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Com eleições gerais marcadas, uma candidatura  à esquerda (Lula) e a impotência do presidente, surge a figura de FHC

O início da circulação deste número de Teoria & Debate coincide com o auge de uma grande ofensiva eleitoral das classes dominantes brasileiras. O Plano Real é talvez o último instrumento que as oligarquias políticas e econômicas dispõem para tentar estabelecer uma "cabeça de praia" na maioria que pretende votar à esquerda em outubro/novembro. Vive-se nacionalmente um estado de grande excitação, um clima de "Dia D".

Funcionará? Estamos diante de um novo "desembarque na Normandia"? Ou vem aí mais um fracasso político das elites, uma outra "Ardenas"A floresta das Ardenas, na Bélgica, assistiu à última ofensiva alemã ao final da Segunda Guerra Mundial. Foi uma dramática tentativa de Adolf Hitler de romper as linhas aliadas e recuperar a iniciativa militar no front ocidental.?

Prólogo
O Plano Real é, desde o berço, uma articulação político-empresarial com objetivos principalmente eleitorais. Recorde-se que a chegada de Fernando Henrique Cardoso (FHC) ao Ministério da Fazenda, em meados do primeiro semestre de 1993, respondeu ao ambiente de grande instabilidade política em que o país mergulhara após o impeachment de Fernando Collor de Mello. Instabilidade que não guardava estrita correspondência com o cenário econômico, pois continuava vigendo a estratégia ortodoxa tomada hegemônica na gestão Marcílio Marques Moreira - e que contava com sólido respaldo de empresários e de grandes veículos de comunicação.

Quais eram, então, os motivos da intranqüilidade que assaltava nossas elites?

Em resumo, a combinação de três vetores: eleições gerais marcadas no calendário, uma candidatura ascendente à esquerda (Luiz Inácio Lula da Silva) e a impotência do presidente Itamar Franco diante desse cenário.

O início da circulação deste número de Teoria & Debate coincide com o auge de uma grande ofensiva eleitoral das classes dominantes brasileiras. O Plano Real é talvez o último instrumento que as oligarquias políticas e econômicas dispõem para tentar estabelecer uma "cabeça de praia" na maioria que pretende votar à esquerda em outubro/novembro. Vive-se nacionalmente um estado de grande excitação, um clima de "Dia D".

Funcionará? Estamos diante de um novo "desembarque na Normandia"? Ou vem aí mais um fracasso político das elites, uma outra "Ardenas"A floresta das Ardenas, na Bélgica, assistiu à última ofensiva alemã ao final da Segunda Guerra Mundial. Foi uma dramática tentativa de Adolf Hitler de romper as linhas aliadas e recuperar a iniciativa militar no front ocidental.?

Prólogo
O Plano Real é, desde o berço, uma articulação político-empresarial com objetivos principalmente eleitorais. Recorde-se que a chegada de Fernando Henrique Cardoso (FHC) ao Ministério da Fazenda, em meados do primeiro semestre de 1993, respondeu ao ambiente de grande instabilidade política em que o país mergulhara após o impeachment de Fernando Collor de Mello. Instabilidade que não guardava estrita correspondência com o cenário econômico, pois continuava vigendo a estratégia ortodoxa tomada hegemônica na gestão Marcílio Marques Moreira - e que contava com sólido respaldo de empresários e de grandes veículos de comunicação.

Quais eram, então, os motivos da intranqüilidade que assaltava nossas elites?

Em resumo, a combinação de três vetores: eleições gerais marcadas no calendário, uma candidatura ascendente à esquerda (Luiz Inácio Lula da Silva) e a impotência do presidente Itamar Franco diante desse cenário.
Conceda-se a Itamar a atenuante das circunstâncias. Aspirado ao poder no vácuo da queda de Collor, seu perfil nacionalista e estatista caiu como luva diante de um país que imaginava estar se livrando, simultaneamente, do morador da Dinda e das suas idéias. E no início bem que Itamar acreditou em seu papel. Entendeu que poderia nomear seus próprios ministros, inclusive para cuidar da economia...

Era pouco mais que um equívoco. Não houve trégua. Os primeiros arroubos de independência do novo ocupante do Planalto foram recebidos por pesada artilharia. Não importava que o teatro "nacional-popular" do presidente se limitasse a isso, teatro. O que desesperava a direita era antever na ação política de Itamar um obstáculo a que o Executivo operasse na sucessão presidencial como eixo da montagem do anti-Lula.

Recorde-se que os grupos sociais dominantes no Brasil sempre se mostraram umbilicalmente dependentes do Estado para suas operações políticas apesar da retórica liberal. A história registra que, na democracia, nunca conseguiram impor uma hegemonia estável. Não foram capazes de articular partidos majoritários a partir da sociedade civil. Responde por essa debilidade o sistema de exclusão social vigente no país que essas classes trataram de construir nos últimos cinco séculos. Aqui, a fonte da nossa crônica instabilidade institucional e do "populismo de direita".

Partidos e candidatos com a cara das elites sempre enfrentaram entre nós gigantescas dificuldades quando tiveram que disputar eleições majoritárias. Uma rápida retrospectiva, de 1930 para cá (não se pode falar rigorosamente de República antes dessa data), mostra as seguidas derrotas da direita, num veio histórico que surge com a União Democrática Nacional (UDN), passa pela Aliança Renovadora Nacional (Arena) e desemboca mais modernamente no Partido Progressista Reformador (PPR) e no Partido da Frente Liberal (PFL).

Essa anemia de votos tem estado na origem do surgimento de personagens como Jânio da Silva Quadros e Fernando Collor de Mello; homens cujo combustível eleitoral jorra de uma esperta simbiose entre o dinheiro dos muito ricos, o medo das classes médias e as esperanças dos pobres. São figuras que nunca aceitam a identificação direta com o capital, apesar de governarem para ele.

Mas, falava do quadro político-institucional que cercou a ascensão de FHC ao Ministério da Fazenda e da intranqüilidade sentida então pelas elites. A expressão chave daquele período era "terceira via", senha de uma pouco dissimulada busca da segunda via, de um nome para enfrentar Lula. Para complicar o quadro, havia fracassado a manobra parlamentarista, inspirada pelo Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB) e que se propunha a expurgar das instituições políticas nacionais o incômodo caráter plebiscitário das eleições majoritárias para o Executivo. Persistiam ainda entre as classes dominantes as dúvidas a respeito da viabilidade da revisão constitucional (fundadas, como se verificou depois).
FHC chegou à Fazenda com a missão de reverter esse quadro. Note-se que dele nunca se exigiu uma estratégia antiinflacionária rápida (ao contrário dos antecessores, sempre pressionados por manchetes que exibiam gritantemente a aceleração dos preços). Ao contrário, FHC viveu o período de montagem de sua candidatura cercado do mais absoluto clima de tolerância quanto à inflação, apesar de a ter conduzido de 20% para 50%. Dele se esperava outra coisa: que produzisse uma articulação empresarial e política capaz de ser uma alternativa eleitoral competitiva.

Preparação
Antes ainda de ser chamado para o Ministério da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso já se, oferecia nas sombras como o homem em que os grupos dominantes poderiam confiar. O político capaz de colocar um freio em Itamar Franco e reagrupar os exércitos dispersos e desmoralizados do neoliberalismo pós-Collor. O nome que poderia evitar o pior, a eleição de Lula. Uma operação hábil do tucano, pois, enquanto costurava à direita, flertava à esquerda para neutralizar uma prematura oposição sindical e política a seu plano econômico, trabalhado desde o princípio como o principal trunfo para a eleição. Essa linha de ação foi facilitada pelas ilusões que, apesar das evidências, persistiam na esquerda sobre a possível participação do PSDB num arco de forças para dar estabilidade ao hipotético governo Lula.

Todos os esforços de FHC passaram então a ser concentrados na preparação das condições ideais para a otimização dos resultados do plano em meados do segundo semestre deste ano. Uma seleta equipe de economistas, escolados por experiências anteriores, começou a se dedicar full-time aos preparativos técnicos. Potenciais adversários políticos do PSDB no interior das classes dominantes passaram a receber sinais cada vez mais nítidos, provenientes do meio empresarial, para que não criassem obstáculos à estratégia de FHC. Os principais agentes econômicos começaram a ser "sinalizados" de que viria uma brusca desaceleração inflacionária na véspera da eleição. Ou seja, que aproveitassem bem o tempo para posicionar de maneira vantajosa seus preços relativos. O que fizeram com muita competência, como mostram os índices.

A etapa de preparação foi muito facilitada por uma inédita - pela unanimidade - docilidade da mídia. FHC soube aproveitar ao máximo a exposição diária permitida pelo cargo de ministro, sem encontrar do outro lado espíritos críticos em quantidade suficiente para lhe causar preocupações. Talvez tenha sido, depois de Fernando Collor, o político que mais soube "governar para as câmeras". Suas entrevistas a telejornais, especialmente, ao Jornal Nacional da TV Globo, eram um primor de objetividade e concisão, além de fortemente marcadas pela vontade de se "popularizar".

Paralelamente à montagem do plano e ao amadurecimento da candidatura, FHC trabalhava para afastar da corrida sucessória seus potenciais concorrentes no campo da centro-direita. O prefeito paulistano, Paulo Maluf (PPR), por exemplo, viu-se privado de aliados políticos tradicionais do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e do Partido da Frente Liberal, que preferiram se coligar com o PSDB. Quando ainda lutava para se viabilizar como candidato, Maluf começou a receber sinais do empresariado e dos veículos de comunicação para que não se colocasse como obstáculo à unidade em torno de FHC. A contragosto, acabou saindo do páreo.

Em conseqüência desse conjunto de fatores, FHC virou a passagem do primeiro para o segundo semestre de 1994 montado em condições quase ideais para pôr em marcha a etapa final de seu projeto. Sua estratégia para esse último período foi ficando progressivamente clara conforme amadurecia sua candidatura e se aproximava o momento decisivo da implantação do real. Aqui, FHC passa a se apresentar como "o homem que baixou a inflação"; o candidato cujo programa não está apenas no papel, já foi passado à prática; o político que pode realizar um governo de maioria, estável - requisito essencial para a continuidade da luta antiinflacionária; o nome com o preparo intelectual indispensável à condução do país nesse difícil período etc.
Execução
Seria um equívoco condicionar as possibilidades de êxito do projeto FHC ao "sucesso" ou "fracasso" do plano econômico. Esse critério pressuporia a crença de que há de " fato um plano para a economia. É ocioso entrar aqui em detalhes, mas basta uma observação mais rigorosa para verificar que o Real é apenas um expediente pré-eleitoral, destinado a apagar o componente inercial da inflação e alavancar o candidato do PSDB, munindo-o de uma bandeira capaz de reunir a base social que levou Collor a vencer Lula em 1989.

Em princípio, é necessário reconhecer que as condições parecem favoráveis a isso.

Reduzir a inflação a valores muito baixos durante alguns meses não chega a ser tarefa difícil. Além disso, FHC vai às urnas amparado no mais formidável apoio que a mídia já ofereceu a um candidato. Velhos adversários entre os meios de comunicação deixam de lado momentaneamente suas diferenças, e mesmo veleidades críticas são congeladas. A um estudioso que no futuro se interessar pelo papel da imprensa nas eleições de 1994, parecer-lhe-á que esta obedeceu a uma estratégia de Estado Maior, ao qual uns e outros aderem com diferentes graus de convicção - mas com igual senso de dever. Por sinal, é interessante notar que esse cenário tem resultado numa espécie de "anistia branca" aos métodos historicamente empregados em eleições pelas Organizações Globo, métodos que no passado já chegaram a ser objeto de crítica dos rivais.

Outro aspecto favorável à candidatura FHC é o respaldo das principais máquinas partidárias nacionais. Elas buscam um instrumento eleitoral capaz de fazê-las sobreviver ao furacão rejeicionista que se espera para outubro. Esse apoio é ainda mais importante em eleições "casadas". Permanece nebuloso, porém, o quanto os partidos de fato influirão no resultado eleitoral deste ano. Mas, é razoável supor que um candidato com bom controle da mídia (e, portanto, sem obstáculos sérios à construção de sua imagem) terá o aspecto propriamente operacional de sua campanha muito facilitado pelo reforço que receberá das estruturas de legendas como o PFL e o PTB.

Será suficiente?
Parágrafos atrás, falava da base social que deu a vitória a Collor em 1989. Para derrotar Lula, o então governador de Alagoas teve que reunir em torno de si: a grande burguesia, a classe média atemorizada pela proletarização e condicionada a culpar o Estado por suas desventuras e uma legião de miseráveis, os "descamisados", cujo ódio Collor soube canalizar com grande competência, desfraldando a bandeira da luta contra os "marajás".

Parece-me que Fernando Henrique Cardoso terá alguma dificuldade para repetir a dose, ainda que não se deva subestimar sua capacidade de mistificação.

É certo que já conta, no alto, com a simpatia dos que imaginam ser possível continuar administrando nosso apartheid social sem correr grandes riscos, mesmo que à custa de certa filantropia. Com o tempo, acabará obtendo também a adesão daquelas camadas médias cuja referência se fixou há algum tempo na "modernidade", que as faz sonhar com o dia em que a porção Bélgica da Belíndia estará finalmente integrada no Primeiro Mundo. Já entre os pobres e a baixa classe média, sua tarefa será bem mais difícil do que foi a de Collor, pois Lula fincou raízes profundas nessa faixa do eleitorado. Além disso, nada indica que o Real trará uma explosão de consumo popular nos moldes do Plano Cruzado, nem FHC tem uma imagem que possa ser facilmente trabalhada para transformar o candidato no novo "pai dos pobres". Mas, atenção para medidas tópicas nesse sentido, como por exemplo, o anunciado aumento do salário mínimo na véspera da eleição.

Concluindo, penso que o caminho até outubro/novembro assistirá a uma progressiva e aguda polarização entre "pobres e ricos" para recorrer a uma redução esquemática como todas as reduções. Será uma campanha de progressiva radicalização, mais social que política. Em outras palavras, julgo que a máquina publicitária posta em ação para eleger FHC acabará tendo efeito nas parcelas da sociedade que teriam algo a perder se eleito um governo verdadeiramente comprometido com reformas sociais, com distribuição de renda e com a reestruturação dos serviços públicos em favor da maioria. Naquelas faixas, o Real funcionará como "a estabilidade que finalmente alcançamos e que não vale a pena arriscar".

Isto mostra, por sinal, as primeiras pesquisas. Com "moeda forte" no bolso e a consciência mais aliviada (afinal, FHC não é Collor e o PSDB não é o PRN), nossas camadas médias já exibem novamente sua tendência a pender à direita. Por isso, o Partido dos Trabalhadores, para vencer, precisará mobilizar a fundo os contingentes eleitorais majoritários das camadas mais pobres, apresentando-se como a alternativa radical de mudança. Precisará buscar especial apoio entre os desesperançados, que costumam se abster ou votar em branco. Já foi assim em 1992 nas cidades onde o partido conseguiu derrotar amplas coligações adversárias (como por exemplo em Santos e Porto Alegre).

Alon Feuerwerker é jornalista. Atualmente, faz bacharelado em Matemática na Universidade de São Paulo.