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O engenheiro agrônomo, que foi conhecido como "Zé Sojinha", é um dos principais defensores da reforma agrária no Brasil. O coordenador do Plano de Segurança Alimentar do Governo Paralelo, ex-secretário de Agricultura e ex-presidente do Incra conta sua trajetória

 

Mais de um ano nos separa do início desta entrevista, concedida por José Gomes da Silva à Teoria & Debate. Das primeiras gravações, colhidas no escritório de sua empresa no Centro Empresarial do Carmo, em Campinas, até a conclusão de seu depoimento, na Fazenda Santana do Baguaçu, em Pirassununga, construiu-se- uma expectativa pelas reminiscências deste paladino das lutas pela terra no Brasil.

Ver-se-á, pela entrevista, que o parto foi bem-sucedido e Teoria & Debate pode apresentar a seus leitores uma visão panorâmica de trinta anos de militância pela democratização da propriedade da terra no Brasil, em que a figura de José Gomes se soma a tantos intelectuais, trabalhadores(as) rurais, sindicalistas, religiosos(as) e militantes políticos que compuseram uma poesia à Terra-Mãe e um libelo contra o latifúndio.

Nada mais oportuno, em tempos de luta contra o projeto neoliberal, de revisão constitucional e de preparação para as eleições presidenciais de 1994, do que retomar, pela presença de Zé Gomes nestas páginas, o debate sobre este que será, sem dúvida, um dos principais eixos do movimento democrático-popular que fará Lula presidente do Brasil: a reforma agrária.

Uma coisa que instiga a curiosidade é a incompatibilidade teórica advinda do fato de um empresário bem-sucedido na agricultura, como o senhor, ser um dos grandes bastiões da luta pela reforma agrária.
Essa questão não chega a me preocupar, mas é uma coisa que eu levo na devida conta. As pessoas se admiram e a explicação que eu mesmo dou, fazendo um retrospecto de como isso aconteceu, é de que sou, basicamente, um profissional da terra, um engenheiro agrônomo, que viu na questão fundiária um eixo fundamental do desenvolvimento do país, e está convencido disso. Tudo que tenho “escarafunchado”, aqui e no exterior, leva a solidificar essa posição. Eu diria que isso é convicção profissional. Quanto ao fato de eu ter quatro fazendas boas, muito boas por sinal, eu não tenho culpa.

A família do senhor já era proprietária de terras?
Meu pai imigrou para o Brasil iludido com a história de que encontraria patacas de ouro assim que descesse do navio, em Santos. A família tinha uma pequena propriedade em Portugal. Ele era basicamente um operário especializado, um artista que fazia peças de vidro numa cidade vidreira de Portugal. E veio para cá com 18 anos, recém-casado com minha mãe, recolher as patacas de ouro.

E foram para onde?
Meu pai, além de ser um operário especializado, era músico na banda da fábrica. Ele tinha dois salários e um bom nível de vida. Eu cheguei a conhecer a casa de meu pai em Portugal, e diria que era de uma família de classe média baixa européia. Quando chegou ao Brasil, foi trabalhar como colono numa fazenda de café. Pior, foi trabalhar como colono de um cafezal abandonado, numa paisagem das mais tristes, mais ásperas. Um dos trabalhos mais duros é carpir café. Por sua conformação, logo que é abandonado, ele fica coberto de cipó, que é o lugar ideal para marimbondo fazer casa. A pessoa tem de carpir em volta, arrancar o cipó com a mão, depois tem de confiar e enfiar a mão ali e, geralmente, encontra a caixa de marimbondo. Meu pai contava que ele vivia com a cabeça inchada não só do arrependimento, mas também por causa dos marimbondos. Ele teve uma vida muito difícil. Primeiro como colono, depois como torneiro e, finalmente, como arrendatário.

Sua vocação para a terra vem daí?
É. Meu pai, depois de ter sido colono, empreiteiro, arrendatário, foi para a cidade, forçado pela história dos nove filhos que precisavam estudar, e se tornou um comerciante, mas sempre com aquele feitio de agricultor.

Qual era a cidade?
Ribeirão Preto. Até depois de velho, retirado, ele fez mais uma tentativa na agricultura, se tornando meeiro de algodão. E, apesar de todo esse esforço, nunca chegou a ter um pedaço de terra. Essa dificuldade me marcou muito.

O senhor cresceu em Ribeirão Preto?
Sim, mas sempre com essas lembranças, e ouvindo essas histórias. Ribeirão era uma cidade pequena e tinha um ambiente um pouco rural. Essa foi a primeira grande influência. A segunda veio de alguns colegas, algumas pessoas que estudaram agronomia e que eu via como bem-sucedidas. Quando me formei no ginásio, meu pai queria que eu fizesse concurso para o correio e eu queria ir para Piracicaba. Era uma coisa muito definida, e acabei indo estudar com muita dificuldade, à noite. Eu tinha uma ligação, qualquer coisa intrínseca com a terra, tanto que mesmo morando na cidade eu freqüentava muito, em Ribeirão Preto, um bosque que tinha um orquidário, naquela ocasião um dos melhores do Brasil. E eu procurava ir estudando coisas desse tipo. Era uma ligação vocacionada para a agricultura.

O senhor teve algum tipo de participação na política estudantil durante o tempo em que esteve na Escola Superior de Agronomia Luiz de Queirós?
Esta é uma das contradições que eu alinho na minha vida. Todas as pessoas com quem me encontro perguntam como é que vai a política e digo que nunca fui político. Nunca disputei um cargo, nem no centro acadêmico. E as pessoas me vêem como um político. Fui um tecnocrata, hoje sou um agricultor.

O seu contato com a família de sua esposa vem dessa época em Piracicaba?
Sim. Minha mulher é de Araras e tinha um irmão que estudava em Piracicaba. Numa dessas idas para visitar o irmão, eu a conheci.

Quando o senhor se casou, foi trabalhar nas terras do seu sogro?
Meu sogro não tinha propriedade que desse para alguém trabalhar. Tinha uma “fazendola” e, inclusive, ele não vivia na fazenda, que tinha uns 60, 50 alqueires. Não tinha condições de ter um agrônomo.

O que o senhor foi fazer depois de casado?
Entrei para o Instituto Agronômico, mas com a condição de trabalhar com soja. Havia um poeta, chefe de gabinete do secretário de Agricultura, que achava que a soja ia ser a grande fonte de óleo, de proteína, no Brasil, e estava procurando um cara estudioso, “caxias”, que pudesse cuidar disso. Eles me deram o emprego, nesse tempo não havia concurso.

Em que ano foi?
Foi em 1947. Antes eu trabalhei alguns meses num serviço de levantamento de safras do consulado americano. O consulado tinha uma seção de agricultura, e eu, apesar de ser agrônomo, fazia estimativa de safra.

Foi nessa época que o senhor ficou conhecido como o Zé Sojinha?
Exatamente. Ganhei uma bolsa, fui para os Estados Unidos, estudar na Universidade de Illinois, cuja região era a maior produtora de soja do mundo na ocasião. Lá nasceu meu filho Graziano. Quando voltei, havia no Brasil uma crise tremenda do óleo, porque a cultura do algodão entrou em parafuso e o amendoim não conseguia substituí-lo. Todos os estudos apontavam para a soja. Houve, então, um episódio muito engraçado. O governador [de São Paulo] era o Jânio Quadros. Alguém tinha assoprado para ele essa história da soja, mas com a intenção de montar uma indústria, para fazer um alimento à base de soja aqui no Brasil. E o Jânio, com aquele sistema dele, chamava o pessoal do interior pela Rádio Patrulha, já que não tinha telex. Um dia apareceu a Rádio Patrulha na minha casa, para me entregar um telegrama do Jânio, me convocando para encontrá-lo. Uma das propostas que eu fiz a ele foi de criação de um serviço autônomo, chamado Serviço de Expansão da Soja, e ele, numa daquelas loucuras, tacou no Diário Oficial. Esse serviço reunia pesquisa, industrialização e fomento. Quando a indústria viu aquilo, percebeu que o negócio era pra valer. A indústria procurou o governo e se ofereceu para ajudar. Foi assim que o trabalho deslanchou.

A importância da soja cresceu.
Houve dois fatos históricos, que foram mais importantes que nosso trabalho. Um foi que a proteína de alto valor, no mundo inteiro, na época, era a farinha obtida a partir de um peixe do Peru, cuja pesca se fazia numa corrente quente. Essa corrente, não sei por que, mudou e não conseguiram mais pescá-lo. Precisavam urgentemente de uma outra proteína. E a proteína que tinha as características da farinha de peixe era a soja. O preço da soja foi lá para cima e a cultura se tornou economicamente importante em São Paulo e no Brasil. O outro fato foi as duas grandes geadas, de 1953 e 1955, no Paraná. Precisaram colocar uma cultura no meio das linhas do café. Nós tínhamos sementes de soja, mandamos vagões cheios delas para o Paraná. Acabaram criando uma produção que permitiu a instalação de uma indústria.

O que aconteceu depois?
Bem, por força desse “brilhareco”, eu fui sendo convocado para postos administrativos, passei a ser diretor da antiga Divisão de Fomento Agrícola. Enquanto acontecia isso na minha carreira de funcionário, de agrônomo, no Instituto Agronômico e depois na Secretaria da Agricultura, comecei a ir ao Paraná. Simplesmente visitar, ia acompanhando meu sogro. Eu me empolguei com aquilo, com a visão da realidade, terra roxa, aquela euforia da abertura do norte do Paraná. E acabei comprando um pedaço de terra lá, muito longe, não onde meu sogro estava, que era perto de Londrina, mas em Camburão, no atual município de Quintas do Sol. Para isso também tive ajuda de um mentor, uma pessoa que talvez tenha tido a maior influência na minha vida profissional, um agrônomo chamado Irineu Souza Dias, que era também um romântico. Ele foi assessor de uma porção de ministros, de secretários, e foi ele que me obrigou a estudar a soja. Ele também era proprietário no Paraná. O sogro dele queria fazer o que ele chamava de República Agronômica, de diversos companheiros, principalmente pessoas estudiosas, da liderança dos agrônomos daqui de São Paulo. Todos junto dele, cada um tendo uma área de terra. Naquele tempo, a terra era muito barata e eu consegui comprar. Como eu tinha passado dois anos nos Estados Unidos fazendo mestrado, podia trazer coisas, bagulhos, e eu trouxe um automóvel zero quilômetro, que era o único carro importado de Campinas. Vendi o carro e comprei a área. Plantei um pouco de café com muita dificuldade e com a ajuda do Irineu. Aí houve uma valorização cambial tremenda do café. Eu revendi 40 alqueires das minhas terras e com o dinheiro pude começar a plantar e plantei 107 mil pés de café.

O senhor conseguia conciliar as duas atividades, fazendeiro e funcionário público?
Sim. Mesmo a distância, com todas as dificuldades, eu conseguia levar as duas coisas. Até que não deu mais para conciliar, porque a região de Camburão é fria e a estrada ficava um fio de gelo, era muito perigosa e eu já tinha capotado duas vezes. A terceira vez foi com a minha mulher e aí ela me deu um ultimato, que eu não podia mais continuar daquele jeito. Então meu sogro e eu trocamos as duas fazendas, a dele e a minha, por outra em Pirassununga. Era uma fazenda totalmente abandonada, cheia de erosão, que ninguém queria comprar, ao lado de uma usina que vivia em greve. A usina desvalorizava a área. Isso aconteceu em 1959.