Internacional

Depois de 20 anos, a irrepetível experiência da Unidade Popular revisitada expõe importantes ensinamentos

A então chamada experiência chilena, iniciada com a vitória de Salvador Allende nas eleições presidenciais de 1970 e esmagada pelo golpe militar de 11 de setembro de 1973, notabilizou-se mundialmente pela tentativa de construção do socialismo, mantendo e aprofundando a democracia.

Poucos foram os que reconheceram que ali se ensaiou uma perspectiva nova. A via chilena ao socialismo foi vista, na época e depois - em especial na esquerda brasileira -, como uma ilusão reformista.

Passados vinte anos e especialmente após o colapso do comunismo histórico, a proposição de se caminhar para o socialismo pela via da democracia parece algo consagrado nos projetos de qualquer esquerda que queira se identificar como moderna e contemporânea.

É necessário enfatizar, contudo, que a experiência da Unidade Popular, ainda que guarde eloqüentes ensinamentos políticos, constitui-se, sob qualquer roupagem, num fato irrepetível em qualquer tempo e lugar. Por esta razão, a exumação das idéias de Allende sob fórmulas supostamente novas, como por exemplo o "reformismo revolucionário", causa hoje a sensação de um procedimento anacrônico e acrítico.

Penso ser importante, em primeiro lugar, ultrapassar a imagem de tragédia do período. Entender o Chile de Allende desta maneira é instituir uma chave de leitura onde a história é vista como aproximação a um fim inexorável, pré-determinado, impossibilitando que se estude as intenções e estratégias, cálculos e erros, bem como o grau de responsabilidade dos atores político-sociais envolvidos naquele processo, dimensões sem as quais não se explicariam os três anos de governo, suas razões, suas vicissitudes, seus descaminhos.

A queda de Allende - é inevitável começar pelo fim - resultou sobretudo de ações legais e extralegais da direita chilena (com inegável apoio externo), que visavam desagregar paulatinamente a legitimidade do presidente através de um duplo processo: atacando a legalidade das ações governamentais e neutralizando o centro político (a Democracia Cristã) através do recrudescimento da polarização político-ideológica. O objetivo foi o de se chegar ao ponto da desinstitucionalização para em seguida desfechar o golpe final.

Esta estratégia revelou-se acertada pois obedeceu uma análise de fundo: a legitimidade de Allende estava assentada na legitimidade da democracia chilena, espaço no qual a esquerda pôde se configurar como força política nacional e o próprio Allende em expressiva liderança. O que o sustentava no governo era muito mais do que a esquerda e as massas mobilizadas. Existia no Chile um arcabouço constitucional longevo - se comparado a contextos latino-americanos - e uma vida política normalizada de aproximadamente 40 anos, que haviam possibilitado uma expansão da cidadania das classes subalternas e um padrão de desenvolvimento social que poucos países da região possuíam similar.

Derrotar o governo Allende e a Unidade Popular era, portanto, uma operação de grande envergadura. Tratava-se de uma encruzilhada histórica, percebida pela natureza da crise que precedeu ao governo da UP. Quando Allende assumiu o governo, o país vivia uma grave crise nacional: crise do papel integrador e redistributivo do Estado; crise da economia, em virtude de longa e custosa transição a uma nova fase da industrialização substitutiva; crise do sistema político, em decorrência de um processo acentuado de ideologização e polarização que havia atingido sua maior fragmentação político-eleitoral no período governamental anterior (Eduardo Frei da DC).

Esse contexto de sobreposição de crises atingia diretamente o plano simbólico e prático da ação política, podendo-se falar então de uma crise dos consensos que tinham sustentado a democracia chilena e tudo o que ela significava em termos econômicos e de reformas sociais. Allende foi, neste sentido, o presidente do último governo do período estruturado à base do pactu industrialista e democratizante aberto com o governo da Frente Popular (1938), e que passaria a viver um progressivo esgotamento a partir dos anos 50. Diga-se também que em virtude de ter participado quase que ininterruptamente do sistema político desde o final da década de 30, a esquerda chilena deste período, ainda que postulasse o socialismo, era fundamentalmente desenvolvimentista e modernizadora, concertacionista e gradualista.

No entanto, esgotado o arreglo democrático que havia possibilitado a modernização do Chile, o país iria viver nos anos 60 o ardor pelos cambios redicales que fermentariam nos segmentos progressistas uma verdadeira aversão às reformas. Quando a esquerda chegou ao governo através de eleições, colocou-se diante dela o desafio de elaborar e levar à prática a construção de um novo consenso, uma vez que era necessário enfrentar realisticamente os problemas que se avolumavam para que se pudesse falar, também com realismo, em construção do socialismo.

A então chamada experiência chilena, iniciada com a vitória de Salvador Allende nas eleições presidenciais de 1970 e esmagada pelo golpe militar de 11 de setembro de 1973, notabilizou-se mundialmente pela tentativa de construção do socialismo, mantendo e aprofundando a democracia.

Poucos foram os que reconheceram que ali se ensaiou uma perspectiva nova. A via chilena ao socialismo foi vista, na época e depois - em especial na esquerda brasileira -, como uma ilusão reformista.

Passados vinte anos e especialmente após o colapso do comunismo histórico, a proposição de se caminhar para o socialismo pela via da democracia parece algo consagrado nos projetos de qualquer esquerda que queira se identificar como moderna e contemporânea.

É necessário enfatizar, contudo, que a experiência da Unidade Popular, ainda que guarde eloqüentes ensinamentos políticos, constitui-se, sob qualquer roupagem, num fato irrepetível em qualquer tempo e lugar. Por esta razão, a exumação das idéias de Allende sob fórmulas supostamente novas, como por exemplo o "reformismo revolucionário", causa hoje a sensação de um procedimento anacrônico e acrítico.

Penso ser importante, em primeiro lugar, ultrapassar a imagem de tragédia do período. Entender o Chile de Allende desta maneira é instituir uma chave de leitura onde a história é vista como aproximação a um fim inexorável, pré-determinado, impossibilitando que se estude as intenções e estratégias, cálculos e erros, bem como o grau de responsabilidade dos atores político-sociais envolvidos naquele processo, dimensões sem as quais não se explicariam os três anos de governo, suas razões, suas vicissitudes, seus descaminhos.

A queda de Allende - é inevitável começar pelo fim - resultou sobretudo de ações legais e extralegais da direita chilena (com inegável apoio externo), que visavam desagregar paulatinamente a legitimidade do presidente através de um duplo processo: atacando a legalidade das ações governamentais e neutralizando o centro político (a Democracia Cristã) através do recrudescimento da polarização político-ideológica. O objetivo foi o de se chegar ao ponto da desinstitucionalização para em seguida desfechar o golpe final.

Esta estratégia revelou-se acertada pois obedeceu uma análise de fundo: a legitimidade de Allende estava assentada na legitimidade da democracia chilena, espaço no qual a esquerda pôde se configurar como força política nacional e o próprio Allende em expressiva liderança. O que o sustentava no governo era muito mais do que a esquerda e as massas mobilizadas. Existia no Chile um arcabouço constitucional longevo - se comparado a contextos latino-americanos - e uma vida política normalizada de aproximadamente 40 anos, que haviam possibilitado uma expansão da cidadania das classes subalternas e um padrão de desenvolvimento social que poucos países da região possuíam similar.

Derrotar o governo Allende e a Unidade Popular era, portanto, uma operação de grande envergadura. Tratava-se de uma encruzilhada histórica, percebida pela natureza da crise que precedeu ao governo da UP. Quando Allende assumiu o governo, o país vivia uma grave crise nacional: crise do papel integrador e redistributivo do Estado; crise da economia, em virtude de longa e custosa transição a uma nova fase da industrialização substitutiva; crise do sistema político, em decorrência de um processo acentuado de ideologização e polarização que havia atingido sua maior fragmentação político-eleitoral no período governamental anterior (Eduardo Frei da DC).

Esse contexto de sobreposição de crises atingia diretamente o plano simbólico e prático da ação política, podendo-se falar então de uma crise dos consensos que tinham sustentado a democracia chilena e tudo o que ela significava em termos econômicos e de reformas sociais. Allende foi, neste sentido, o presidente do último governo do período estruturado à base do pactu industrialista e democratizante aberto com o governo da Frente Popular (1938), e que passaria a viver um progressivo esgotamento a partir dos anos 50. Diga-se também que em virtude de ter participado quase que ininterruptamente do sistema político desde o final da década de 30, a esquerda chilena deste período, ainda que postulasse o socialismo, era fundamentalmente desenvolvimentista e modernizadora, concertacionista e gradualista.

No entanto, esgotado o arreglo democrático que havia possibilitado a modernização do Chile, o país iria viver nos anos 60 o ardor pelos cambios redicales que fermentariam nos segmentos progressistas uma verdadeira aversão às reformas. Quando a esquerda chegou ao governo através de eleições, colocou-se diante dela o desafio de elaborar e levar à prática a construção de um novo consenso, uma vez que era necessário enfrentar realisticamente os problemas que se avolumavam para que se pudesse falar, também com realismo, em construção do socialismo.

A novidade daquela situação exigia-lhe, portanto, uma grande criação: uma novíssima concepção de transição ao socialismo, formulada e implementada a partir da particularidade chilena, que fizesse emergir uma outra noção de ruptura - pactada e reformadora.

Entretanto, o tempo não havia passa,do em vão. A esquerda chilena que foi ao governo com Allende em 1970 e muito particularmente aquela que permaneceu fora dele, notadamente o MIR (Movimento de lzquierda Revolucionário) - era não apenas utópica mas escatológica. Prisioneira de categorias e esquemas abstratos, ela se moveu naquele processo sempre através da lógica do enfrentamento de classes e esteve - contrariamente ao que pensava Allende e uma parte do governo inclinada permanentemente para a idéia de uma ruptura com o ordenamento político, buscando definir a chamada "questão do poder", para usarmos aqui a linguagem da época.

Havia na esquerda chilena uma espécie de obsessão pelo socialismo e, por essa razão, ela estruturou sua política mais em função dele do que da democracia. Isso levou a que se mantivesse e se reproduzisse no interior da Unidade Popular os impossíveis compromissos entre o que se anunciava - a transição para o socialismo pela via da democracia - e estratégias de "duplo poder" ou "pólo revolucionário".

Neste cenário, era ininteligível, para parcelas significativas da esquerda chilena, as tentativas de acordo entre o governo da UP e a DC para que se pudesse obter algum pacto com o centro político, o único caminho razoável e, também, a única possibilidade de se garantir a governabilidade, a continuidade do "trânsito institucional", bem como a maioria estatal para estabilizar uma democracia em desenvolvimento. Entre maio e junho de 1972, por motivos que hoje consideramos absolutamente banais, fracassaram as negociações entre UP e DC, num momento em que o seu êxito esteve bastante próximo.

Desta forma, ao contrário da imagem que se cristalizou sobre a experiência chilena, a realidade é que ela não se configurou num exemplo histórico de implementação da chamada via democrática para o socialismo, A identificação entre via chilena e via democrática para o socialismo não se conformou numa linha política clara e hegemônica, nem no governo, nem entre os partidos que o apoiavam, em virtude de a esquerda ter ficado a meio caminho no interior daquela alternativa, quando não contra ela.

Quando se constata, através da pesquisa histórica, que, desde 1971, 75% da direção socialista era a favor de proposições insurrecionalistas e, portanto, inteiramente contrárias ao caminho político defendido por Allende, e que os comunistas só o defendiam instrumentalmente como uma etapa da revolução de libertação nacional, prévia à ditadura do proletariado, fica claro que a esquerda concebia a via chilena apenas como um elemento de retórica, um slogan. Na realidade, portanto, a via chilena constituiu-se numa anunciação e não numa aplicação da via democrática para o socialismo, e menos ainda da idéia de que a democracia fosse a via do socialismo.

Esta é a grande lição do Chile de Allende: ao se propor um caminho democrático para o socialismo, onde quer que seja, a esquerda não pode prescindir de uma nova política que assuma a democracia na sua dupla dimensão de processo de democratização e de sistema de governo. Como é natural, a esquerda assimila melhor a primeira destas dimensões porque forja-se nela. Assumindo postos governativos decisivos para o rumo do país, precisará compreender o significado forte da segunda.

A outra grande lição, derivada da anterior, é a de que processos de transformação da sociedade não podem levá-la a graus tão elevados de polarização, deixando-a sob o governo das paixões, tendentes à exacerbação. É importante se admitir integralmente que a construção de uma nova sociedade não pode ser mais pensada como derivada apenas, e exclusivamente, de transformações econômicas, e que segurança e ordem conformam aspirações legítimas da população.

No Chile de Allende era muito comum, como uma espécie de justificativa diante das decisões nada fáceis que se tinha de tomar, a utilização da máxima "se hace camino al andar". Hoje, torna-se imperioso adicionar que, de fato, o caminho do novo só se constrói ao caminhar - desde que a cabeça governe os pés.

Alberto Aggio é professor de História da Unesp.