Economia

Idealizador da Sudene, explicador do Brasil, o mais importante economista brasileiro teme pelo futuro de seu querido objeto de estudo. Ao adentrar os 74 anos de idade, ele só guarda uma certeza: a história tem menos sentido do que se imagina

Celso Furtado é hoje um quixote cético. O mais importante economista brasileiro, autor de ao menos uma das tentativas clássicas de explicar a esfinge chamada Brasil (Formação Econômica do Brasil, 1959), adentra os 70 anos pondo tudo em xeque: o futuro desse país-continente, o poder da razão, o sentido da história.

O mesmo tremor parece ter derrubado o muro de Berlim e as certezas de Furtado. "Hoje em dia, na altura da vida em que estou, vejo que a história tem menos sentido do que a gente pensa", confessou-me, cúmplice, ao fim de uma longa e íntima entrevista em julho último. O calor do encontro surpreendeu-me. Já conhecera Furtado em meados dos anos 80, num almoço com os editorialistas da Folha de S. Paulo. O então ministro da Cultura do governo Sarney encaixara-se perfeitamente à lenda: frio, distante mas cordial, parecia carregar a armadura própria das personalidades que já se provaram maiores do que a história. Consegui provocar um único instante de descontração. Cobrei-lhe um segundo volume memorialístico, depois do delicioso e obrigatório A fantasia organizada (Paz e Terra, 1984), que acabara de lançar. Furtado abriu-se em sorriso, tímido e franco: "Não sei, não sei. Não tenho tempo para nada."

Alguns anos e dois tomos de memórias depois (A fantasia desfeita, 1989, Os ares do mundo, 1990, ambos pela Paz e Terra), eis-me de novo frente a frente com Celso Furtado. Os anos não parecem ter-lhe pesado - exceto no campo das idéias. Combinamos uma entrevista em duas partes. Na primeira, coordenada pelo economista Gilson Schwartz, detivemo-nos sobre seu novíssimo livro de ensaios, Brasil-Construção interrompida (Paz e Terra, 1992).

Foi um diálogo entre professores. Furtado resumiu suas teses, algo monocórdico. "Está em jogo, hoje em dia; a sobrevivência do Brasil. Os elementos que integraram o Brasil, que criaram sua solidariedade interna, o dinamismo da economia brasileira, baseada no crescimento do mercado interno, desapareceram. Então vão surgir fortes interesses locais, com o Nordeste exportando mão-de-obra barata. Noutras partes é o problema do corporativismo. Regiões que têm salários mais altos, como São Paulo, não querem mais toda essa gente que chega aqui para concorrer. A gente sente que há forças à vista no horizonte, no sentido desagregativo. É evidente que poderão surgir outras forças para compensar isto. Mas não se pode ignorar este fato. Não se pode deixar que a história nos surpreenda como na Iugoslávia. Pensar o Brasil como projeto nacional é uma responsabilidade da nova geração".

Um dos explicadores do Brasil teme pelo futuro de seu mais querido objeto de estudo. O ensaio original de Furtado é abrangente e incisivo. Soa o alarme sem ser catastrofista. O autor de A fantasia desfeita sustenta verbalmente sua tese com eloqüência mas sem fogo. Seus olhos enfatizam mas não brilham. O ceticismo parece vestir-lhe como pele.

Tudo muda no segundo tempo do encontro, já reduzido a esse autor e seu personagem. O enrustido memorialista surpreende ao se tornar um agradabilíssimo conversador. A um só tempo Furtado ganha e perde anos. Sua fala ganha velocidade; sua voz, emoção; suas mãos, insuspeita dramaticidade. Num momento raro em sua trajetória, Furtado parece falar melhor de si mesmo do que do mundo que o abrigou.

Começo perguntando-lhe sobre a reviravolta da vocação profissional. O candidato a jornalista abraçou a carreira acadêmica que desprezava quando jovem. Furtado explica-se e, de cara, surpreende: "A vida acadêmica foi uma imposição da história. Só me tornei realmente professor quando fui cassado em 64. Até então nunca tinha sido professor. Podia fazer conferência em alguma universidade, mas foi aí que tomei a decisão de ir ao mundo acadêmico. Tinha compreendido a importância de pensar e a força que o pensamento representa. Quando comecei a vida, contei isso em A fantasia organizada, tinha uma paixão: queria ser jornalista. Quando cheguei ao Rio fui trabalhar em jornal, no Correio da Manhã e na Revista da Semana. Foi para esta que escrevi uma série de reportagens sobre a Europa, a Alemanha destruída, a Inglaterra, a Iugoslávia em sua época heróica. Era minha curiosidade de ver o mundo e creio que nada como o trabalho de jornalismo para fazer isso. Mas, à medida que fui penetrando tudo isso, fui compreendendo que era preciso me armar com instrumentos mais complexos para entender o mundo. Não bastava olhar para ele, testemunhar. Foi aí que me veio a idéia de estudar economia. Eu lia muito, tinha uma formação muito variada, tinha estudado direito e tinha uma leitura ampla de economia, sociologia, filosofia. Convenci-me de que a economia era o instrumento essencial do mundo moderno - e fui me doutorar em economia".

Mas o jornalismo não foi a única paixão abandonada. De Nápoles a Paris - Contos da vida expedicionária, publicado em 1946, revelava um escritor em botão. Furtado jamais retomou publicamente a experiência, mas confessa-me ter demorado muito para se libertar da vocação literária. "A verdade é que o instrumento literário da ficção é muito exigente e se você vive como eu, metido numa linguagem diferente, é muito difícil voltar à ficção. A ficção é nuance. É coisa para captar o que não se pode captar completamente pela razão. É muito exigente - não só a poesia, mas também a prosa. Então percebi que teria que fazer uma opção. Optei pelo que imaginei ser a minha faculdade maior. O homem é uma potencialidade, uma promessa. É uma virtualidade. O difícil é canalizar essa virtualidade e descobrir quem você é, qual é seu verdadeiro talento. Eu descobri isso. Fernand Braudel me confortou dizendo: ‘Celso, você é uma das pessoas que mais entendeu o que é história’. Ele tinha ficado entusiasmado com meu livro sobre o Brasil, a Formação Econômica do Brasil. A minha paixão passou a ser, de verdade, a história".

De meia-verdade. Pouco depois, o próprio Furtado reconhece que o espectro literário o acompanhou até bem mais tarde, no exílio europeu pós-64. "Conservei a ilusão de que tinha que apelar para o instrumento literário durante muito tempo, imaginando que eu ia escrever romances de maturidade. Naquele momento fui solicitado de tal maneira para lutar pela vida e tive um êxito tão grande escrevendo meus livros que disse: é uma ilusão querer me meter em outra coisa. Aí abandonei. Mas eu escrevia, fazia projetos. Tinha a impressão de que o instrumento do romance de ficção é a melhor forma de pintar o homem. Partir da sociedade para entender o homem é uma besteira. É preciso entender o homem primeiramente como destino, como criatura. Isso a sociologia ou a economia não captam. Tem que ser o romance. Aprendi muito mais sobre o homem lendo Balzac - isso já dizia Marx também -, Thomas Mann e Dostoievski. Fui e sou até hoje um grande leitor de literatura."

Robert Musil, Marcel Proust e o citado Mann formam o trio de escritores prediletos do mais literato de nossos economistas. A dívida está presente em cada volume de suas memórias. Mas o cientista social tem também suas influências a reconhecer. "A primeira é o positivismo, que entrou em mim por circunstâncias da família. Comecei a ler positivismo e a acreditar muito na ciência. Esse é o lado bom do positivismo. Outra influência foi Keynes, por causa da macroeconomia. Para mim foi fundamental perceber a importância do Estado como instrumento de transformação da sociedade. E há ainda o marxismo, que me permitiu pensar a história como uma coisa inteligível e com sentido. Antes eu pensava que a história era coisa do acaso. Pensar que existe uma explicação, que o econômico é fator condicionante de muita coisa, isso eu encontrei em Marx. Mas não foi O capital que me entusiasmou. A economia em Marx nunca me impressionou, porque era a economia de David Ricardo, algo superado, evidentemente do século 19. O que teve importância para mim foi a visão de Marx da história. Pode ter sido uma ilusão minha. Mas isso me condicionou e eu sempre me dediquei a entender a história. Fiz a Formação Econômica... para entender o Brasil".

Formação Econômica do Brasil nasceu clássico e resulta de uma série de diálogos com cientistas sociais latino-americanos. O ex-pracinha da FEB na Itália (1944-45) e ex-estudante na Paris existencialista do pós-guerra (1945-48) doutorou-se em economia na Sorbonne e logo ganhou personalidade própria, sobretudo pelo convívio com o grupo de Raul Prebisch na Cepal (Comissão Econômica para a América Latina) das Nações Unidas. Sua sede, Santiago do Chile, seria a maternidade do estruturalismo, escola que no Brasil teve Celso Furtado como seu principal expoente. "O estruturalismo procurou ampliara análise econômica", explicou anos mais tarde numa entrevista ao Jornal do Brasil (11/08/85). "A análise econômica fala do investimento, da poupança, do consumo, o que nós chamamos de variáveis macroeconômicas, que descrevem o funcionamento da economia. O estruturalismo se preocupa com os fatores que condicionam essas variáveis. Nós não nos preocupávamos com a tendência do sistema, mas com aquilo que condiciona o comportamento do sistema. O pensamento estruturalista está voltado para reformas".

"O pensamento voltado para a ação", "a fé de que, com instrumentos adequados, pode-se transformar o mundo" passam a mover Furtado. As experiências de Keynes e Prebisch no planejamento econômico empolgam o jovem economista, paraibano de nascença (1920), a tentar varrer do mapa brasileiro a miséria que conhecera no Nordeste da infância. "As causas de nosso atraso tinham raízes históricas, podendo ser removidas pela sociedade", sustentava.

O primeiro alvo seria, claro, o Nordeste. Em 1959, Furtado propõe e Juscelino Kubitschek banca a criação da Sudene (Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste). "Tratava-se de atacar simultaneamente uma série de frentes, para traçar uma política global para o Nordeste", lembrou furtado numa entrevista coordenada em 1980 por Lourenço Dantas Mota. "Tive total apoio de Juscelino, da mesma maneira que tive total apoio de Jânio e de Jango. O que constituiu um verdadeiro milagre. Conseguimos fazer valer a tese de que os problemas do Nordeste eram demasiadamente importantes para serem colocados em termos de política partidária. O nosso partido deveria ser o Nordeste. A região é tão fraca dentro do Brasil que tem de ser ela própria o seu partido, argumentava eu. Assim, quando das eleições presidenciais (de 1960), reuni todos os governadores, que eram meus amigos, e expliquei-lhes a situação. Não poderíamos correr o risco de perder as eleições, em hipótese nenhuma. Portanto, qualquer candidato eleito teria de ser o nosso candidato. Para tanto, estabeleceu-se que cada governador apoiaria naturalmente o candidato que quisesse, mas deveria exigir dele a prioridade para a nova política do Nordeste. Assim, tanto Lott quanto Jânio comprometeram se em praça pública. Isso explica que Jânio não tenha tido nenhuma dúvida em me convidar para permanecer no posto. Aliás, fui a única pessoa do governo Juscelino que, ocupando um cargo de alta responsabilidade, recebeu esse convite. A vassoura dele não tocou na Sudene".

Furtado guarda lembranças curiosas e originais do convívio com os três últimos presidentes da República pré-1964. "Juscelino, sem Brasília, teria sido um presidente a mais no Brasil, entusiasmado com a industrialização. E quem não estaria? O que dá a Juscelino uma singularidade histórica é o fato de ele ter pensado Brasília, porque então o Brasil teve de ser repensado. É indubitável que ele teve uma chance histórica como ninguém teve", me diz Furtado, enfático. "Mas ele, como estadista completa, "era demasiado preocupado com sua imagem, como Getúlio. Ele fazia um jogo muito pessoal. Eu não diria que ele marcou o Brasil, não. Ele marcou o Brasil com Brasília. Fora disso..."

E Jânio? "Você percebia nele uma força de imaginação, tinha uma originalidade... Aquilo dentro de um estadista faria dele alguém completamente fora de série, um De Gaulle. Essa originalidade de pensamento político é uma coisa muito rara e ele tinha laivos de gênio, inegavelmente. Conversando com ele você percebia isso. Mas tinha pouca formação. Tinha, particularmente, pouca insistência nas coisas. No fundo, era uma pessoa fraca. Ele tinha ainda uma percepção do valor da coisa internacional que nenhum outro estadista brasileiro teve, que eu saiba. Isso me fez ver que o que faltava a este homem era muito pouco. Se ele tivesse esse pouco, nós teríamos tido o nosso grande estadista".

A renúncia também o surpreendeu?, pergunto. "Ah! Me surpreendeu sim", exclama Furtado. "Eu tinha estado com ele na véspera e ele tinha me dito certas coisas como se ele tivesse um projeto para o futuro. Como é que eu podia imaginar? Eu não acreditei que a renúncia fosse verdade. Pensei que fosse jogo para voltar com mais força. Ele era impaciente e estava um pouco siderado com o próprio êxito. Isso lhe tirou a lucidez. Ele pensava que era capaz de tudo. Isso é um perigo muito grande num político".

Mas a grande oportunidade para o discípulo de Prebisch se apresentaria com o primeiro cargo de ministro do Planejamento no Brasil durante o governo João Goulart (1961-1964). "O Goulart, de alguma maneira, dependia de mim, porque era um governo muito fraco e eu era uma coisa sólida que representava muito no Nordeste", comenta Furtado. "As minhas relações com ele eram muito boas e eu pude ter quase mão livre no governo Goulart. Tudo o que eu pedisse ele levaria adiante. Tanto assim que quando se tratou de ganhar o plebiscito (janeiro de 1963, a favor da revogação do parlamentarismo aprovado às pressas em 1961), ele precisou de um plano nacional e o (ministro) San Thiago Dantas disse a ele: ‘Só uma pessoa faz rapidamente - é o Celso’. E eu fiquei como um doido fazendo em três meses um plano nacional. Coisas de Brasil".

Parido a toque de caixa, o Plano Trienal quase surgiu natimorto. Foi mais um exercício intelectual (Furtado) e de cálculo político (Jango) do que uma diretriz governamental seguida. A Dantas Mota, Furtado falou com mais ceticismo sobre a experiência: "O governo Jango, a rigor, jamais existiu. Foi demasiadamente contestado pelo sistema de poder no Brasil, seja pelos setores privados, seja pelos militares. Ele nunca conseguiu sair da situação de transitoriedade. No começo sua luta foi fundamentalmente para restabelecer o poder do presidente e em seguida foi absorvido pelo problema sucessório (...) Na verdade, Jango, durante quase todo o seu governo, foi uma espécie de candidato a alguma coisa e não propriamente um presidente que tivesse assumido o poder de verdade".

O golpe militar de 1964 o devolveu, com a cassação, aos ares do mundo. O exílio o levou de volta ao Chile, mostrou-lhe os pés de barro do colosso americano, resgatou-lhe a Paris da juventude, tornada agora porto da maturidade. Era hora de reflexão - sobre o impasse continental (Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina, 1966), sobre o desafio (conceitual, inclusive) do desenvolvimento (Teoria e política do desenvolvimento econômico, 1967), sobre as relações internacionais (A hegemonia dos Estados Unidos e o subdesenvolvimento da América Latina, 1973), sobre o distante Brasil sob botas (Análise do modelo brasileiro, 1972).

A enfrentar o mar revolto da batalha política cotidiana, Celso Furtado preferiu tornar-se um dos mais respeitados faroleiros da oposição. Vinculou-se ao MDB, e depois ao PMDB, lutou contra o modelo concentracionista de renda adotado pelos sucessivos generais-presidentes, transformou sua pena em aríete contra a exploração planetária travestida em dívida externa. Mais de duas décadas após o Plano Trienal, foi novamente convidado a participar da elaboração de um macroprograma nacional (o Copag) para a transição militares/Tancredo. Novo esforço (quase) inútil: Tancredo morreu e com ele o plano tornou-se letra morta. Um novo vice assumiu (Sarney) e Furtado foi mais uma vez convocado para um cargo a fim de emprestar prestígio a outro governo fraco.

Celso Furtado assumiu o Ministério da Cultura do governo Sarney apesar de se opor à própria existência da pasta. "A cultura é uma coisa feita pela sociedade. O governo tem que apoiar as pessoas que têm talento. Não tem sentido o Ministério da Cultura", afirma hoje. Sua gestão foi apagada, resumindo-se praticamente ao fomento do mecenato pela já extinta lei Sarney (O Jack Lang me disse que ela era boa demais, avançada demais mesmo para os franceses).

O desgaste político é inegável, mas o balanço pessoal parece-lhe altamente compensador. "Depois de passar dois anos e meio lá, aprendi muito, porque o Brasil tinha mudado muito. Tudo era tão diferente. Tudo era negociado muito baixo", confessa, desolado.

Finda a experiência, de volta ao retiro parisiense, o professor e memorialista Celso Furtado testemunha à distância o furacão Collor. Preocupa-lhe o hoje, ainda que menos do que o amanhã. Furtado permanece obcecado pelas grandes causas - a miséria, a desigualdade, a falência do mercado interno, a crise de inserção brasileira na economia internacional. "Nossos pensadores são muito provincianos", suspira, frisando "a necessidade de se pensar globalmente".

"A história tem menos sentido do que a gente pensa". Carrego na mente a frase de Furtado ao final de nosso encontro, percebendo-o algo paradoxalmente ainda empenhado em imprimir alguma ordem ao caos. Uma influência de juventude parece explicar tudo. "Platão estava presente em quase tudo o que li, que estudei desde cedo. Maravilhou-me a idéia da utopia e de que as utopias têm um grande papel na história dos homens. A idéia de que a história do homem em grande parte não é somente razão, não é somente o que a gente pode explicar. É uma força mais profunda que se manifesta muito bem no caso da utopia". Nada mais raro do que um homem que se desfez das fantasias em nome da utopia.

Amir Labaki é articulista da Folha de S. Paulo