Cultura

Vivemos a realidade nacional dessa forma: importamos indústrias, vida urbana, automóveis, e persistimos no lado "botocudo" de tudo isso. Civilizar o Brasil não é perder a sua "brasilidade", mas investir no que há de humano, apesar de tudo, em ser brasileiro. Foi o que fizeram Drummond e Bandeira, ao contrário do cultuado Oswald de Andrade

Este artigo resultou de uma tentativa de entrevista. Primeiro, Maria Rita Kehl e Eugênio Bucci se reuniram com Marcelo Coelho para falar da mistificação que envolve modernidade e modernismo, temas tão caros para a esquerda no campo da política e da arte. Dada a amplitude do tema, concluiu-se que o melhor seria realizar uma entrevista por escrito. Seríamos menos confusos dessa forma. Foram formuladas algumas perguntas e o texto das respostas tornou-se um artigo autônomo. É ele que publicamos a seguir.

Para começar, eu gostaria de dizer que desconfio um pouco do uso indiscriminado do termo "modernidade". Essa palavra tornou-se pau para toda obra, e talvez fosse bom distinguir os vários sentidos com que tem sido usada. Vou fazer uma tentativa de enumeração, meio intuitiva. Sentido nº 1: é quando o Collor, o Roberto Campos falam em "modernidade". Eles pensam em economia de mercado, desburocratização, anticorporativismo (é claro que todas essas palavras, por sua vez, estão impregnadas de um sentido ideológico), desregulamentação. O oposto da "modernidade" n° 1 é a esquerda nacionalista, o petróleo é nosso etc. Aqui já ocorre um deslocamento semântico interessante. Como Collor, Roberto Campos etc. são contra tudo que cheire a "esquerdismo", qualquer movimento social como greves, reivindicações por maiores salários e redistribuição de renda é identificado a "petebo-comunismo", "janguismo", "estatismo". É tachado como "coisa da esquerda dos anos 50", portanto, "não-moderno", "arcaico" etc. Mas vamos abstrair um pouco o uso polêmico, antiesquerda a priori, da distinção entre "modernidade" e "atraso" que, em teoria, a linha Roberto Campos está formulando. Essa confiança na desregulamentação, no mercado, no abandono das funções produtivas do Estado (siderurgia, extração de petróleo) teria um lado realmente "moderno"? De algum modo, e por linhas tortas, acredito que sim. O termo "moderno" não desalma muito nos meus ouvidos quando aplicado a idéias como anticorporativismo e desregulamentação. Pelo seguinte: desmistifica (e toda desmistificação, para mim, é sinal de modernidade) a concepção de que, a partir de um centro decisório, de uma instância de poder centralizada, se possa ter controle sobre um sistema complexo como é a sociedade. Por que crescem tanto a burocracia e a regulamentação? É porque você toma uma medida governamental x, com vistas ao objetivo y mas, dada a complexidade do sistema social, produzem-se os efeitos colaterais z, que você não havia previsto, e então você é forçado a emitir a nova medida w para corrigir (ou controlar, fiscalizar) a medida x, e assim por diante. A concepção de "modernidade" dos liberais tem o mérito de apontar esse problema, e quem quer que se interesse por um projeto socialista não pode ignorar esse ponto. Um "socialismo moderno", ou qualquer coisa de esquerda "moderna" terá de pensar a "modernidade" um pouco nesse sentido n° 1 - a percepção de que você não "controla", a partir do aparelho de Estado, o processo de diferenciação, de "evolução" das sociedades. Ainda volto ao assunto.

Acontece que, na polêmica atual, a esquerda passou a usar "modernidade" num segundo sentido. Como a palavra está em moda, e traz conotações positivas, a esquerda retruca aos liberais: não, modernidade não é isso que vocês querem. Modernidade é distribuição de renda, bem-estar social, sindicalismo forte, greves, movimentos de reivindicação etc. É claro que, aí, eles tapam os ouvidos. Vejam que, neste caso, há outra distorção de sentido. Os liberais cobram (com toda a má-fé do mundo, é claro, mas com alguma razão também) que a esquerda precisa ser mais "moderna". Nós respondemos usando o termo "modernidade" não como fonte de estímulo para uma autocrítica, mas como outra palavra para dizermos as mesmas coisas: justiça social, desenvolvimento, igualdade de classes. Queremos "modernidade" para o país, e fugimos um pouco do que seria o objetivo de querer "modernidade" para o socialismo, para as estratégias de esquerda.

De minha parte, como pessoa de esquerda, não me incomodo muito com o lado "brontossauro" de algumas de minhas idéias. Não estou chamando de "brontossauras" idéias como igualdade e justiça, pelo amor de Deus. Mas é um pouco século 19, admito plenamente, a confiança que tenho, por exemplo, na Razão, na História, no Progresso Geral da Humanidade. Essas palavras, que uso com letra maiúscula, estão fora de moda, são "pouco modernas", até para a esquerda. E há certa razão em elas terem passado de moda: é que têm uma aura meio mística, uma convicção quase religiosa de que, no fim, tudo vai dar certo, que um processo de desenvolvimento impessoal - a clássica "astúcia da Razão"- termina zelando pela vitória do Bem. Estou me autocaricaturando para mostrar que, nessas idéias um pouco antiquadas, há um grau, um resto de concepções que poderiam ser alvo fácil de um "desmistificação" moderna.

E aqui eu entro no terceiro sentido de "modernidade". É a idéia de que o homem se emancipa de seus ídolos, de suas crenças irracionais, de uma ordem tradicional e inquestionada das coisas; é o movimento do Iluminismo, de um avanço contínuo no poder que a espécie humana tem de modificar a sua situação e de criar seu próprio destino.

Obscurantismo

Nesse sentido, e depois da colher de chá que eu dei para os liberais, cabe observar que eles são menos "modernos" do que a esquerda "arcaica". Por mais "iluministas", "científicos", "racionalistas" que pretendam ser (contra nós, os "místicos", "escatológicos", "judaico-cristãos"), a confiança deles no mercado se baseia num pressuposto a meu ver obscurantista. Pense em Hayek, por exemplo. Ele diz que nenhum planejamento, nenhuma forma de intervenção voluntária sobre o sistema social tem chances de êxito, porque nunca poderemos saber o que acontecerá, nunca teremos controle sobre um jogo em que interferem infinitas variáveis - a saber, as decisões, as preferências, as inclinações de todos os indivíduos. Haveria, assim, um fundo inapreensível, uma coisa que escapa a toda tentativa de conhecimento e previsão racional nas sociedades complexas... e a "mão invisível" do mercado (nada mais místico, aliás) se encarrega de pôr tudo em ordem sem que tenhamos de nos preocupar com isso.

Ligado ao sentido n° 3 de "modernidade" está o proposto por Max Weber: o de uma progressiva autonomização das diversas esferas da atividade humana. Antes dos tempos modernos, acho que ele estava pensando na Idade Média, coisas como a agricultura, a arte, a política, a vida familiar, a religião, estavam como que unificadas, corporificadas num sistema harmônico; eram todas peças de um mesmo conjunto. A arte servia à religião, por exemplo. Os tempos modernos conheceram uma dissociação dessas esferas - passaram a falar "no estético", "no religioso", "no político", "no econômico", cada qual dessas esferas seguindo uma lógica própria de desenvolvimento.

Não parece mas esta visão de Weber é terrível, amedrontadora. Essa fragmentação completa das atividades destrói não apenas a idéia de um todo social coeso mas, pelo menos para mim, implica também a idéia de uma impossibilidade de se realizar com plenitude a própria experiência humana. A especialização não é apenas profissional ou tecnológica, torna-se uma especialização, digamos, das próprias técnicas de vida: o esteta puro, refinadíssimo, perde-se na vertigem de sua "esfera" particular, indiferente a todo o resto; o engenheiro faz o mesmo, o encarregado de disparar os mísseis cuida de fazer bem o seu trabalho, e assim por diante...

Para recapitular um pouco, noto apenas que essa idéia de autonomia. o sentido de modernidade nº 4, corresponde a uma situação de difícil convivência, de uma desarmonia e divergência das linhas de progresso humano. As outras "modernidades" que enumerei sempre se encarregaram de projetar, não sei se "misticamente", uma perspectiva de reconciliação final, uma carga emotiva e reconfortante em certos ideais. Para os "modernos" liberais, há palavras com maiúsculas, do tipo Mercado, Liberdade, Progresso a ser atingido por si mesmo, por mais que os menos aptos morram de fome ou entrem em concordata no meio do caminho. Para os "modernos" nº 2, há a História, o Estado, o Progresso a ser atingido pela luta de classes, por mais que o sangue se derrame e crimes ou erros se cometam no meio do caminho. Para os "modernos" n° 3, há a Razão, o Esclarecimento da humanidade, por mais que fanáticos, supersticiosos, bárbaros pareçam existir a todo momento.

A "modernidade" no sentido n° 4 parece, assim, ser uma coisa tão assustadora, que as outras "modernidades" não ousam ir tão longe em sua "modernice": guardam um resto de crença, digamos assim, de esperança de reconciliação. Ser "absolutamente moderno", como dizia Rimbaud, não me parece ser bom negócio para ninguém - cumpre esclarecer, aliás, que a frase de Rimbaud é citada a torto e a direito fora de seu contexto. Ele não está defendendo, no texto de que a frase foi tirada, um "modernismo" estético radical. A frase é irônica, e se refere ao "moderno" dos industriais, dos burgueses, das pessoas sem qualquer perspectiva de transcendência.

Em todo caso, não à-toa a situação de "modernidade" nº 4 tem inspirado, desde o século 18, elaborações ideológicas, utopias e perspectivas otimistas destinadas a abrandar ou disfarçar um pouco o impacto essencialmente trágico - a sensação de não termos estrela que nos guie, nem chão sob nossos pés - que produziu sobre a experiência ocidental. Talvez seja - lá vou eu ficando místico de novo - no interesse da própria espécie humana, ou melhor dizendo, apesar do pleonasmo, no interesse da "humanidade" da espécie humana, que essas perspectivas de reconciliação se produzem. Mas aí precisaríamos elaborar demais o argumento, e não sei se é uma tese sustentável.

Arte pela arte

Passo, afinal, da "modernidade" para o "modernismo". Primeiramente cabe dizer que, se é verdadeira a situação descrita pelo conceito de "modernidade" n° 4, o da progressiva autonomização das esferas de atividade humana, a arte conheceu, a partir do simbolismo, ou melhor, de Rimbaud e Mallarmé (que eram muito mais que "simbolistas", o termo se aplica mais adequadamente a figuras menores da época), um movimento decidido de autonomização da esfera estética. Não que a arte tenha deixado de inspirar sentimentos. Mas, se os românticos, por exemplo, inspiravam lágrimas, compaixão e fé, além de puro contato com a beleza, no fim do século 19 os artistas se especializaram em provocar apenas sentimentos... estéticos. A procura da pureza, do puramente "estético", daquilo que há de inalienavelmente artístico e próprio na arte, foi consequência, sem dúvida, da "modernidade" n° 4. Devemos a isso coisas maravilhosas, realizações de uma "pureza" estética inimaginável. Foi um progresso no campo estético, na especialidade estética - um avanço numa área mais restrita, portanto - mas que ao mesmo tempo trouxe consigo, até hoje, um real enriquecimento da experiência humana. Tornou-se possível a percepção de sutilezas e delicadezas estéticas muito peculiares. Mas, enquanto isso, fora de um círculo muito estreito, a humanidade como um todo estava cada vez mais distante dessas conquistas feitas em seu benefício.

A tese da "arte pela arte" é, assim, indiscutivelmente moderna. Essa autonominação do estético corresponde ao que Ortega y Gasset chamou "desumanização da arte" - menos sentimentos, menos "conteúdos", mais "arte". Essa tendência prosseguiu na arte moderna, de maneira que, às vezes, me assusta um pouco. A autonomização do estético na música de Debussy, nos quadros impressionistas, com seus jogos de luz e cor, pareceu demasiado "impura", demasiado "humana" nos desenvolvimentos posteriores da arte. Se, antes, a arte se "desumanizara" para ficar mais "estética", hoje, quando a gente vê um quadro de Malevich. experiências de monocromatismo, música minimalista ou algumas instalações da Bienal é como se o próprio "estetismo" estivesse empenhado em purificar-se mais e mais, concentrando-se numa experiência quase física, das retinas ou dos ouvidos, migalhas de percepção instantânea, em vez daquela Arte com A maiúsculo que o período inicial de "desumanização da arte" ainda propunha, inflado de autoconfiança. A "autonomização do estético" perdeu seu heroísmo libertador, e hoje, em algumas manifestações, "desumanizou-se" a ponto de perder a própria perspectiva de ser "arte" - essa palavra já se tornou "demasiado humana". Muitas esculturas atuais parecem um design sem utilidade. Como escrevi em um artigo, substituiu-se a estética da "finalidade sem fim"- era este o termo de Kant - por uma "funcionalidade sem função".

Mas este é um fenômeno restrito, embora pulule por aí. É o período da "arte pela arte" em decadência, sem convicção.

Modernismo

O modernismo - chegamos a ele corresponde, a meu ver, a uma coisa bem mais complexa. O fim do século 19 dava uma idéia de "envelhecimento", de sociedades "velhas" demais, refinadas e maduras demais no tipo de arte que andavam fazendo. Ao mesmo tempo, sinais de vitalidade, de contradição, de velocidade enorme nos campos científico, técnico e social se faziam notar.

O artista do início do modernismo estava, creio eu, fascinado e farto com os refinamentos e autonomias da arte que o precedera. Ao mesmo tempo, o "mundo moderno" era agressivo, bárbaro, houve a guerra de 14... Individualmente, era um choque. O primeiro a sentir isso foi, como se sabe, Baudelaire, ainda no século 19: como se o artista estivesse perdendo de vista a humanidade, cada vez mais estranha, louca, alienada para ele... Arrisco uma interpretação. O modernismo foi como que a tentativa de uma das esferas autonomizadas com a modernidade - a esfera estética - de dar-se conta das demais esferas autônomas. Não se contentou em ser "arte pura", mas tampouco integrou-se a um sistema que, desintegrado, desarmônico, caótico, expulsava-a de qualquer "função social" reconhecida. Mimetizou a agressividade à sua volta; estetizou a máquina (futurismo); fascinou-se pelo inapreensível e pelo estranho (surrealismo); tentou organizar, dentro de cada obra, o caos que percebia fora dela (Joyce, por exemplo); jogou com o refinamento das referências estéticas acumuladas antes e com a solidão extrema de quem vê esse refinamento "perder o sentido", não apontar para qualquer progresso (Joyce, Pound, Eliot); voltou-se contra o refinamento, procurando na arte primitiva uma reconciliação entre a barbárie moderna e a harmonia austera de uma vida que não diferenciasse, por exemplo, religião e técnica (Picasso); buscou mudar a vida pela intervenção da arte (Rimbaud); mimetizou a estranheza (Kafka, Beckett); tentou integrar-se à técnica industrial (Bauhaus, Le Corbusier). Enfim, essa contradição entre a arte autônoma e um mundo "moderno", seguindo seu curso de desenvolvimentos específicos e turbulências universais, foi tão rica que inúmeras soluções e inúmeras respostas foram dadas; cada movimento estético se propunha como uma "arte nova", exatamente porque o lugar da arte na sociedade estava cada vez mais em discussão, ou melhor, porque "não havia" lugar para ela. Arte engajada, arte não-engajada, funcionalismo, eram respostas para o mesmo problema.

O problema não desapareceu. O que eu tenho de sinceramente contrário a quem se pretende de vanguarda, hoje, é o fato de acharem que, depois de tantas vanguardas não o terem resolvido, será a última intervenção radical, o radicalismo do radicalismo que irá, finalmente, exercer essa proeza.

Bobagens de vanguarda

Outra coisa que me incomoda é que, no meio dessa contradição entre a estética autônoma e sua busca de integração ou de denúncia ou de revolta contra a autonomização geral das esferas sociais, muitas vezes o próprio critério de valor estético se perdeu. Basta um sujeito pôr três ventiladores e uma máquina de escrever tocando junto com uma orquestra sinfônica para se classificar como "genial" essa ousadia. O que era conteúdo - o mal-estar diante da modernidade - tornou-se pura forma, artifício. Destrutividade com relação à linguagem, metalinguagem, auto-referência, ironia, ready-mades, Andy Warhol são, na verdade, estéticas do puro conteúdo: tematizam o "problema" a que me referi mas, inconscientemente, acreditando-se o máximo da arte, "desestetizaram" a arte. Novamente, é a estética que parece ser tomada como "humana" demais em muitas manifestações artísticas contemporâneas.

E tudo indica que a humanidade não agüentou tanta "desumanização" da arte. Preferiu a cultura de massa. Sou otimista, apesar de tudo, face a essa situação. Acho, em primeiro lugar, que todas as bobagens de vanguarda serão, como sempre foram ao longo da história, alegremente abandonadas. Depois, a cultura de massa pode refinar-se-os artistas do cinema, da música popular, dos quadrinhos, que existem hoje, serão prenúncios ainda toscos de um tipo de manifestação estética que tem caminhos bem longos até "eruditizar-se", isto é, crescer em qualidade. E os artistas "eruditos" de hoje têm muito a reestetizar-se, isto é a re-humanizar-se. Os melhores artistas do século 20, Chaplin, Fellini, Stravinsky, Picasso, Drummond, por exemplo, logo abandonaram as experiências e as provocações "modernistas" da primeira hora. Nesse ponto, assim como cada pessoa é uma pessoa, cada artista terá sempre novidades - e não "modernices" - a apresentar ao semelhante. Desde que saiba - a palavra é forte - amá-lo, e a si mesmo, de fato. Sou meio romântico nesse aspecto: é a opinião de que "estetização" e "humanização", depois de tantos becos sem saída, poderão novamente reconciliar-se, ou melhor, provar ter estado sempre juntas na corrente mais significativa, e menos estridente, da arte do século 20.

Cabe ainda uma palavra sobre o modernismo brasileiro, o de 22. Acho que, em primeiro lugar, salta aos olhos o lado "eufórico", "alegre", das experiências de Mario e de Oswald de Andrade. 22, incluídas aí figuras bem menores, insignificantes esteticamente como Luís Aranha, tinha um conteúdo que o crítico Roberto Schwarz bem definiu como sendo um "ufanismo crítico". É que a descoberta da modernidade estética se fizera, na Europa, como uma conciliação particular entre o máximo de refinamento e modernidade com o máximo de selvageria entre esses dois termos.

Vivíamos, e vivemos, a realidade nacional precisamente dessa forma: importamos modernidades, indústrias, vida urbana, automóveis, e persistimos no lado "botocudo", "tupiniquim", de tudo isso. Somos ávidos de modernidade e atávicos no atraso. O resultado estético disso, em 22, foi uma exaltação nacionalista, refletida mais ou menos no seguinte raciocínio: a Europa esgotou suas formas de arte tradicional e se volta para o selvagem, o africano, o aborígene; ora, nós somos os atrasados, os africanos, os aborígenes; não percamos a oportunidade de, com toda a nossa barbárie, mostrar o que temos de novo ao mundo... Quanto mais nos considerávamos atrasados, mais nos considerávamos avançados, capazes de ter mensagem universal: Villa-Lobos é exemplo disto.

Acho que há um lado profundamente "acrítico" no movimento de 22, um oportunismo estético, por assim dizer. Foi importante, essencial, em termos de afirmação da nacionalidade. Mas só afirmava a nacionalidade pelo fato de negá-la ironicamente; de desprezar o brasileiro - Macunaíma é o "herói sem nenhum caráter", ou de exaltá-lo acriticamente (como fizeram o sociólogo Gilberto Freyre e o compositor e maestro Villa-Lobos). Sentia-se o Brasil como se fosse um objeto etnográfico, e um pretexto para transgressões estéticas. Isso foi levado até a "genialidade" bruta do cineasta Glauber Rocha e de Chacrinha. Minha admiração pelos artistas mais honestos do modernismo (Bandeira, Drummond) está no fato de que desistiram do "oswaldianismo", da exibição tupiniquim. Voltaram-se para si mesmos; nessa intimidade com os próprios sentimentos, descobriram-se brasileiros não para efeitos de exportação (Oswald), mas para efeito de consumo interno: dialogam - eles e Vinícius, e Camargo Guarnieri, até Niemeyer com seu próprio país, e não são complacentes com a barbárie evidente da situação social, mas com o que possa, num apelo de pessoa a pessoa, num esforço extremo de comunicação de homem para homem, civilizá-la.

Civilizar o Brasil não é perder a sua "brasilidade" - nesse engano persistem os entusiastas do selvagem e do caótico - mas investir no que há de humano, apesar de tudo, em ser brasileiro. Enfim: vanguarda e selvageria andam perigosamente juntas, mimetizam a experiência brutal da vida cotidiana "moderna". O progresso, a honestidade, a brasilidade e a emoção purificada da forma são outra coisa, e nestes temas está o maior feito dos artistas que amadurecem depois de 22.

Privilegia-se, entretanto, tudo o que não amadurece, o que não constrói, o que, bobamente, contesta: daí esse culto a Oswald de Andrade que, sinceramente, é o que me deixa mais irritado no momento.

Marcelo Coelho é editorialista na Folha de S. Paulo.