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Oba-oba. É o que resume o estado de ânimo generalizado em relação à ascensão de Nelson Mandela ao governo da África do Sul

Oba-oba. É o que resume o estado de ânimo generalizado em relação à ascensão de Nelson Mandela ao governo da África do Sul. Na mídia, uma verdadeira unanimidade. O que numa sociedade atravessada por interesses tão contraditórios, como a nossa, já mereceria uma interrogação.

De saída, é claro que o fim do regime social criado pelo apartheid seria um enorme progresso para a humanidade. Encerraria uma das mais brutais formas de exploração do homem pelo homem, que utiliza o terror sistemático, a discriminação racial por um regime estatal de exclusão.

A África do Sul, ou Azânia como preferem os militantes que vêm do Movimento da Consciência Negra, foi um dos primeiros países a lutar contra o colonialismo e um dos últimos a conquistar a independência. É que, como explica a AzapoA Organização do Povo de Azânia (Azapo) é um partido oriundo do Movimento da Consciência Negra, que reivindica mais de 100 mil filiados e uma implantação nacional. Em dezembro último, integrou o Acordo Internacional dos Trabalhadores (AcIT), fundado na Conferência Mundial Aberta de Barcelona (1991)., trata-se de um país riquíssimo, que produz de 50% a 75% de todo o ouro do mundo. E que os ingleses, quando se viram obrigados a outorgar a independência, entregaram aos descendentes dos Boers (colonos brancos). Estes constituíram o que a Azapo qualificou como "um sistema híbrido de racismo e capitalismo que procura manter o povo de Azânia numa escravidão perpétua", ou seja, "numa relação de simbiose entre o capitalismo e o racismo".

Não foi à toa que todo o mundo saudou a crise aberta na virada da década, em particular quando o povo negro conseguiu libertar seus principais dirigentes presos.

Mas foi também esse o momento em que os EUA resolveram tomar o assunto diretamente em suas mãos. No quadro da pretendida "nova ordem mundial", foi uma iniciativa americana que levou ao processo de "negociações" terminado nas recentes eleições.

Como em outros processos - como o que resultou nos acordos de Gaza e Jericó sobre a nova partilha da Palestina-, o governo de Washington convocou diretamente forças e partidos oriundos do antigo aparato internacional ligado ao regime da burocracia soviética, agora desagregada.

Oba-oba. É o que resume o estado de ânimo generalizado em relação à ascensão de Nelson Mandela ao governo da África do Sul. Na mídia, uma verdadeira unanimidade. O que numa sociedade atravessada por interesses tão contraditórios, como a nossa, já mereceria uma interrogação.

De saída, é claro que o fim do regime social criado pelo apartheid seria um enorme progresso para a humanidade. Encerraria uma das mais brutais formas de exploração do homem pelo homem, que utiliza o terror sistemático, a discriminação racial por um regime estatal de exclusão.

A África do Sul, ou Azânia como preferem os militantes que vêm do Movimento da Consciência Negra, foi um dos primeiros países a lutar contra o colonialismo e um dos últimos a conquistar a independência. É que, como explica a AzapoA Organização do Povo de Azânia (Azapo) é um partido oriundo do Movimento da Consciência Negra, que reivindica mais de 100 mil filiados e uma implantação nacional. Em dezembro último, integrou o Acordo Internacional dos Trabalhadores (AcIT), fundado na Conferência Mundial Aberta de Barcelona (1991)., trata-se de um país riquíssimo, que produz de 50% a 75% de todo o ouro do mundo. E que os ingleses, quando se viram obrigados a outorgar a independência, entregaram aos descendentes dos Boers (colonos brancos). Estes constituíram o que a Azapo qualificou como "um sistema híbrido de racismo e capitalismo que procura manter o povo de Azânia numa escravidão perpétua", ou seja, "numa relação de simbiose entre o capitalismo e o racismo".

Não foi à toa que todo o mundo saudou a crise aberta na virada da década, em particular quando o povo negro conseguiu libertar seus principais dirigentes presos.

Mas foi também esse o momento em que os EUA resolveram tomar o assunto diretamente em suas mãos. No quadro da pretendida "nova ordem mundial", foi uma iniciativa americana que levou ao processo de "negociações" terminado nas recentes eleições.

Como em outros processos - como o que resultou nos acordos de Gaza e Jericó sobre a nova partilha da Palestina-, o governo de Washington convocou diretamente forças e partidos oriundos do antigo aparato internacional ligado ao regime da burocracia soviética, agora desagregada.

O PCSA (Partido Comunista Sul-Africano) transformou-se no interlocutor das "negociações", incumbido da tarefa de subordinar o forte movimento operário aos acordos - o que, de outra forma, também ocorreu com frações da antiga burocracia dos países do Leste da Europa na hora da "reconversão" (privatizações etc). O PCSA está historicamente associado ao Congresso Nacional Africano, o CNA, que é a mais importante organização dos negros do país, mas não a única.

Os quatro anos de "negociação", para que se chegasse ao acordo passa ram pela associação das organizações sindicais ao processo. Um primeiro passo foi a assinatura de um "pacto estratégico" entre o PCSA e a principal central sindical, Cosatu.

Em seu congresso de 1991, a Cosatu adota um programa, bancado sobretudo pelo PCSA, que contempla ocupar-se de decisões de investimento; introdução de novas tecnologias e técnicas de produção; utilização do lucro; e decisões do que produzir.

Trata-se da vontade de associar os sindicatos à gestão da economia capitalista. Seguiam-se assim as recomendações do FMI (o país não integrava oficialmente a instituição). Isso ficou mais claro quando, para esse fim, constituíram-se mais de duzentas estruturas tripartites - sindicato, patronato e Estado - nos últimos anos.

Hoje, a direção da Cosatu afirma que "a cooperação e a parceria entre o trabalho e o capital são um elemento crucial para a estabilidade e a concorrência internacional... O patronato e o movimento sindical devem se colocar de acordo sobre os programas para atenderem níveis mais elevados de produtividade e de lucro".

Na África do Sul, harmonizar os brancos do apartheid com o povo negro oprimido, como se vê, acarreta harmonizar o capital e o trabalho, para fins de concorrência internacional. O que, tal como no Brasil, implicaria pôr de acordo patrões e operários, sobre estabilidade e lucro.

Nessa trilha, chegou-se ao Acordo de Kempton Park que estabeleceu o quadro institucional das recentes eleições. Delas emergiu um governo de coalizão entre o CNA, de Mandela, e o Partido Nacional, de De Klerk.

A elementar democracia deveria significar a transferência do poder da minoria branca para a maioria negra, pelo princípio "um homem um voto", num Estado unitário (ver abaixo), bem como a restituição à Nação das riquezas do povo negro espoliado pela ocupação colonial e o apartheid, o que significaria a "nacionalização" daquele patrimônio.

É certo que pela primeira vez todos os sul-africanos puderam votar. Só que a nova Constituição "negociada" interdita a transferência do poder. Obriga um governo de coalizão nacional, com todos partidos que ostentam 5% ou mais dos votos, a tomar decisões apenas por consenso. Quer dizer, confere um poder de veto permanente àqueles que se beneficiaram do apartheid.
A mesma Constituição protege de qualquer nacionalização os setores da economia ditos "integrados" ao mercado mundial (ouro, diamantes, platina etc) assim como as grandes propriedades agrárias "de tipo exportador". Neste particular a reforma agrária só é permitida com "objetivos de ordem pública", o que é sabiamente diferente do "interesse público" (social), e se restringe a estradas, obras etc.

É muito significativo que um certo juiz John Kriegler, presidente da Comissão Eleitoral Independente, tenha declarado ao jornal norte-americano Internacional Herald Tribune, a propósito destas eleições - das quais não se sabia quantos podiam votar e nem mesmo quando terminava o pleito - "São eleições à africana. Não devem ser analisadas com base em critérios europeus ou americanos"...

A Azapo defendeu a abstenção ativa nestas eleições que, estima-se, tiveram a participação de 19,5 milhões dentre 26 milhões de negros no país. Outros grupos sindicalistas, e inclusive dirigentes da Cosatu que antes falavam em um Partido dos Trabalhadores, eleitos deputados ou nomeados ministros, deixaram de levantar a questão.

O governo Mandela recebe todo o peso da herança da crise econômica do apartheid.

Descobre-se hoje que, embora oficialmente e boicotado nos fóruns internacionais, o regime do apartheid beneficiou-se de importantes aportes financeiros. E cujo reembolso nem sempre era exigido do antigo regime pelos bancos. Banco Mundial e FMI só vieram a oficializar suas relações agora, com as autoridades da transição. Isso para renegociar os termos do pagamento da dívida externa que chega a 22 bilhões de dólares e que, segundo o Sunday Times inglês, correspondente a 55% do PIB do país. O governo está diante de um crescimento do montante dos juros da dívida neste ano de 2 para 2,5 bilhões de dólares, segundo o jornal, especialmente em virtude da construção de casas de luxo no ano passado.

O resultado, garantido pelos acordos negociados, é que o Orçamento anual para 1994-95 consagra 20% ao pagamento da dívida e apenas 2% às "medidas sociais de urgência". Foi o que sobrou para o RDP (Reconstructiou and Development Programme), o programa apresentado pelo CNA.

A imprensa internacional não se cansou de elogiar esse "orçamento de continuidade".

O novo ministro das Finanças foi Derek Keis do Partido Nacional, que ocupava o mesmo cargo(!) no governo De Klerk (mesma coisa com o presidente do Banco Central), até que renunciou agora em julho. Rapidamente, Mandela substitui-o pelo banqueiro Liebenberg.

Ninguém se surpreendeu quando Keys em seu primeiro "discurso sobre o Estado da nação", segundo o jornal econômico francês La Tribune, "tenha tranquilizado os homens de negócios não impondo nenhuma reforma fiscal 'revolucionária', (...) como forma de cumprir os compromissos de De Klerk com o FMI do final de 1993."

O problema agora é saber como se comportará o povo negro em face dessa política. O jornal The Star (27/04/94) publicou um cínico comentário de um dirigente do Democratic Party, ligado ao capital inglês: "Mandela disse que a época de manifestações de massa está terminada, e que será preciso aguardar três a cinco anos antes que possamos responder realmente às nossas necessidades! Gostaria muito que assim fosse. Se ele conseguir sem provocar uma revolta, será um feito".

Com efeito, as necessidades de alimentação, emprego, educação e habitação são prementes, na África do Sul. O RDP estima entre 5 a 8 bilhões de dólares, o custo do atendimento das demandas imediatas. O país é rico: as poucas famílias que controlam a Anglo-American Corporation, maior produtora de diamantes, ouro e platina detém só nesta empresa, 7,2 bilhões de dólares nos mercados financeiros sul-africanos, quase o equivalente ao financiamento do RDP inteiro. Só que os acordos institucionais proíbem tocar nas fortunas constituídas em três séculos de opressão do povo negro.
Dessa forma, é discutível o futuro que terão as promessas de campanha, embora pareça bastante crível o engajamento do governo em alguns outros dos compromissos marcados no RDP.

Por exemplo, quando se limita a conduzir as "relações com as instituições financeiras internacionais como o Banco Mundial e FMI, de modo a proteger a integridade da formulação doméstica e promover os interesses da população e da economia da África do Sul". Nada mais, nem mesmo a denúncia retórica desses organismos.

O RDP está, na realidade, completamente enquadrado no ajuste recomendado pelas instituições multilaterais, que renunciou combater.

Em outra passagem ele esclarece que "a nova política deve levar em conta as limitações dos setores da indústria distintos do aço, da metalurgia e dos produtos químicos. Os recentes acordos do GATT geraram um ajuste doloroso em certos setores, e a política seguida deveria reduzir e repartir o impacto deste ajuste, melhorando ao mesmo tempo a eficácia. As reduções de direitos alfandegários sobre as importações são uma exigência do GATT, constituindo igualmente um instrumento estratégico de uma política comercial. Eles são hoje objetivo de uma negociação no seio do National Economic Forum (um fórum tripartite)."

Está bem expressa aí a utilização do tripartismo para repartir o impacto doloroso do ajuste. Por tudo isso, e muito mais, seria um erro considerar a política levada por Mandela até aqui como um exemplo para os socialistas no mundo.

Já se conhecia a transição chilena, pactuada ao redor do general Pinochet no Ministério do Exército, como garantidor da continuação dos planos do FMI, ao lado da eleição do presidente da República. Não ocorreu a nenhum dirigente importante do PT, na época, considerar que isso fosse expressão de "generosidade" da antiga oposição. Ao contrário, para qualquer petista isso apenas configurava o caráter dessa oposição, e a necessidade de um novo partido, independente, digno dos trabalhadores, comprometido com suas lutas, apenas com elas e não com os planos do FMI. No fundo, é o mesmo problema com o CNA na África do Sul.

O que se pode, então, esperar de Mandela?

Os dados indicam que seria uma precipitação (na realidade, uma derivação desastrosa) embandeirar-se do "modelo" da política de Mandela.

Logo depois de apertar a mão de Lula, Mandela e seu governo de União Nacional baixaram um pacote de medidas incluindo cortes nos gastos públicos, mais impostos em produtos de consumo popular e sobretaxa nas rendas superiores a mil dólares por mês, bem ao agrado do FMI (Veja, 29/06/94).

Qualquer que seja nossa simpatia por velhos lutadores que amargaram o exílio e a prisão, nada deve se sobrepor ao nosso compromisso com a necessidade de uma vida digna para os povos em qualquer parte do mundo, em oposição, portanto, ao plano do ajuste que se pretende universal. Tal é o caminho de uma ordem internacional justa, para um partido com uma política internacionalista independente dos atuais centros de poder. E na África do Sul, como em outras partes, haverão parceiros determinados para isso.

Markus Sokol é secretário de Comunicação da Comissão Executiva Nacional do PT.