Mundo do Trabalho

Temos que buscar soluções e alternativas sob pena de corrermos o risco de perder os velhos quadros, ou não renová-los

É muito comum ouvirmos nos sindicatos, movimentos populares, ou ainda, nos partidos de esquerda, que o militante deve sempre estar vinte e quatro horas por dia à disposição da luta. Será isto verdade? Ou ainda, nossa vida se resume à militância?

Embora, hoje, a maioria das correntes de esquerda tenham execrado a ortodoxia stalinista, infelizmente todas ainda carregam nos ombros o peso da triste herança, a qual orientava que gastar energia com lazer e prazer era desperdiçá-la em detrimento das causas revolucionárias. Uma passagem de Máximo Gorki, em A mãe, ilustra bem a situação. Natacha e Pavel estão extremamente apaixonados um pelo outro. Ela cobra o casamento e ele retruca, alegando que a energia desprendida da libido seria desperdiçada em detrimento da causa revolucionária. Dentro deste espírito, muitos companheiros e mesmo companheiras - estas mais sensíveis por formação -, com suas questões afetivas mal-resolvidas, acabam se sobrecarregando com várias tarefas, para justificar a falta de tempo para encontrar a solução desejada. Se, por um lado, carregamos o eterno sentimento de culpa cristão - de que prazer é pecado - por outro a herança do militante tempo integral, em prol da causa nos servem como grandes trunfos a justificar a falta de tempo para questões supérfluas. Muitas vezes, lazer e prazer são considerados como leite da burguesia, ou ainda como instrumento de perversão do bom revolucionário. Com isto, nossa afetividade, como todas as questões subjetivas, fica seriamente comprometida.

Aqui, pretendemos apenas apontar, sinteticamente, quais os principais problemas e conseqüências decorrentes de tal atitude que têm deixado nossos sindicatos, movimentos populares e partidos de esquerda com seriíssimas dificuldades de relacionamento interno, pouquíssima atração de novos militantes e, obviamente, com uma precaríssima renovação; perda de quadros experientes e, conseqüentemente, com um reduzido número de quadros, que por necessidade maior eternizam-se na direção, presos ao tarefismo e já chegando à exaustão.

Até pouco tempo atrás, dirigentes ficavam vinte e quatro horas por dia à disposição de suas respectivas tendências políticas, ou entidades, relegando vidas e atividades particulares a um plano secundário. Faltara uma reunião, para levar um filho(a) ao médico, consultar-se periodicamente, ou ainda, deixar de participar de uma daquelas chatas e improdutivas reuniões, para um momento de lazer ou prazer, era quase que pedir para ser crucificado pelo coletivo ou parte dele. Alguém exclamava de forma fervorosa: a revolução não pode esperar, camarada!

Outro gravíssimo problema, fruto de "tudo pela revolução" ou, ainda, do obreirismo é que grande parcela da esquerda continuou a pensar e agir como a direita: um operário não tinha o direito de adentrar à vida acadêmica. Se por um lado havia o entendimento de que fazer curso universitário perverteria a militância operária, por outro, em diversas entidades, pairava também o sentimento de culpa de estar roubando tempo da ação sindical para investir em interesses particulares e pior ainda, a questão do controle do poder, na medida em que os quadros emergentes tivessem contatos com outras correntes de pensamento, desenvolvessem interpretações próprias, fora do dogmatismo, o pequeno círculo do poder não seria mais possível dentro das tendências e entidades dirigidas.

Embora houvesse um processo de formação política dentro das organizações, ainda de forma dogmática a fim de evitar autonomia dos militantes, este processo foi implementado inicialmente pelo Partido Comunista Brasileiro e ulteriormente por todas as suas respectivas tendências políticas dissidentes que se consideravam marxistas. Evidentemente que cada corrente política buscava promover uma formação tática e estratégica que reforçasse sua respectiva concepção e prática classista. O processo, longe de ser dialético, foi tão autoritário que, quando um militante discordava e criticava publicamente o método, era advertido e convidado a retratar-se, ou até mesmo expulso, taxado como revisionista.

Infelizmente, este método ortodoxo prejudicou a capacidade reflexiva, crítica e criativa dos nossos militantes de hoje.

Os pouquíssimos dirigentes que, no início da década passada, se dispuseram a enfrentar os militantes e os dirigentes mais obreiristas, ingressando na vida acadêmica concomitantemente com o mandato sindical, sofreram todos os tipos de perseguições, queimações e picuinhas. Mesmo cursando faculdades correlatas à formação política, como filosofia, história, sociologia, economia etc, eram absurdamente acusados de roubarem tempo da ação sindical, na categoria, para investirem em interesses particulares. Qual era a questão de fundo? Numa visão mais atrasada: operário era apenas aquele que punha as mãos na massa, ou seja, que trabalhava diretamente na produção. Os demais eram até trabalhadores, mas nunca operários. Acreditava-se que, aqueles que tivessem curso superior, tornar-se-iam pequenos burgueses. Seriam eles que iriam ocupar as funções de supervisores, chefes e, em última instância, repressores da classe operária, sanguessugas ou até mesmo pelegos.

Nas últimas três décadas, com a maior complexidade da sociedade, maior especialização e automação da produção; como o estabelecimento de uma nova divisão internacional do trabalho, com uma revolução nos processos de gestão e um aperfeiçoamento vertiginoso das comunicações em geral, produziu-se uma nova postura, que mesmo dentro da esquerda foi bombardeando esta posição mais sectária e este comportamento anacrônico. Isto porque, analisar e comparar da mesma forma o que era o operário na indústria têxtil britânica do século XVIII com o da moderna indústria do fim do século XX é anacronismo, está superado. Contudo, vários companheiros foram expulsos de seus grupos, outros racharam formando outras tendências "mais democráticas," e vários abandonaram o movimento, por não suportarem mais o sectarismo e a falta de perspectivas mais concretas para uma revolução brasileira. Na pior das hipóteses, antigos militantes foram cooptados pelos tão excomungados deleites da burguesia, indo servir à classe dominante. Até hoje, ainda não fomos premiados pelos nossos intelectuais mais engajados com um trabalho de fôlego sobre o comportamento da nossa militância. Justiça seja feita, temos alguns trabalhos mais específicos de cunho histórico-sócio-antropológico, que por vez trabalha algum viés do comportamento, infelizmente, com todas as críticas, até mesmo jocosas de alguns esquerdistas. Se Stalin proibiu que a psicanálise adentrasse a União Soviética, para não ter seus intelectuais e militantes operários, na Europa foi um pouco diferente, principalmente na Alemanha, com Wilhelm Reich. Contudo, no Brasil, de forma mais sistematizada, muito pouco foi produzido ou, se foi, não conseguiu chegar ao movimento sindical. Neste aspecto, podemos cobrar a função social da universidade brasileira que quase nunca foi cumprida. Mesmo intelectuais militantes, não sei, se para não confundir-se com operários, nunca participaram nos coletivos de formação das CUTs estaduais.

Num encontro sindical foi convidada uma psicóloga, para uma exposição, que nos ajudasse a refletir sobre nosso comportamento de ativista. Infelizmente, ela falou quarenta minutos em significante e significado, instituinte e instituído. Noventa por cento da turma não conseguiu decodificar o que ela estava querendo transmitir... Todavia, as necessidades do militante, ou melhor, do militante tempo integral, a cada dia que passa mais tem sido colocada em xeque, e acreditamos que o xeque-mate desta história está bem próximo.

Particularmente na Bahia, em meados da década passada, iniciamos, assistematicamente, um processo de discussão, para analisarmos porque nossas questões subjetivas e principalmente nas afetivas eram sempre relegadas a um plano secundário. Propositadamente, em 12 de junho de 1985, nos reunimos num proveitoso papo, entre alguns diretores do Sindiquímica, com suas respectivas companheiras, a fim de provocarmos uma discussão avaliando as interferências na vida de cada casal, razões da militância exagerada e as relações familiares. Sistematicamente, reclamações gerais foram feitas pelas companheiras, entre elas o fato de seus respectivos nunca terem tempo para fazer nada em relação às suas famílias. Apesar de curta, foi riquíssima a conversa, deixando uma sementinha germinando, e a idéia de repetir a reunião, com um número maior de pessoas. Com uma brutal resistência da maioria da diretoria, acabou inviabilizada.

No planejamento da diretoria do Sindiquímica, em 1989, montamos algumas esquetes, nos espaços de lazer, mexendo com o comportamento dos companheiros mais autoritários, machões, pseudoliberais etc, que naturalmente foi levado na brincadeira mas, depois, fora do grupo, alguns reclamaram. A resposta aos reclamantes foi uma tese: a questão da mulher, ou melhor, do machismo, no nosso congresso anual de 1990.

Ainda em 1989, durante o curso de formação de monitores do Nordeste (Bahia, Alagoas, Sergipe e Pernambuco) ocorrido em três etapas, sendo durante uma semana de dois em dois meses, na Bahia, em Alagoas e Pernambuco, respectivamente, nos momentos de lazer, retomamos de forma rica esta discussão. Durante os trabalhos de grupo e plenárias, criamos uma "caixinha de fofocas" para aqueles que não conseguiam verbalizar seus desejos ou posições por timidez, receios ou outros motivos, escreviam ou desenhavam, depositando suas contribuições na caixinha.

Além disso, após a apresentação do grupo, criávamos comissões de trabalho voluntárias: disciplina, organização, lazer, imprensa e avaliação metodológica. A comissão de imprensa produzia um jornalzinho, que captava desde os lapsos de linguagem até os olhares que se cruzavam no ar, durante os trabalhos e momentos de lazer. Quando o grupo parecia cansado, disperso, ou no início das plenárias, o jornalzinho entrava no ar, provocando grandes gargalhadas, relax, e muita atenção na retomada dos trabalhos.

O jornalzinho funcionava quase como uma catarse coletiva, deixando o grupo serelepe e fagueiro. A maioria das contribuições relacionava-se com questões afetivas e comportamentais, deixando de forma explícita a grande repressão sexual de nossos militantes. No final da terceira etapa, em Recife, reservamos uma noite para trabalhar nossas subjetividades, ou seja, para elencarmos e discutirmos o que faziam aqueles trinta e poucos companheiros(as) fora do movimento político. Houve todo o apoio da Equip (Escola Quilombo dos Palmares) que acabou classificando essa discussão de ODV (Outras Dimensões da Vida) com o que todos concordaram. Contudo, hoje reavaliando, entendemos que para a maioria dos militantes que priorizavam a causa, quaisquer elementos subjetivos, na prática, acabavam tendo outra dimensão, porém o título foi de pouca importância, e o fundamental foi o processo desencadeado. Foi elaborada uma agenda de segunda-feira a domingo, solicitando que cada um enumerasse o que fazia durante a semana, noves-fora, o ativismo político. O resultado foi um verdadeiro descalabro, ou melhor, retratou uma dura realidade, que a maioria não se dava conta dela. Alguns companheiros não conseguiram listas nada, outros muito pouco, e ainda alguns relataram que enfrentaram grandes dificuldades, cobranças e mesmo acusações, quando faltaram a algum evento, a fim de atender às necessidades da família, ou deles próprios. Em última instância, estes militantes estavam permitindo que seus problemas particulares fossem prioritários, prejudicando a luta.

Outro problema nefasto observado foi como vários militantes, que se dizem revolucionários, acabam vivendo em verdadeiros guetos, obviamente nem mesmo se revolucionando. Uns não iam ao cinema com familiares, cônjuges ou namorados(as) porque gostavam de cinema de arte e os demais de filmes alienantes; outros não iam aos estádios porque futebol era o ópio do povo; alguns sindicalistas não freqüentavam os convidativos grêmios das empresas porque era um espaço de promoção e cooptação patronal; um companheiro afirmou que, naqueles meses, passara muito mais tempo com as pessoas do grupo, do que com seus filhos e esposa, já que a militância havia absorvido o restante do seu tempo.

O que lêem os nossos militantes? Nem mesmo os jornais corretamente. Vão a cinema, teatro, shows? Pouquíssimo! Como fica o grau de solidariedade entre nós? Baixíssimo! Como se dá o reconhecimento? Apenas com desagrados bilaterais! Basta uma pequena queda de produtividade, ou melhor, de militância para ser objeto de críticas fáceis.

E os elogios? Isto é raríssimo! Quando se trata de alguém do meu pedaço, ou outro cooptável, são lançados elogios fáceis, e até irresponsáveis. Contudo, se é da tendência adversária, mesmo que esteja certo, mas para marcar posição, cria-se um jeito de emitir farpas e flechas. Como eliminar os confetes versus flechas? Resolvemos os problemas subjetivos, investindo no amadurecimento político, para que um consiga divergir sem arrasar o outro ou até mesmo matar.

A título de exemplo, uma reunião noturna de uma certa diretoria composta por tendências diferentes, por incrível que pareça, tornou-se muito mais produtiva quando faltou energia elétrica. Como nós valorizamos muito mais a visão do que os outros órgãos dos sentidos, muitos diretores não conseguiram identificar a voz de quem falava no escuro. Com isto os costumeiros emperramentos, discordâncias, apenas para marcar posição, ou ainda, contra argumentações desnecessárias foram eliminados, propiciando uma eficácia nunca alcançada. A reunião foi tão boa, que vários diretores reivindicaram que as vindouras fossem também no escurinho do cinema, a fim de eliminar as chatices rotineiras.

A nossa última experiência, trata-se de um seminário que levou seis anos de gestação. Tentando burlar a já citada resistência da maioria dos dirigentes em discutir este tema tratado aqui, propusemos, posteriormente, realizar um seminário holístico para buscar amenizar os sérios problemas de relacionamento nas diretorias sindicais, e tivemos como resultado um tratamento de deboche. Mais tarde num seminário para elaboração do planejamento estratégico situacional de uma entidade, foi aprovada uma operação para resolver os problemas internos, da qual resultou um seminário sobre ética e relacionamento, que na verdade seria a concretização da idéia inicial, apenas com título diferente.

Neste evento, trabalhamos com vários exercícios de relaxamento do corpo e mente, envolvendo aspectos racionais e projetos pessoais; emocionais como carinho, confiança, solidariedade com o outro, num grupo de mais de cinqüenta participantes. Infelizmente, aqueles mais machões, ou mais reprimidos, classificaram algumas etapas de meio bichonas, contudo por unanimidade todos avaliaram no final, um seminário de altíssima eficácia e eficiência, e a necessidade da realização de outros eventos similares.

Lamentavelmente, nossos militantes conhecem pouco a história da classe operária, quase não têm tempo para ler e freqüentar os seminários e cursos promovidos, logo, fazer uma análise de conjuntura econômico-sócio-política, a fim de respaldar uma prática política correta já é muito difícil, imaginemos agora, uma análise de conjuntura sobre a afetividade de nossas relações!

Na comemoração dos "10 Anos do Dieese, Bahia", no início de 1993, provocados por uma exposição do ex-ministro Walter Barelli, usamos a metade do tempo, para discutirmos, em público, pela primeira vez, uma avaliação preliminar da nossa conjuntura afetiva. Logo após elencar, provocativamente, os principais aspectos econômicos, sociais e políticos, expostos pelo ex-ministro a fim de estimular o debate, foram também enumerados os principais aspectos psico-emocionais e sócio-econômico-políticos que colocaram nossos militantes na defensiva, ou mesmo alguns até fora de combate. Ouvimos diversas acusações da impotência, inoperância dos nossos dirigentes e militantes, diante dos nefastos efeitos produzidos pelo Plano Collor. Não pretendemos aqui, entrar no mérito da discussão toda do evento, mas apenas pontuarmos o essencial da conjuntura afetiva. Enquanto a maioria achou que precisávamos humanizar a nossa militância, buscar conectá-la com vidas particulares mais felizes, representantes de uma determinada corrente foram taxativos: sindicato é espaço de luta e sacrifício mesmo, este negócio de prazer no sindicato não dá certo. Ou seja, perverte a luta.

Onde está a matriz de tal concepção? A maioria dos nossos velhos militantes, e ainda alguns novos, endeusaram acriticamente o modelo da União Soviética, como o socialismo pronto e acabado, único referencial, para justificar o discurso nas portas de fábrica, nos movimentos populares, como exemplo do processo de luta contra a classe dominante; e outros, mesmo criticando os métodos autoritários stalinistas, são castradores das individualidades, passando por cima das questões pessoais, superdimensionando o coletivo e a luta em detrimento de questões subjetivas consideradas tipicamente "burguesas". Mas onde e como fica o corpo, os desejos, os anseios, a libido desse pobre militante desencarnado?

Cremos ser consensual que o projeto de formação isolado de cada tendência não deu bons resultados, e precisamos superar algumas diferenças, no sentido de termos um projeto único para a CUT e demais entidades, que englobe as questões emocionais e afetivas. Naturalmente, buscaremos convencer e tomar prática a idéia de que para transformar nossa militância numa prática prazerosa, e não num mero sacrifício, é imprescindível tratarmos também das nossas questões subjetivas e certamente seremos mais produtivos. Neste aspecto, estamos à reboque da direita, pois há muitos anos, os empresários utilizam estes recursos, a fim de aumentar a mais valia relativa, com maior produtividade, enquanto nós "ortodoxamente" dormimos eternamente, não em berço esplêndido, mas sobre uma cama espinhosa, como num verdadeiro processo de punição.

Temos que enfrentar tal problema, buscando soluções e alternativas sob pena de corrermos o risco de perder os velhos quadros, ou não renová-los, nas nossas respectivas entidades. Há que se resgatar a dimensão prazerosa da vida e da militância, como aconselhava o velho "Lafargue", nos idos do século passado, ou o sábio dos "eclesiastes" que ordena diante da fugacidade da vida, gozá-la a cada instante.

João Rocha Sobrinho é diretor do Sindiquímica (BA) e monitor de Planejamento Estratégico.