Política

Todos concordam que o PT trouxe à cena brasileira uma nova forma de fazer política: preocupa-se muito com a transparência e a participação popular. Mas essa tendência geral por si só não é garantia de manutenção da nossa credibilidade. Hoje, detecta-se a presença de certos fantasmas no partido.

"Aqui e ali, as setas, axiomas que a estrada guarda, plantados à margem. Há certezas que envelhecem e fazem muita gente errar. É preciso não colocar nelas segurança maior do que podem conter.'

Marcos Antonio Noronha -"Ninguém, João" (fragmento)

Entre surpresos e felizes, estamos assistindo (e participando) de uma retomada de manifestações populares dificilmente previsível dois meses atrás. Escrevo este artigo no momento em que as emissoras de rádio estão falando de uma multidão de jovens que desce a Rua da Consolação em direção ao Vale do Anhangabaú, onde se prenuncia aquela que será a maior manifestação pró-impeachment desta temporada... A indignação se converte em energia, capaz de fazer renascer a esperança de um povo, até há pouco presa do ceticismo e da indiferença.

Esta indignação, que se insurge contra a corrupção estatuída em forma de governo, se expressa em torno de uma palavra que hoje retoma sentido quase mágico: a ética: o próprio movimento que galvaniza o sentimento nacional denomina-se "pela ética na política".

Sem descer a uma análise mais detida deste momento e desta crise - que contém o elemento surrealista de ter sido detonada pelo irmão do presidente, de ter seu momento de maior mobilização "convocado" pelo próprio presidente e de ter o tom enriquecido por uma série da Rede Globo – este artigo quer convidar a uma reflexão de contraponto: por que não aproveitar este momento nacional de fervor ético para uma rápida, mas séria, análise dos padrões de comportamento que têm orientado o nosso cotidiano político? Até porque, para sermos coerentes, vamos nos empenhar para que este momento primaveril de despertar da cidadania vá até "o rabo da palavra", como diria o velho Guimarães; e então vai faltar "vala comum"...

Todos concordamos que o PT traz à cena política brasileira, além de um projeto, uma nova forma de "fazer política". Multiplica atores, permitindo o acesso à participação política a milhares de pessoas, até então meros espectadores; propõe - e efetivamente prática - uma nova relação com a gestão pública, ressaltando a preocupação com a transparência, a lisura, a inversão de prioridades, a democratização e a participação popular, entre outros elementos.

Mas essa tendência geral por si só não é garantia de travessia segura. Se não tivermos a coragem de realizar um exame permanente de nossas rotas, e tomar medidas eficazes para as correções necessárias, é bem possível que venhamos a perder esse patrimônio de credibilidade social que se constitui num dos elementos decisivos de nossa afirmação política.Hoje, efetivamente, é possível detectar com facilidade entre nossa militância, em seus diversos níveis, uma inquietude, por vezes indignação ante a constatação desagradável de ver medrar entre nós, em nossa casa, pedaços de um fantasma que muitos de nós pensávamos vencido, abolido, ou presente apenas no terreno do inimigo.

Pequenas corrupções

Os fatos são muitos e espalhados por esse Brasil afora, sem respeitar fronteiras de espécie alguma. Ameaçam ganhar o status de cultura, numa convivência aparentemente promíscua com toda a energia renovadora e libertária que temos desenvolvido; acontecimentos e atitudes que jogam sombra sobre um projeto que é depositário de uma esperança enorme e que efetivamente vai se consolidando como alternativa real para a construção de um país diferente, justo e estimulador da vida. Estou falando da progressiva quebra da fraternidade nas relações internas; dos sintomas de pequenas corrupções; do uso de máquinas em proveito de indivíduos ou grupos; de filiações oportunistas, sem critérios, em cima da hora, para vencer convenções; da sonegação de informações aos comitês eleitorais (cada vez menos) unificados; da demarcação de currais, de feudos; do apego aos aparelhos; da criação e manutenção de uma dúbia área de pessoas sob controle político de personalidades ou grupos, com a consequente reedição de um certo lumpesinato de esquerda, muito útil em certas ocasiões; do fenômeno de "lambebotismo" (perdão pelo neologismo) em torno de lideranças; da criação de mecanismos informais e paralelos de tomada de decisão; da luta sem limites pelo poder, pela ascensão individual: do distanciamento do convívio e da dinâmica da luta social; de projetos individuais se sobrepondo ao coletivo; dos meios dúbios para se atingir fins tampouco muito claros... Lógicas estranhas presidindo e fundamentando ações, que no mínimo assustam... espécie de cansaço e capitulação ante as leis da dura "realidade"...

Quem vive o partido e os movimentos sociais sabe do que estamos falando e talvez pudesse ampliar esta "ladainha".

Felizmente, a inquietude, o incômodo, têm se transformado em indignação. Há muita coisa atravessada na garganta. Muita conversa de corredor. Tem que sair, tem que ir para a sala; sem alarmismo; mas com coragem e a tempo e hora.

E aqui não cabe a pergunta... "Quem pode atirar a primeira pedra?"

A pergunta é outra: Como enfrentar estas questões, este debate, sem o quase inevitável tom moralista de novos "Catões", dedo em riste, isentos de todo o mal; como superar o velho maniqueísmo que estabelece uma divisória entre as pessoas e grupos "éticos" e "não-éticos" e que está presente em tantos bem-intencionados manifestos que têm circulado entre nós?

É preciso estabelecer um acordo inicial. Somos viajantes deste mesmo barco e, em graus diferenciados, somos vítimas, cúmplices ou autores. Não é o que importa. O que conta é a disposição de enfrentarmos estes problemas com o diagnóstico mais sério possível. A questão que se impõe é como e por que se mantêm sintomas e vestígios de servidão mesmo quando tentamos construir a liberdade? Como e por que dentro de cada um de nós e em nossas relações subsistem elementos de uma postura que estamos determinados a vencer e superar?

Arrisco algumas observações.

O que significa inaugurar uma nova cultura ético-política num meio cuja história e tradição é a cultura da repressão-submissão, da delegação e não-participação, do promover-se individualmente a qualquer preço, da competição, do compadrio? A internalização destes valores transformou o público em sinônimo de corrupção, de salve-se quem puder, marcou nossa cultura com tal negatividade que assemelha-se a um vírus capaz de uma espantosa sobrevida. Retomando Manoel Bonfim, poderíamos afirmar que somos herdeiros diretos dessa tradição em que os trabalhadores sempre serviram aos coronéis, como mão-de-obra explorada, como soldados, capatazes ou eleitores.

E nós, efetivamente, não fomos capazes de dar um tratamento adequado a esta herança.

Aparentemente desenvolvemos a crença de que a luta social, por si só, seria capaz de operar a necessária transição e construir um novo referencial ético e cultural. Poder-se-ia mesmo dizer que atribuímos ao ato de filiação ou de engajamento social virtudes semelhantes às que certas Igrejas atribuem aos sacramentos ou aos ritos de iniciação: por ação própria e eficaz tais ritos dão conta de operar mudanças substanciais. No entanto, é preciso reconhecer que o próprio "coronel" que combatemos vive renascendo e se desenvolvendo dentro de cada um de nós; com persistência assombrosa. Se a história se repete como farsa, podemos constatar que entre nós o cinismo e a hipocrisia política são uma espécie de manifestação desta recorrência dos elementos da "velha política", numa prova de que a simples tomada de consciência não é fator suficiente para as necessárias mudanças...

Some-se a isso o desenvolvimento da idéia de uma certa pureza inerente aos setores populares e a noção de uma classe operária isenta das influências ideológicas dominantes...

Orfandade cruel

É preciso mencionar a crise de nossos projetos, de nossas utopias. Elementos motivadores, a "causa" em nome da qual gerações inteiras deram o melhor de si, numa entrega generosa, perdem hoje sua "luminosidade", como um farol em meio a brumas. Perdemos em boa parte nosso encanto de "Quixotes"; a dura e cruel orfandade nos torna menos ingênuos, mais realistas, com uma clara perda do fervor dos primeiros tempos. Somos obrigados a trabalhar as mediações, seja em nossas administrações seja nas sucessivas tentativas de construção de nossos "projetos alternativos".

Passamos a viver o processo de institucionalização de nossas instâncias e instrumentos de luta. Logo nós que nascemos contestando a ordem estabelecida. Talvez por isso mesmo, por preferir não enfrentar com clareza tais processos, agravamos ainda mais suas naturais dificuldades e tendências. Preferimos denunciar a chamada "casta burocrática" como se as pessoas se apegassem simplesmente por valoração moral aos aparelhos. Transformamos as "direções" em causa ampla e geral de todos os males, como se os que as compõem devessem ser dotados de uma tal clarividência que os mantivesse a salvo das dúvidas e problemas do comum dos viventes.

A crise não concerne apenas às utopias enquanto horizonte mais distante e guia; consiste também numa crise de paradigmas, de referenciais que norteiam nosso cotidiano, normas de conduta coletiva e de cada um. A perda das certezas, saudável enquanto nobre busca de um novo discernimento, enquanto ousadia da liberdade, tem o contraponto doloroso da insegurança no agir cotidiano, atravessado de contradições e enfrentando a hostilidade de novos "modelos" que se pretendem absolutos e definitivos.

Passamos a conviver cada vez mais com o fenômeno da capitulação, do cansaço, do abandono ou mesmo troca de front, da deserção... desafiados a buscar o equilíbrio entre uma ortodoxia que não parece sensibilizada por mudanças tão evidentes e um desbandeiramento que transforma o novo em fetiche. Manter nesse momento de cerco, de aparente recuo, a chama da esperança, a coragem da entrega generosa e cotidiana, navegando contra a implacável lógica dominante, é desafio que só se enfrenta coletivamente, construindo as bases de uma nova mística.

Crise de civilização

Na verdade, o fim do milênio chega com sua crise de civilização; com o positivismo que muda de "margem" na afirmação de valores definitivos do liberalismo; com a emergência de novos valores, centrados no resgate do indivíduo e da pessoa em oposição aos totalitarismos; com a crise das instituições clássicas criadas para a defesa e conquista de novos direitos e projetos como o partido e o sindicato; com o surgimento de novos temas, novos interesses que resgatam dimensões esquecidas da subjetividade e que demandam novas formas de expressão (como as relações de gênero, raciais, as lutas de minorias e maiorias excluídas, entre outras). Esse conjunto de fatores nos desafia a construir novos caminhos.

Na medida que não damos conta desta tarefa, não ocorre o vazio. Prevalecem, por inércia, valores e referências da ética e de projetos estabelecidos, mesmo em nosso campo, mesmo nas frentes de nossas lutas.

É urgente que trabalhemos no próprio processo de construção de nosso projeto alternativo, os elementos do que poderíamos denominar de uma "ética da solidariedade": a construção de um referencial de valores e práticas que se fundamentam na mobilização da pessoa para a construção coletiva da felicidade; e para um novo modo de viver e se relacionar. Trata-se de um núcleo de valores inalienáveis, cuja vigência não é espontânea, mas demanda uma conquista, como de resto o requer o próprio socialismo. Refiro-me ao respeito pelo ser humano, jamais passível de instrumentalização, ainda que em nome das causas nobres; ao exercício da política como serviço; à relação com o poder desinteressada, como instrumento que potencializa o exercício coletivo da elaboração e da tomada de decisões; à transparência que assegura a lisura dos atos; à lealdade no processo de luta, mesmo em relação ao adversário; ao respeito às minorias e à consciência de que o poder das maiorias está delimitado por um código de valores coletivamente reconhecidos; à necessidade de se tratar de maneira diferente o desigual; à importância de se assegurar a criatividade, a pluralidade, o questionamento impulsionador do novo; enfim, à certeza de que a interdependência sugere a solidariedade como um ato de inteligência e construção da vida.

Trata-se, na verdade, de aprofundar a subversão do estabelecido para além dos mecanismos de produção, distribuição e consumo. Muitas vezes temos a impressão de que limitamos nossa luta à afirmação dos assim chamados valores conquistados pela revolução burguesa: embora afirmemos o contrário, damos às vezes a impressão de que a democracia formal nos bastou. Ao não atravessarmos esse "Rubicão", às vezes invisível para nós, ao não trabalharmos os novos valores componentes da subjetividade, permitimos a permanência do velho paradigma - ainda que às vezes pouco evidenciado. Nos momentos de crise da utopia, tais valores se manifestam com rapidez e vigor inesperados.

Comissões de ética

Fica evidente que não poderemos dar um tratamento avulso, no varejo, aos problemas que progressivamente enfrentamos neste campo. Reduzir esta tarefa às nossas tradicionais "comissões de ética" é, no mínimo, não se dar conta da dimensão destes riscos.

É preciso escolher, conscientemente, caminhos:

Poderemos "fechar os olhos" e limitar nossas atitudes à lamúria diante de fatos consumados; é provável que, assim, dentro de determinado espaço de tempo, não tenhamos nem energia, nem condições de reação. Faremos, quem sabe, o processo mais cômodo de adaptação, mais ou menos como um corpo que é contaminado por processo infeccioso não combatido a tempo e hora. Assumiremos uma nova cultura, ou mais precisamente, nos renderemos à velha cultura política. Seremos provavelmente um partido eleitoralmente forte, representante de um importante setor social, mas devidamente absorvido pelo sistema; inofensivo no mais.

Outro caminho é nos tornarmos, interna e externamente, uma espécie de UDN dos anos 90, marcados pela reação pontual e despolitizada a certas aberrações comportamentais que ferem a instituição e sua estabilidade. Seremos praticantes de um moralismo reducionista, farisaico, que se purifica e alivia a consciência coletiva pelo sacrifício de alguns bodes expiatórios.

A outra alternativa é a mais complexa, difícil e a que exige um nível maior de consciência e vontade política: trata-se em primeiro lugar e acima de tudo, de "iniciar a conversa coletiva", operar uma tornada de consciência geral destes problemas que nos atingem, sem medo, sem mágoas; será preciso abrir este leque de conversas e debates também com os movimentos sociais, com setores próximos da sociedade civil. Trata-se de uma operação de irrigação do debate, para romper áreas de sombra, na busca da transparência, da informação. Enfim, incluir esse tema em nossa pauta diária e enfrentá-lo com profundidade e consequência.

A insistência neste primeiro e decisivo passo se funda na convicção de que a construção de uma ética da solidariedade não está dada, não é posse particular de quem quer que seja; somente a radicalização da democracia e do debate, como busca e forma de agir, pode nos dar condições de construir e viver estes novos valores. Insistimos em afirmar assim que uma ética da solidariedade só pode ser construída quando, coletivamente, ousamos exercer nossa liberdade, no discernimento de novos caminhos e processos. É a democracia que, ao nos impelir a criar condições para que todos os sujeitos do processo tenham possibilidade de formular decisões, pode estabelecer as condições de construção desta nova cultura. Não se trata de atribuir qualidades mágicas ao exercício da democracia; trata-se de acreditar que neste processo dialético de busca coletiva de construção do alternativo, quanto mais a luz do debate, da pluralidade, da participação estiver presente, melhor se poderá eliminar a sombra dos interesses menores e mesquinhos. Como contraponto, vale lembrar que a violação dos direitos de cidadania, bem como a corrupção e semelhantes desvios têm ocorrido sob a capa protetora de regimes autoritários, de mecanismos excludentes da informação e da participação.

Diálogo franco

Na verdade, não se pode continuar separando a construção de um projeto alternativo, coletivo, de nossos projetos pessoais, de vida e comportamento; no limite, não se separa ética e política. Insistindo: é preciso ativar o debate simultâneo; casado, destas duas dimensões, num processo dialético, em que perscrutarmos valores e sinais através do diálogo franco e humilde com os companheiros, com as pessoas que constituem a base social do partido e dos movimentos sociais.

Devemos definir e dar consequência a uma dimensão fundamental de nosso projeto: queremos operar uma reconstrução da sociedade, do ser humano, beneficiário e sujeito desse processo. O respeito a esse sujeito-pessoa significa criar condições para que ele desenvolva suas potencialidades, exercite sua liberdade e sua vontade de participação. Implica um processo de romper amarras históricas e toda sorte de utilização oportunista das pessoas. Implica a reconstrução da capacidade criativa de nossa gente. E isso só se faz com um investimento consciente, amplo. Nós temos essa possibilidade. Basta pensar na credibilidade da qual desfrutamos; na ramificação nacional e capilar que estabelecemos; e lembrar o potencial com que podemos contar, que é exatamente a criatividade, a combatividade e a capacidade de solidariedade de nossa gente, que nem mesmo estes séculos de dominação conseguiram abater. Lembrar ainda de nossos artistas e fazedores de cultura, tantas vezes dispostos a contribuir e participar e que sistematicamente temos marginalizado.

Os sinais dos tempos nos favorecem. E advertem. A emergência desta mobilização nacional, como novos sujeitos sociais dispostos a ocupar seu espaço na cena política, é, ao mesmo tempo, ambiente propício e desafio para que potencializemos o desenvolvimento de um novo projeto de uma nova forma de viver e fazer política.

Gilberto Carvalho é secretário Nacional de Formação Política do PT e diretor técnico do Instituto Cajamar.