Cultura

Chamada

Prefiro falar sobre um livro que "desfez" minha cabeça. Na época em que ingressei na política, Partido Comunista e esquerda eram expressões quase sinônimas. E cabeças leninistas são a prova do tempo. Não são livros quaisquer que as "desfazem".

A rigor, livros nem as atingem, só o martelar delas no granito da prática e do erro... Mas, já que devo falar de livro, que seja especial. Daqueles que ferem sem cura o espírito.

Livros "bons" não existem em abstrato. "Bons" são os livros que estamos preparados para ler, e precisamos ler. Talvez por isso Memórias de um Revolucionário, de Victor Serge, tenha me impactado tanto. Hoje, quem sabe seria diferente.

Há ali o testemunho de um personagem épico. Discorre sobre a história, de dentro dela. Desde os primeiros anos do século, filho de exilados anarquistas russos, até o segundo pós-guerra. Revoluções, levantes operários, repressões, guerras são a matéria da sua reflexão. Viva, crítica, palpitante.

Mas há, acima de tudo, observações notáveis sobre a Revolução Russa. A obra monumental de Trotski a respeito do tema é profícua na análise sociológica e do jogo de poder. A marca de Serge é a crítica humanística radical.

É texto do bom jornalista capaz de escrever belos romances. Os atores sociais, convertidos em personagens, são observados pelo olhar penetrante de quem perscruta a alma, não interesses nem cálculos estratégicos. Resulta um livro que aniquila qualquer razão otimista, quer repouse sobre a crença numa vanguarda, quer sobre apostas no "instinto revolucionário das massas".

Não que seja uma obra sem esperanças. Muito ao contrário, ela corrói, isto sim, a racionalidade mítica, ilusória, falsa e... totalitária. Mas ergue um motivo grandioso para se lutar. Um ideal de emancipação humana verdadeiro, desinteressado, profundo, que a percorre da primeira à última página. É criação de humanista militante, não de um político.

Duas passagens ilustram esse espírito, capaz de conferir uma tremenda força moral a cada frase, cada palavra. A primeira refere-se ao momento em que Serge, anarquista convicto, decide voltar para a Rússia, depois de 1917: "Eu tomara meu partido, não seria neutro e nem contra os bolcheviques, ficaria com eles, mas livremente, sem abdicar do pensamento nem do senso crítico. As carreiras governamentais eram de fácil acesso para mim, decidi evitá-las e até evitar, na medida do possível, as funções que implicavam o exercício da autoridade: outros aí se deleitavam de tal forma que julguei permitida essa minha atitude, evidentemente errônea."

O exercício do "senso crítico" iria custar a Victor Serge vários anos de Sibéria, naturalmente. Mas nem assim seu antibolchevismo será associado ao mais leve sinal de espírito renegado. Em 1941, a caminho do exílio mexicano, a Rússia sob ataque nazista, ele anotou: "Entre esses homens - os perseguidos da oposição - os que sobrevivem, se hoje pudessem lutar pelo povo russo, pelas fábricas que o povo russo construiu com seu suor e seu sangue, pelas velhas bandeiras vermelhas dos guerrilheiros do Ural e dos proletários de Petrogrado... esses homens, acorrentados há mais de dez anos, lutariam com todo consentimento. E, saído das mesmas prisões, este que escreve essas linhas lutaria como eles. Pois a salvação do povo russo e de sua obra revolucionária é hoje essencial para a salvação do mundo."

Serge morreu em 1947, como nascera, exilado. Pobre e no ostracismo. Poderíamos concluir, afoitamente: "foi um derrotado...". Mas depois de tudo o que vimos desde então, na URSS e no Ocidente, esta afirmação soaria no mínimo temerária. Ele está entre aqueles que anteciparam uma idéia fundamental e atualíssima - a idéia de que a emancipação humana só se torna possível como realização da democracia.

Isto, dito da forma como foi dito, atuou como poderoso dissolvente sobre o meu leninismo claudicante ...

Aproveito para sugerir à Companhia das Letras a reedição deste livro imprescindível. Não é produto de ocasião. Para uma obra dessas haverá sempre novas gerações de leitores.

Ozeas Duarte é membro Diretório Nacional do PT.