A segunda Caravana da Cidadania percorreu 4.900 quilômetros de terra e asfalto, passando em vários municípios entre o Acre e o Mato Grosso do Sul. Foram quinze dias de viagem (de 3 a 17 de setembro - veja roteiro) em que seus integrantes conheceram o isolamento dos povos da floresta, o desperdício dos grandes projetos oficiais e as formas de resistência das comunidades locais para sobreviver diante da omissão das autoridades. Testemunharam os índios vendendo suas madeiras, arrendando suas terras e até mendigando. Viram a destruição do meio ambiente, receberam denúncias de trabalho escravo e conheceram a luta dos trabalhadores rurais sem-terra.
Assis Brasil fica na divisa do Acre com a Bolívia e o Peru. Com 2,5 mil habitantes, distante 342 quilômetros da capital, Rio Branco, e 236 quilômetros de Porto Maldonado, no Peru, é o ponto extremo da segunda Caravana da Cidadania. Quem supõe que esta região é um abandono tem toda razão. O Acre, conquistado para o Brasil pelos seringueiros liderados pelo gaúcho Plácido de Castro (que acabou assassinado pela Polícia Militar do Amazonas - estado ao qual o Acre foi anexado no início), sofre todo o tipo de carência, além do descaso do governo federal.
A cidade é um exemplo da entrega das nossas matas à sanha dos devastadores. Tanto que um dos quatro bimotores que levaram os integrantes da Caravana de Rio Branco a Assis Brasil perdeu-se, segundo alguns, devido à fumaça das queimadas. São florestas virando cinzas, cedendo lugar à pecuária, tirando a base de trabalho e interferindo diretamente no modo de vida de seringueiros, castanheiros e outros trabalhadores que convivem harmonicamente com a mata, para transformar tudo em pasto cercado por arame farpado e pouca gente cuidando do gado dos grandes proprietários, muitas vezes residentes no Sul ou Sudeste. Não se perdem apenas empregos: espécies vegetais vão desaparecendo. Grande parte poderia solucionar a cura de diversas doenças, mas se transformam em cinzas antes que suas propriedades sejam conhecidas. Para completar, sem a floresta protetora, os rios secam.
"O governo federal tem sido incompetente para tratar da saúde. Nós precisamos de médico e de hospital, mas, acima de tudo, de saneamento básico e de alimentos para a população. Precisamos eliminar a fome e a falta de saneamento. No dia que o trabalhador tiver café, almoço e janta, sua saúde melhora." Lula
O prefeito de Assis Brasil, Humberto Mesquita, é do PFL, mas como a Caravana não era propriedade do PT, era da cidadania, ele foi receber Lula no aeroporto. Lula conversou com a população, procurou conhecer seus problemas e verificou que a saúde é talvez o mais grave. A região apresenta índices alarmantes de doenças como malária, hepatite e cólera e tem uma infra-estrutura no setor de saúde muito precária. Agentes comunitários de saúde, em setembro, tinham recebido apenas os salários de março.
Os seringueiros, por sua vez, vivem no abandono, apesar da glória da conquista do Acre no final do século passado e início deste. Chamados por Getúlio Vargas de "exército da borracha", chegaram a abastecer os países aliados durante a Segunda Guerra Mundial, quando os seringais da Indochina foram tomados pelos japoneses. Hoje, são obrigados a trocar látex por comida.
Trabalhadores do Peru também fizeram suas reivindicações: uma delegação do departamento peruano de Madre de Diós encontrou-se com Lula para pedir que interceda junto ao governo federal para a construção da rodovia (BR-317) ligando o Acre ao Oceano Pacífico.
Mas este é um tema polêmico, que passa por questões essenciais como a ecologia - já que as estradas no Brasil têm servido, entre outras coisas, de caminho para a devastação, a especulação imobiliária e a tomada da terra dos pequenos agricultores por grileiros.
Para Lula, no entanto, antes de ligar o Acre ao Japão (via Oceano Pacífico), é preciso respeitar a soberania da Bolívia e do Peru. Além disso, ele acredita que as autoridades têm a obrigação de lutar para que a rodovia mereça o nome de "BR", pois o trecho entre Brasiléia e Assis Brasil (já construído) não passa de um caminho de terra batida e intransitável, principalmente no período do "inverno" amazônico, época de maior quantidade de chuvas. Para ele, é preciso também assegurar o caráter social da ligação do Brasil ao Pacífico, via Acre: "não interessa construir estradas só para os caminhos da soja. É preciso fazer reforma agrária, incentivar as reservas extrativistas e assegurar dignidade e cidadania para os pequenos produtores".
Com 63 anos, Francisca Maria da Silva, moradora do castanhal São Vicente, nunca tinha visto um carro. Seu depoimento, assim como o de Osmarino Amâncio, um dos líderes dos seringueiros que sucederam Chico Mendes, emocionou os participantes da Caravana em Brasiléia. A cidade fica às margens da BR-317, a 230 quilômetros de Rio Branco, onde foi realizado um dos maiores atos públicos dessa viagem, com cerca de 3 mil pessoas. Até uma delegação de trabalhadores da cidade vizinha de Cobija, do lado boliviano, participou do ato público.
Francisca percorre a mata a pé, pelos "varadouros" ou "varações", nome que os seringueiros dão aos caminhos, para chegar ao povoado mais próximo de sua moradia. Em muitos desses lugares não há dinheiro e prevalece o escambo. Os "preços" para os trabalhadores são extremamente altos. Na troca, suas mercadorias sempre valem menos do que as de fora.
Lista de "preços" de mercadorias nos seringais do Rio Iaco:
|
|
produtos |
preço em quilos |
1 Kg de açúcar |
3 |
1 Kg de sal | 1 |
1 lata de óleo | 4 |
1 terçado | 10 |
1 Kg de café em grão | 8 |
1 lata de querosene | 4 |
1 lata de leite em pó | 10 |
1 pacote de sabão | 2 |
1 calça | 80 |
1 camisa | 40 |
1 short | 20 |
1 bota | 40 |
1 sandália | 8 |
1 isqueiro | 4 |
1 balde | 30 |
1 bacia | 8 |
Obs.: em um dia de trabalho, o seringueiro colhe látex suficiente para produzir 6 a 8 quilos de borracha. |
Osmarino, por sua vez, contou a Lula sobre o processo de expulsão dos seringueiros brasileiros para a Bolívia, que não se restringe à violência direta. A derrubada das matas já fez com que cerca de 14 mil brasileiros imigrassem para os seringais bolivianos.