A melhor coisa para o país teria sido adiar o plebiscito sobre a forma e sistema de governo, para dar ao povo a oportunidade de se informar
A melhor coisa para o país teria sido adiar o plebiscito sobre a forma e sistema de governo, para dar ao povo a oportunidade de se informar
Por que motivo está sendo proposta a mudança do sistema de governo do Brasil, substituindo o presidencialismo pelo parlamentarismo? Os que defendem essa mudança estão mesmo convencidos de que ela é fundamental para a solução dos grandes problemas brasileiros ou haverá outros motivos inspirando a proposta parlamentarista? Com o rótulo de parlamentarismo existem hoje no mundo sistemas que apresentam muitas diferenças entre si, em pontos de grande importância. Com base nessa diversidade é absolutamente necessário fazer duas perguntas prévias, antes de qualquer decisão: para melhorar um sistema de governo é uma fatalidade escolher entre presidencialismo ou parlamentarismo ou haverá outra saída? Afinal, que parlamentarismo está sendo proposto para o Brasil?
Entre os defensores do parlamentarismo existem, sem dúvida, alguns que há muito tempo estão convencidos de que esse é o melhor sistema de governo para qualquer país do mundo. Outros talvez não cheguem a tanto, mas acreditam que, para o Brasil, seria preferível o sistema parlamentar de governo, mesmo reconhecendo que a experiência parlamentarista de 1961 a 1963 foi malsucedida, o que facilitou a volta ao presidencialismo. Existem, também, os que só aderiram à proposta parlamentarista por causa da roubalheira do governo presidencial de Fernando Collor. Muitos ficaram convencidos de que a gigantesca máquina de corrupção, revelada pela Comissão Parlamentar de Inquérito que investigou a quadrilha Collor, só foi possível graças ao presidencialismo, acreditando que os governantes e empresários corruptos não terão espaço no parlamentarismo.
Mas há muitos que pregam a adoção do sistema parlamentar de governo por simples oportunismo. Evidentemente eles não admitem isso, mas a observação atenta de seus antecedentes e de sua atual posição política, bem como o conhecimento de seus argumentos revelam que é preciso analisar atentamente a proposta e não se deixar envolver ingenuamente, como se a recusa do parlamentarismo, agora, fosse característica de pessoas atrasadas ou amigas da corrupção. Entre os mais exaltados defensores do "parlamentarismo salvação do Brasil" não é difícil identificar alguns que na Constituinte, há menos de cinco anos, puseram de lado a discussão do sistema de governo para não atrapalhar a garantia de cinco anos de mandato presidencial-presidencialista a José Sarney. É pelo menos muito estranha sua rápida e apaixonada conversão.
Uma espécie, facilmente identificável, dos defensores do parlamentarismo é a daqueles que sonham com o governo federal e sabem que provavelmente nunca chegarão a ele através do voto popular. São as tribos com muitos caciques e poucos índios. Para ser primeiro-ministro não é preciso ter o apoio do povo, sendo suficiente um acordo parlamentar, e eles acreditam, com boa dose de ingenuidade, que com relativa facilidade serão reconhecidos pela maioria dos parlamentares como os mais preparados para a missão de governar o Brasil. Tudo se passaria como se os interesses pessoais, regionais, empresariais e corporativos, que até agora falaram bem mais alto do que as próprias vinculações partidárias, caíssem para segundo plano com a simples mudança do sistema de governo.
Pondo de lado a falta de autenticidade de muitos dos atuais apóstolos do parlamentarismo, é importante conhecer melhor esse sistema, saber como e por que ele foi criado e quais as suas principais características, verificando também como ele tem funcionado nos países que o adotaram. Depois, é absolutamente necessário perguntar se ainda hoje o mundo está preso à opção entre parlamentarismo e presidencialismo.
Berços históricos
Os teóricos da política podem dar alguma contribuição para que a história defina os seus caminhos mas são os fatos que determinam os rumos fundamentais. Foi assim com o presidencialismo e o parlamentarismo, que não nasceram da cabeça de qualquer teórico e só foram batizados com esses nomes quando suas características já estavam claramente estabelecidas pela prática.
O presidencialismo nasceu em 1787, quando as colônias inglesas da América, que haviam conquistado a independência e responsabilizavam a monarquia por todos os seus males, precisaram inventar um sistema de governo. Adaptando à realidade norte-americana da época a teoria da separação de poderes e tendo claro que necessitavam de um governo que fosse, ao mesmo tempo, enérgico e democrático, inventaram o presidente de República. Este seria chefe do Estado e do governo, mas com poderes limitados pela Constituição e sujeito ao controle do Legislativo: assim nasceu o presidencialismo.
A história do parlamentarismo também revela que o sistema não tinha sido imaginado por qualquer teórico antes de existir na prática. Sua criação foi produto de fatos e situações que se tinham acumulado durante alguns séculos. Num brevíssimo resumo pode-se dizer que o parlamentarismo começou a nascer em 1215, quando os nobres e bispos católicos ingleses obrigaram o rei, João Sem Terra (que era um sem terra bem diferente dos atuais), a jurar obediência à Magna Carta, documento que impunha graves limitações ao poder real. Depois disso ficou estabelecido o costume de reuniões do rei com os nobres, que compunham o que mais tarde ficou sendo o Parlamento, para definição dos rumos políticos do Estado e para que o monarca prestasse contas de seus atos.
No século seguinte os burgueses, que já tinham poder econômico mas estavam à margem do poder político, obtiveram a criação de uma segunda Casa no Parlamento, que foi chamada de Câmara dos Comuns porque seus membros não eram nobres. Desse modo o Parlamento britânico passou a ser bicameral, como é ainda hoje, tendo uma Câmara dos Lordes e outra dos Comuns, cujos membros são eleitos pelo povo. No final do século XVII, a Inglaterra foi sacudida por movimentos revolucionários, que produziram mudanças fundamentais. O rei, que era católico e muito influenciado pelo Papa, foi deposto e desde 1689 ficou em seu lugar seu genro protestante, alterando-se a linha de sucessão para escolha dos futuros reis. A par disso, a burguesia conquistou o poder e, em consequência, a Câmara dos Comuns suplantou definitivamente a Câmara dos Lordes como centro do poder político, a quem o rei deveria prestar contas.
Para que o Parlamento exercesse efetivo controle o rei comparecia às sessões da Câmara dos Comuns juntamente com seus ministros e dava as explicações que fossem requeridas, acompanhando os debates entre os parlamentares favoráveis ao governo e os da oposição. Foi assim até 1714, quando morreu a rainha Ana, que não deixou descendentes. Para suceder a rainha e receber a coroa da Inglaterra foi reconhecido como herdeiro mais próximo o príncipe Jorge, chefe do principado de Hanover, que mais tarde foi incorporado à Alemanha. Informam os historiadores que Jorge de Hanover, que passou para a história como rei Jorge I da Inglaterra, só falava latim e alemão.
O rei da Inglaterra não falava inglês. Mas o costume determinava que ele participasse das sessões do Parlamento e o rei, nos primeiros tempos de seu reinado, teve que obedecer à tradição. Como não entendia o que estava sendo discutido e não podia responder diretamente às indagações dos parlamentares o rei deixava que seus ministros falassem por ele. Para não ter que suportar o tédio das longas sessões de que participava sem nada entender e sem falar, o rei deixou de ir ao Parlamento, mandando em seu lugar os ministros, que participavam das discussões políticas e davam explicações. Um desses ministros ganhou maior destaque e passou a liderar de fato o Ministério. Por esse motivo passou a ser mencionado, por ironia, como primeiro-ministro.
Logo o Parlamento percebeu que o verdadeiro chefe do governo era o primeiro-ministro e não mais o rei. Por isso estabeleceu que só poderia ocupar aquele cargo quem tivesse o apoio da maioria dos parlamentares. Dois pontos muito importantes foram então definidos: em primeiro lugar, o rei continuava sendo o chefe do Estado, mas deixava de ser chefe do governo; em segundo lugar, só poderia assumir o cargo de primeiro-ministro e nele permanecer quem tivesse maioria no Parlamento. Como fica evidente, o chefe do governo atua como uma espécie de delegado do Parlamento e só é responsável perante este. Enquanto desenvolver uma política do agrado da maioria do Parlamento o primeiro-ministro permanece no cargo, mesmo que contrarie a vontade do povo e do chefe do Estado.
Disciplina partidária
Um dado importante que deve ser ressaltado é que na Inglaterra, tradicionalmente, há dois partidos que predominam amplamente sobre os demais. Além disso, os parlamentares obedecem rigorosamente à disciplina partidária, não havendo a mínima hipótese de um parlamentar eleger-se por um partido e passar para outro. Desse modo, quando são realizadas eleições para o Parlamento, o que ocorre num sistema distrital, já se sabe que o partido que conquistar maior número de cadeiras indicará o primeiro-ministro. Assim, por exemplo, Margareth Thatcher ficou primeira-ministra porque o Partido Conservador conseguiu mais cadeiras na Câmara dos Comuns do que o Trabalhista. Mais tarde os conservadores mantiveram essa maioria, mas nas disputas internas do partido a corrente liderada por Thatcher foi derrotada por outra, cujo líder era John Major. Em consequência, este se tornou o novo primeiro-ministro da Inglaterra.
Desse modo foi criado o parlamentarismo, que passou a ser imitado por outros países, desejosos de evitar o excesso de poder pessoal. Existem alguns pontos básicos, que podem ser considerados os mais característicos, e quase sempre também os pontos mais críticos, no sistema parlamentar de governo. Por exigências decorrentes de particularidades políticas, sociais e culturais os transplantes do parlamentarismo foram sempre exigindo adaptações e sugerindo variantes, afetando esse núcleo básico. Em razão disso, quando se pretende propor a adoção do parlamentarismo é indispensável conhecer esses pontos e as variações já experimentadas, tendo-se também consciência de que em muitos casos foram tantas e tão importantes as variações introduzidas que o sistema criado já não comporta o rótulo de parlamentarismo.