin na NEP (Nova Política Econômica). A terceira possibilidade era construir o socialismo segundo o rascunho prévio do que deveria ser o socialismo tomado do esquema marxista para a sociedade desenvolvida. Se nesse modelo não deveria existir a pequena propriedade seria necessário eliminar o campesinato, se não existiam bases para a planificação central, elas deveriam ser criadas artificialmente. Se aplicava o "socialismo de cartilha".

Aí começou a luta entre as distantes tendências que ocupou toda a década de 20?
Nesses anos tínhamos o regime revolucionário, com muitos elementos socialistas em todas as esferas, mas com graves deficiências no terreno do pluralismo e poder político, com a substituição do poder operário pelo poder do partido. O partido ainda era democrático, apesar de as tendências autoritárias já começarem a se manifestar. Nesse contexto e somando tradições nacionais, erros políticos, alguns aspectos insuficientes do esquema marxista e sobretudo a diluição da classe operária ao final da década de 20, triunfou a tendência mais estatista. Ela venceu tanto as tendências revolucionárias autoritárias trotskistas como as tendências revolucionárias democráticas bukarinistas. E Lenin foi o primeiro a perceber que a maior ameaça ao novo regime provinha não dos restos da burguesia nem do campesinato mas do Estado, que conquistou sua autonomia primeiro com relação à classe e depois transformou a revolução no seu poder privado, burocrático. O Estado se transformou num monstro que devorou tudo: a propriedade privada, o mercado, a democracia no partido, os sovietes... e nos anos 30 começa a consolidar-se um sistema muito particular: a "sociedade de Estado", que começou a tarefa de industrialização forçada. Este novo sistema tinha cada vez menos elementos de socialismo.

Então houve uma contra-revolução interna? Um Termidor?
Sim, um Termidor. Mas em nosso país a degeneração não parou, se transformou em algo muito pior: o stalinismo. As características da "sociedade de Estado" agregaram-se a repressão mais sangrenta, a eliminação física dos membros do partido, de personagens da Revolução, a criação de grandes blocos de produção escravista - os campos de 15 milhões de camponeses, os kolkhozes -, a extrema repressão contra os operários na produção, a disciplina stakanovista etc.

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E o socialismo?
O mais trágico é que o socialismo foi conservado em dois setores muito importantes. Internacionalmente esta nova "sociedade de Estado" não se inseriu na economia capitalista mundial e por isso qualquer força anticapitalista pôde buscar e freqüentemente achar nela um ponto de apoio. O socialismo conservou e manteve toda a sua força como sistema de valores da população. A consciência socialista da juventude dos anos 30 foi absoluta. Stalin tinha eliminado uma geração mas outra havia surgido com fé absoluta nos valores do socialismo, do internacionalismo. Por esses dados se mede toda a força da Revolução de Outubro. Pelo fato de que esta geração pôde nascer e crescer nesse contexto. Tudo seria diferente na nossa história se esta geração não tivesse sido eliminada nos campos de combate da 2°- Guerra Mundial: 30 milhões de mortos.

Como esses valores que ainda persistem foram abandonados?
O sistema de valores da população, o grande gasto social que era maior do que nos países capitalistas e grande parte da política internacional progressista acabaram entre 1964 e 1974, com a queda de Kruchev e a invasão da Tcheco-Eslováquia. No começo da década de 80, muitos países do Terceiro Mundo tinham um gasto social para a saúde, educação e moradia maior que a URSS. Em 1970 se deu o final da fé nos valores socialistas, que se transformaram de coletivos em individuais. Dizer que no nosso país o socialismo foi derrotado nos 80 é uma farsa, ele já não existia. Os sinos dobraram pelo socialismo há 60 anos. A chamada derrota do socialismo nos anos 80 foi uma derrota das tendências em direção ao socialismo que nasceram dentro da crise do sistema de Estado. Na URSS está acontecendo uma evolução popular antiburocrática, contra o estatismo... mas é uma revolução que abre o caminho político para o capitalismo. Os entraves para o capitalismo são antes de mais nada econômicos, sociais, mas não há força política neste momento que possa dar ao processo uma direção socialista e muito menos restabelecer as estruturas anteriores, burocráticas e estatistas.

A revolução ainda é possível?
Uma das lições de nossa experiência é que se deve pensar com a própria cabeça. Nada deve ser copiado, nem da experiência dos outros, nem da teoria. Deve-se criar os modelos na própria realidade. Nunca dar de presente a bandeira da democracia política à burguesia. Tirar todas as conclusões do fato de que todas as revoluções feitas por assalto ao poder só foram possíveis na luta contra ditaduras. Talvez com exceção do processo chileno liderado pela Unidade Popular, nos anos 70, ainda não temos modelos de revoluções baseadas na luta social em situação não ditatorial. Como serão essas revoluções? Ainda não sabemos. Em novas situações, talvez seja necessário criar novas esquerdas, o que já está acontecendo. Somos os únicos responsáveis pelo que pode acontecer, devemos usar nossa própria cabeça e não depender dos mestres do Kremlin ou de qualquer outro lugar.

Hugo Scotte é membro da Secretaria de Relações Internacionais do PT.

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