Mundo do Trabalho

A maioria dos produtores rurais - que a proposta do Governo Paralelo chama de "pequenos" - demanda, um programa de combate à indigência

No giro sulista da Caravana da Cidadania, Lula não cansou de enfatizar a opção preferencial pelos pequenos agricultores, mesmo quando conversava com enormes fazendeiros. Isso causou certa estranheza entre jornalistas, mas não pode ter surpreendido os militantes. Afinal, faz parte do código genético do PT ficar sempre do lado dos desvalidos e, portanto, dos pequenos.

Todavia, quando se discute a linha de atuação de um governo, é necessário perguntar se essa justa solidariedade com os menos favorecidos deve mesmo constituir a viga mestra da futura política agrícola. E a resposta deste artigo é negativa.

O documento do Governo Paralelo, intitulado "Política Agrícola: prioridade para os pequenos agricultores", tem servido de base para a elaboração do Programa de Governo do PT - 94. Ali se propõe essencialmente beneficiar diretamente os agricultores com menos de dez módulos, isto é, os que tocam estabelecimentos com área inferior a cinqüenta hectares. Somariam cerca de 4,6 milhões de produtores, segundo as estatísticas cadastrais e censitárias disponíveis.1

O problema dessa abordagem é que ela mistura um subconjunto de mais de 3 milhões de estabelecimentos que não chegam a ter potencial econômico, funcionando mais como local de moradia de uma grande massa de subtrabalhadores, com um outro subconjunto formado por unidades produtivas já viabilizadas como empresas, ou que poderiam justamente ser viabilizadas pela política agrícola do governo Lula. Ou seja, a grande maioria desse conjunto, que a proposta do Governo Paralelo chama de "pequenos", demanda políticas de combate à indigência e não programas que fazem parte da política agrícola propriamente dita: preços de garantia, crédito, seguro, extensão etc. Estes são instrumentos essenciais para o tratamento dos problemas enfrentados por 1,6 milhão de empresas agrícolas de pequena dimensão, que não devem ser confundidas com as minúsculas chácaras que constituem a maioria dos que o documento do Governo Paralelo considera "pequenos".

A tabela na página ao lado traz uma aproximação da distribuição dos grupos de tamanho da agropecuária brasileira, tendo por base os dados do último censo agropecuário. O primeiro grupo, formado pelos estabelecimentos com menos de dez hectares, ocupava, em 1995, apenas dez dos 375 milhões de hectares que constituíam a área dos estabelecimentos recenseados. Ou seja, sua área média girava em torno de três hectares. Hoje essa área média deve estar se aproximando dos dois hectares... O grupo intermediário (dez a cem lia) ocupava 70 milhões de hectares, e sua área média, superior a trinta hectares, não mudou muito. E o terceiro grupo, proprietário de quase 300 milhões de hectares, tinha - e, certamente ainda tem - mais de quinhentos hectares de área média.

Considerando o desempenho potencial da agricultura como setor econômico, deve-se pensar, portanto, que existem, em 1994, no máximo 3 milhões de unidades produtivas, das quais 80% tem pequenas dimensões. Ou seja, do ponto de vista de uma futura resposta à política agrícola, o segmento prioritário está muito mais próximo do grupo de tamanho intermediário (dez a cem ha), do que da massa de minúsculos estabelecimentos que predominam naquele imenso conjunto escolhido pelo documento do Governo Paralelo, formado pelos que não ultrapassam 50 hectares (ou dez módulos rurais).

Mas será que o critério central deve ser mesmo o tamanho das propriedades?

Tamanho não é documento

É muito comum a oposição entre pequenos e grandes como se essa fosse a principal diferença entre as formas de produção que coexistem no setor agropecuário. No entanto, quando se examina mais a fundo a questão do tamanho na agricultura e na pecuária, não é difícil perceber que, em cada situação concreta (isto é, em determinado sistema de produção, localização e momento histórico) o tamanho da unidade produtiva não é a questão mais relevante.

Sem dúvida, existe uma espécie de "patamar" mínimo de tamanho para cada um desses casos concretos, abaixo do qual torna-se praticamente impossível o sucesso econômico do empreendimento. Mas o critério do tamanho é inadequado para formular uma nova política agrícola porque não dá conta de aspectos fundamentais. Basicamente as relações sociais que costumam ser escondidas pelas formas econômicas. Em outras palavras, o que se propõe é a adoção de um critério histórico nessa caracterização das principais formas de produção agrícola. Quando se analisa o desenvolvimento da agricultura nos países capitalistas durante os últimos duzentos anos, quais são as formas de produção que podem ser consideradas essenciais? Seria possível responder a esta pergunta com as noções de pequena e grande produção?

Claro que não. O que surge com clareza quando se adota uma perspectiva histórica é a constante oposição e coexistência entre as formas "familiar" e "patronal" de produção na agropecuária. E tanto uma como outra comportam unidades de tamanho pequeno, médio ou grande. Há sistemas de produção que permitem o desenvolvimento de imensas unidades de tipo familiar e, no extremo oposto, sistemas que permitem o desenvolvimento de minúsculas unidades de tipo patronal.

O mais importante é entender o sentido geral do movimento histórico que fez com que a agricultura familiar tenha predominado de forma nítida em todos os países capitalistas desenvolvidos neste século. E esse predomínio está diretamente ligado às características da intervenção do Estado nos mercados agrícolas2.

Distribuição dos Estabelecimentos Agrícolas por Grupos de Área Total 1985 e 1994 (estimativa)
GRUPOS DE ÁREA (HA) 1985 (DADOS DO CENSO) ESTIMATIVA DO AUTOR PARA 1994
Menos de 10 ha 3.064.822 4.000.000
de 10 a 100 ha 2.160.340 2.400.000
Mais de 100 ha 576.647 600.000
Total 5.801.809 7.000.000

Potencial

O número de empresas agrícolas de tipo familiar só pode ser estimado por meio de aproximações sucessivas, uma vez que os levantamentos estatísticos não utilizam este critério em suas classificações.

A diferença básica entre a agricultura familiar e a agricultura patronal está no fato desta última ter por base a contratação de assalariados, enquanto a primeira depende essencialmente do trabalho do núcleo familiar responsável pelo estabelecimento. Deve-se admitir que não são numerosos os estabelecimentos com área superior a cem hectares que podem dispensar o recurso significativo da mão-de-obra assalariada. Talvez não seja o caso das regiões Norte e Centro-Oeste, mas certamente é o caso nas outras três. Por outro lado, não é abusivo considerar que somente em circunstâncias muito especiais a atividade agropecuária em estabelecimentos com área inferior a dez hectares permite a manutenção de uma família. Assim, o segmento familiar da agricultura brasileira corresponderia, grosso modo, à grande maioria dos estabelecimentos do estrato de área de dez a cem ha. Esse critério não é adequado para as regiões Norte e Centro-Oeste, mas isto não altera muito a estimativa global.

Em números redondos (ver tabela), deve existir, hoje, algo próximo a 500 mil empresas agrícolas patronais e cerca de 2,5 milhões de empresas agrícolas familiares. Os 4 milhões de estabelecimentos restantes podem até estar dando importantes contribuições ao funcionamento da economia e da sociedade, mas raramente o fazem enquanto empresas do setor agropecuário. É preciso ter uma política dirigida especificamente a eles, mas essa não será a política agrícola.

José Eli da Veiga é livre-docente do Departamento de Economia da FEA/USP.