Mundo do Trabalho

O problema da fome está intimamente ligado a uma política de reforma agrária, remetendo para o campo a reflexão sobre a construção da cidadania

O problema da fome tem sido associado ao da necessidade de uma reforma agrária no país. Esta relação, aparentemente óbvia, merece alguma reflexão para que se possa avançar no equacionamento de um projeto de reforma agrária adequado ao nosso momento histórico. Mas, também, para evitar o risco de simplificações como as enfrentadas por ocasião das negociações em torno do frustrado Plano Nacional de Reforma Agrária e dos debates constituintes, nos idos do governo de transição. Nessa ocasião, alguns setores do empresariado rural manifestaram-se, ruidosamente, afirmando que, devidamente subsidiados pelo Estado, poderiam responder, em produção e produtividade, a todas demandas de produtos agrícolas da nossa sociedade.

Ora, é por demais conhecida a prontidão com que a agricultura brasileira vem respondendo aos incentivos estatais, nos últimos quarenta anos. Mas, não se trata disso, agora, porque também já começa a ser conhecido que o problema da fome não está ligado, no Brasil, à inelasticidade da oferta de alimentos. Estudos recentes (F. Homem de Mello, USP) têm demonstrado, estatisticamente, que o nosso problema está na redução da capacidade de consumo de significativas parcelas da população. Redução que adquire sua dimensão mais dramática nos dados relativos ao consumo de alimentos básicos, como arroz e feijão.

Assim colocado, o problema da fome orienta o significado a ser atribuído a uma política de reforma agrária no Brasil de hoje. Porque remete a reflexão para o campo da construção da cidadania ou, em outras palavras, do resgate da dignidade dessa população de famintos que as políticas econômicas dos últimos trinta anos não têm cessado de produzir e de fazer crescer.

Nestes termos, uma política de reforma agrária teria de ser pensada como parte de uma política econômica orientada para a geração de trabalho e para a distribuição da renda (L. C. Bresser Pereira, Folha de S. Paulo, 23/12/93). Um desafio grande, sem dúvida. Mas que já ocupa lugar central nos debates políticos do Primeiro Mundo, onde o problema do desemprego é ainda pequeno, se comparado à enormidade que assume em nosso país (Walter Barelli, Folha de S. Paulo, 05/01/94).

Nos debates recentes sobre a viabilidade e a qualidade de uma política de reforma agrária na atualidade brasileira, dois obstáculos principais têm sido sistematicamente equacionados.

No plano jurídico, trata-se do conhecido argumento do direito à propriedade, tal como se encontra definido na Constituição. Isto é, como contra-face do direito à liberdade individual. É certo que uma tal política se defrontaria com esse obstáculo, já que, no contexto de uma reforma agrária, o direito à propriedade da terra se inscreve no discurso da justiça social e é entendido como equivalente do direito elementar ao trabalho e à vida. As sutilezas deste confronto têm sido seriamente analisadas em trabalhos que poderão informar futuras revisões constitucionais (S. H. Moraes, Abra, e T. Salles, Unicamp). Mas, por ora, é importante lembrar que estudos recentes têm demonstrado que é possível iniciar uma reforma agrária no Brasil sem esbarrar nos limites legais existentes (J. G. da Silva, Abra). Isto é, utilizando recursos fundiários resultantes da mera aplicação do estatuto legal vigente. E não é difícil imaginar que, no médio prazo, esses recursos poderão ser aumentados, considerando que uma política de reforma agrária bem conduzida pode trazer retorno financeiro ao Estado, sob a forma de impostos e de redução dos gastos com programas assistenciais. O que remete ao segundo obstáculo em discussão.

Trata-se, neste caso, do argumento relativo às exigências do processo de modernização da agricultura, em particular, e da economia brasileira, como um todo. Até que ponto é possível, no contexto da atual crise econômica, investir num programa de reforma agrária orientado para a recriação dos sujeitos da luta pela terra em agentes econômicos ou, em outras palavras, em pequenos produtores rurais integrantes de uma política econômica nacional modernizante?

O debate é acirrado. Os que não acreditam nessa possibilidade tendem a propor uma reforma agrária assistencial, encarregada de assegurar, por ora, a sobrevivência de seus beneficiários.

De outro lado, ganham expressão as análises que mostram a importância de políticas de distribuição de renda, incluindo a reforma agrária, como meio de superação da atual crise econômica. Ou, como pré-condição do ingresso da economia brasileira no patamar tecnológico do Primeiro Mundo (J. E. Veiga, USP). E somam-se a essas análises, os estudos que demonstram que a pequena produção agrícola não é incompatível com o desenvolvimento tecnológico ou econômico (M. N. Wanderley, Unicamp).

Este impasse tem dificultado os avanços do projeto político da reforma agrária dentro do próprio Partido dos Trabalhadores. E já deu margem a interpretações enganosas nos espaços da Folha de S. Paulo (J. B. Natali, "PT pode tirar reforma agrária do programa", dezembro de 1993). Não se trata, evidentemente, de estar contra ou a favor de uma reforma agrária. E nem se trata, é sempre bom lembrar, de um impasse definido nos estreitos limites de delírios revolucionários anacrônicos. É da reforma agrária necessária e adequada ao atual momento histórico brasileiro que se está tratando. Um tema que extrapola, ao que tudo indica, interesses partidários. E que tem estado presente na pauta dos mais conservadores governos e de campanhas políticas de diferentes candidatos a eleições majoritárias dos últimos tempos.

É certo, por outro lado, que esse impasse assume proporções bastante significativas, se o objetivo é a democratização de nossa sociedade. Porque, no limite, ele conduz à bastante discutida questão da reforma do Estado e da necessária mudança da relação Estado e sociedade. Uma reforma agrária assistencialista e desarticulada de uma política econômica orientada para mudanças estruturais substantivas apenas reforçaria o Estado autoritário e distributivista que se pretende recriar em Estado democrático. Com todos os complicadores que a CPI do Orçamento tem podido revelar, e com todos os obstáculos que as políticas assistenciais costumam impor ao processo de construção da cidadania. Porque, recriados em beneficiários dessas políticas, os sujeitos da luta pela terra teriam que renunciar à demanda do direito a ter direitos, da qual são portadores.

O desafio, portanto, parece ser o de se pensar uma política de reforma agrária como parte integrante de uma política agrícola capaz de combinar as exigências econômicas dos setores mais desenvolvidos da agricultura com o fortalecimento econômico da pequena produção agrícola, já existente ou a ser criada no contexto da própria reforma agrária. Isso pressupõe, evidentemente, a integração dessa política agrícola numa política econômica modernizante não só da economia, mas da sociedade brasileira como um todo. Desafio grande, sem dúvida e outra vez. Mas, não se pode pensar em mudar esse nosso país, acomodando os projetos progressistas à pequenez dos interesses personalistas de setores sociais mais conservadores. Setores tendencialmente minoritários, que parecem indicar os rumos da atual crise política.

Maria da Conceição D'Incao é livre-docente em Sociologia na Unicamp.