Cultura

Na Copa do Mundo, 1994, o Brasil apresenta-se com um time capaz de vencer. Num momento em que o futebol vive momento de definição

Em seu belo livro Homo Ludens, Johan Huizinga convida-nos a pensar o jogo como totalidade, como realidade múltipla, plena de significados, como fato cultural dotado de especificidade irredutível a simplismos. O jogo é tanto realidade biológica, quanto fenômeno estético, é forma de linguagem e tem dimensão ética.

O jogo é instrumento de ordenação e de acordo com Huizinga, "introduz na confusão da vida e na imperfeição do mundo uma perfeição temporária e limitada, exige uma ordem suprema e absoluta: a menor desobediência a esta 'estraga o jogo', privando-o de seu caráter próprio e de todo e qualquer valor. É talvez devido a esta afinidade profunda entre a ordem e o jogo que este, como assinalamos de passagem, parece estar em tão larga medida ligado ao domínio do estético. Há nele uma tendência para ser belo".

Se o jogo é fenômeno estético é, então, fenômeno lingüístico. As regras do jogo são gramáticas especiais que universalizadas e livremente aceitas pelos que jogam reproduzem, no tempo e no espaço do jogo, questões, sentimentos, valores fundamentais da humanidade, da cultura. O jogo é, neste sentido, a reposição simulada no cotidianos de uma certa vocação épica, que a humanidade insiste em manter apesar de todo o estilhaçamento da vida contemporânea. O jogo simula, temporária e precariamente, o desejo de um bom combate, o desejo de provar mérito e honra, de receber reconhecimento.

Mas há outras dimensões do lúdico: há a alegria, o divertimento, a evasão, a festa, o êxtase, a emoção concentrada, o arrebatamento, a frivolidade, a violência, a manipulação. Esta complexa rede de determinações que recobre o fenômeno lúdico é particularmente saliente no caso das competições esportivas, e mais decisiva ainda no caso do futebol.

O futebol e seus mistérios

De onde virá o encanto deste esporte que há mais de cem anos mobiliza multidões? Qual o segredo deste jogo capaz de produzir todas as demasias do coração? Afinal, a explicação do maravilhoso do futebol virá de sua multiplicidade. Muitas vezes ele é drama, epopéia, balé, tragédia, e também é vaudeville, farsa, espetáculo circense. Ao longo do tempo, forjou seus heróis, seus mitos, seus tipos característicos como na Commedia de l'Arte - no cinema e na literatura - o falso ingênuo, o espertalhão, o galã, o mau caráter, o colérico, o trapalhão, o herói, o santo, o louco - Marcos Carneiro de Mendonça, nosso goleiro elegante; Friedenreich, El Tigre; as gerações de 30, 34 e 38, Fortes Carvalho Leite, Araken, Fausto, Paterko, Batatais, Perácio, Hércules, Tim; Domingos da Guia, o Divino, Leônidas, a Magia, Heleno e a fúria dos deuses; Zizinho e a perfeição; Garrincha/Chaplin; Pelé/Buster Keaton...

O encontro do futebol talvez decorra, em parte, do fato de que há sempre, em cada jogo uma moral necessária. Os que assistem à derrota de seus times sempre podem ver na derrota a mão da injustiça, do destino, a reprodução da tragédia de Heitor, morto e ultrajado nos portões de Tróia por Aquiles, e que, no entanto, era quem tinha razão, era quem estava certo.

Cada grande partida, cada confronto entre rivais importantes é, como que, a reposição de um texto clássico, a representação de uma confrontação básica em que cada time, cada bandeira espera escolher o final de glória e júbilo.

É esta capacidade de expressar sentimentos, de reproduzir conflitos básicos, de representar a diversidade da cultura e da subjetividade, que faz do futebol uma espécie de ópera popular, espetáculo total, com um coro de multidões.

O futebol e seus significados

Se o futebol é linguagem, cada um dos seus símbolos, cada uma de suas manifestações tem significado, é significante. Mário Filho em seu formidável livro, O Negro no Futebol Brasileiro, e Anatol Resenfeld, no artigo "O futebol no Brasil", publicado na Revista Argumento, n° 4, contribuíram decisivamente para uma compreensão do Brasil a partir do entendimento do futebol como fenômeno cultural central de nossa trajetória histórica desde a República.

Implantado no Brasil em 1894, o futebol foi espaço privilegiado da vivência de algumas de nossas contradições sociais básicas - a interdição de direitos sociais básicos para a maioria da população, a marginalização da população negra, a concentração de privilégios e a elitização dos frutos da vida urbana moderna, os conflitos de classe. A disputa entre o aristocrático Clube Atlético Paulistano e o Corinthians Esporte Clube, em São Paulo, e a aceitação de negros e operários em seus times apenas por parte do Vasco e do Bangu, no Rio de Janeiro, expressam o conteúdo de uma questão social que, na verdade, se mantém até hoje e que poderia ser sintetizada como: a presença permanente no Brasil de mecanismos de exclusão e marginalização social.

O preconceito racial, produto da manutenção da exclusão social, da interdição de direitos sociais foi permanente no futebol brasileiro até a Copa de 58. A tese de Mário Filho, no livro citado, é que só quando o Brasil assumiu a sua negritude conseguiu ganhar uma Copa do Mundo.

Mário Filho mostra em seu livro como buscou-se culpar os negros e os mulatos pelos fracassos brasileiros nas copas: o pênalti de Domingos em 1938, as falhas de Barbosa e Bigode em 1950. A Copa de 58 será, neste sentido, uma espécie de anistia dos negros e mulatos a Copa de Garrincha, de Didi, de Pelé.

As Copas do Mundo

As Copas do Mundo são momentos fundamentais da história do futebol. Desde 1930, cada copa foi uma revelação: surpresa, encantamento, revoluções táticas, craques, jogadores inesquecíveis - a bicicleta de Leônidas em 38, o Brasil de 50, a Hungria de 54, Garrincha e Pelé em 58, a Holanda em 74, Maradona em 86...

Cada copa é marcada por aspectos particulares, por grandes momentos, vencedores, perdedores, heróis, vilões. Estas determinações que marcaram cada Copa, que na verdade marcam cada competição futebolística podem ser sintetizadas assim:

1. organização esportiva e treinamento;
2. sistemas táticos, organização do jogo e experiência;
3. emulação, apoio psicológico e torcida;
4. pressão política, intimidações e ar bitragens;
5. o craque;
6. o imponderável.

Deste modo teríamos as seguintes estruturas determinantes para cada uma das copas:

ANO CAMPEÃO DETERMINANTES
1930 Uruguai 1, 2 e 3
1934 Itália 1,2,3 e 4
1938 Itália 1, 2, 3, e 4
1950 Uruguai 2 e 6
1954 Alemanha 2, 3 e 6
1958 Brasil 1, 2 e 5
1962 Brasil 1, 2 e 5
1966 Inglaterra 1, 2, 3 e 4
1970 Brasil 1, 2 e 5
1974 Alemanha 1, 2, 3, 5 e 6
1978 Argentina 1, 2, 3 e 4
1982 Itália 2 e 6
1986 Argentina 2 e 5
1990 Alemanha 1 e 2

Esta listagem dá conta da existência de uma complexa trama de determinantes. A Copa de 1930 foi vencida pelo Uruguai com inteira justiça e previsibilidade, ficando a Argentina com o vice-campeonato. Tanto a Argentina quanto o Uruguai foram os primeiros países a profissionalizar o futebol, tendo o Uruguai sido campeão olímpico em 1924 e 1928. As Copas de 1934 e 1938 foram marcadas pela interferência política. Mussolini, assim como Hitler em 1936 na Olimpíada, fez das copas a afirmação do poder fascista, o que não significa desmerecer o bom time italiano naquelas copas. Também marcada pela política foi a Copa de 78, vencida pela Argentina.

A Copa de 1950 foi marcada pelo imponderável, assim como as de 54, 74 e 82. Em todas elas os melhores times não venceram, porque falou mais alto o imponderável, a surpresa que também é aspecto do jogo. Em 1966 houve vitória polêmica da Inglaterra ajudada por erro do juiz. Em 1986 tivemos uma Copa decidida pelo craque Maradona como a de 1962 foi vencida por Garrincha. Na Copa de 90 a vitória foi da mediocridade, enquanto na de 1970 a vitória foi do brilhantismo.

A Copa de 1994

A grande questão aqui é: terá o futebol brasileiro, de fato, superado seus problemas político-administrativos de forma a credenciá-lo à vitória na Copa? A resposta aqui só pode ser não. Permanece o calendário insano, permanece a evasão de jogadores para o exterior, permanece o critério da politicagem na gestão da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), permanece a promiscuidade entre CBF/ clubes/ empresários/ empresas/ patrocinadores/ mídia.

Sempre haverá quem veja no futebol apenas o risco, a evasão, a alienação, e estarão certos. O futebol é isto, mas não apenas isto. Se há um lado do futebol que é pura manipulação - hoje até mais que no passado - pela expansão da mercantilização, pela penetração do grande capital em todos os aspectos do processo, há outra dimensão a ser considerada: o futebol como expressão cultural, como linguagem, como fenômeno coletivo, produtor de identidade, como realidade fundante da sociabilidade e sensibilidade - arte, espetáculo, esporte, instrumento de socialização e aprendizado.

Há, é claro, no futebol, o fenômeno da catarse, a comoção provocada pela superexposição da mídia, a manipulação dos sentidos, a repetição e o engodo. Há também a emoção genuína, a gratuita paixão por uma bandeira, uma cor, uma história.

Há, nas Copas do Mundo, os patriotismos de encomenda e outros patriotismos autênticos e igualmente problemáticos. A seleção não é a pátria de chuteiras. A seleção é um time de futebol, que tanto mais será admirado e querido quanto mais expressar as características culturais dos que apreciam o futebol.

Afinal, o futebol é uma bobagem como as outras, bobagem capaz de produzir a alegria generosa partilhada com multidões, a tristeza igualmente partilhada e que assim parece aproximar, tornar solidários indivíduos apenas ligados pela cor de suas escolhas.

Nesta Copa do Mundo, 1994, o Brasil apresenta-se com um time capaz de vencer. Num momento em que o futebol brasileiro vive momento de definição. O Palmeiras/Parmalat, o São Paulo/TAM parecem ser os modelos exitosos do que o futebol deve ser: a mercan tilização de tudo - da camisa, das cores, dos símbolos, da história, do nome...

Os que gostam de futebol e não se rendem ao capital estão condenados a, também neste campo, exercitar a crítica e a paixão na defesa do esporte como expressão de livre criatividade do povo, para além de toda a manipulação e controle.

João Antonio de Paula é presidente do Diretório Municipal do PT de Belo Horizonte e professor de História Econômica e Economia Política na UFMG.