Política

Ao longo da história recente assistimos a dois fenômenos sociais poderosos:  a integração pelo voto e a integração pela luta.

Não se pode dizer que não houve mudança alguma. Mudou o bico da chaleira. Eu, por exemplo, se tivesse disposição iria redigir e editar um "Manual do Perfeito Cortesão", adaptado aos novos tempos, recheado de ninharias que podem passar a ter algum valor. Não iria até o "Bonito herói, cheirosa criatura", porque não gosto de plágio e de bajulação conspícuos.

Alguma mudança houve.

Mas a sensação que se tem, mal passado o primeiro turno das eleições, é que os resultados das urnas, ainda nem de todo apuradas, se esmaecem como as fotos polaróides que ficam logo esverdeadas ou vermelhas.

Nas grandes eleições casadas de 1994 qualquer analista sério exigiria bastante tempo para entender o que pode ter mudado e, no entanto, compreende, quase instantaneamente, que o ritual de votação - quase sem surpresa - confirmou aquilo que já se sabia muito tempo antes das eleições: no Brasil, país complexo e dividido, há uma uma dominação de classe, econômica, política e cultural, que se exerce de forma competente e que pode submeter-se (ainda que com sustos e atropelos) ao teste da vontade popular. As eleições casadas devem ser estudadas cautelosamente, como os matrimônios em que os cônjuges dormem em quartos separados, mas há comunhão de bens.

Ao longo da história recente do Brasil, assistimos a dois poderosos fenômenos sociais: a integração pelo voto e a integração pela luta. Jamais se votou tanto e tantas vezes como no Brasil atual, consolidando-se um dos maiores eleitorados da Terra e experimentando-se as mais diferentes composições de forças consagradas pelas urnas. Também o povo brasileiro jamais lutou tanto quanto nos anos recentes (basta lembrar que, em números absolutos, o Brasil ocupa o 2º lugar mundial em greves, vencido apenas pela índia e seguido de perto pelos Estados Unidos). Estes dois impulsos, o voto e a luta, têm sido, entretanto, contrabalançados pela estrutura sócio-econômica iníqua - as desigualdades de renda e de vida entre as classes, os indivíduos, as regiões, os setores produtivos, os sexos, as cores da pele, a escolaridade - e por um sistema de comunicação social integrador, totalitário, excludente, simbolista e preconceituoso.

As grandes batalhas eleitorais deste ano foram travadas neste quadro.

A vitória do candidato conservador (que na complexidade brasileira não pode ser apenas conservador) obedece, pela ordem, a estes fatores: 1) um plano de estabilização econômica que garantiu moeda sem inflação no momento certo; 2) um grande acordo político que agregou aliados e desqualificou alternativas e 3) uma dominação inconteste e sem brechas dos circuitos de comunicação com a massa do povo. A vitória se deu no campo da democracia como ela é praticada no Brasil, com seus valores e perversões específicas e legitima uma proposta de gestão do Estado, da sociedade e das relações privadas, afinada com o que se costuma chamar de neoliberalismo.

Suas características: a busca de uma reordenação jurídico-política das relações sociais, a completa dominação do mercado sobre todos os outros fatores, como regra de excelência e de desregulamentação e a tentativa de eliminar as resistências que a integração pelo voto e a integração pela luta colocavam ao avanço do projeto neoliberal. Nele, tudo tem codinome: desorganização do movimento sindical se chama contrato coletivo; limitações à representação política atende por voto distrital e voto facultativo; populismo vira social-democracia e falta de idéias claras tem o apelido de plebiscito. Vários estrangeirismos...

Considero pura perda de tempo discutir-se por que o candidato da mudança foi derrotado.

A verdadeira pauta de discussão é o porquê da vitória conservadora, da maneira como ela se deu e com a consagração de que dispôs (nas condições brasileiras, a eleição majoritária em primeiro turno é consagradora, apesar das disfunções de todo o processo).

A transição conservadora que não pôde, em 1984, trilhar o caminho das urnas populares e que atabalhoadamente, em 1989, meteu-se pelo atalho da fanfarronice collorida, recuperou-se, recompôs-se e passou como um trator, um quebra-gelos, um trio elétrico.

O que temos pela frente?

A velocidade dos fatos e o caráter da vitória já anunciam um envelhecimento precoce do projeto. Como estarão as coisas durante o segundo turno das eleições nos estados? Como estarão as coisas em janeiro, com a posse e o novo Ministério? Todos os acertos já foram feitos e agora, com a rota traçada nas urnas, chega a hora dos problemas, das dificuldades, dos erros.

Nesta situação é essencial para a nova configuração do poder continuar atraindo o máximo de forças para seu campo, procurar isolar o mais possível os adversários e, desde já, apresentar soluções parciais positivas que mantenham amortecidas as contradições internas das forças que foram articuladas. É essencial nessa estratégia separar os partidos políticos de esquerda dos movimentos sociais, cooptar as lideranças de ambos, neutralizá-las e imprimir uma marca de governo com fatos consumados. Direita furiosa, esquerda perplexa ou vice-versa.

Não foi assim com a estratégia do Plano Real?

Muitas pessoas discutem o real, sua capacidade de atração e de difundir estabilidade, após julho. Mas não devem ser esquecidas suas duas fases anteriores, de dezembro de 1993 a janeiro de 1994 e de março a julho deste ano. Nestas duas etapas, a primeira das quais coincide com os estertores da revisão constitucional e a segunda com a introdução da URV (que "ancora" os salários), teria sido possível resistir à dinâmica do estelionato eleitoral, sem que a classe operária e os trabalhadores organizados se isolassem da população consumidora, pobre e esperançada. Nesta época, já tão distante, as ilusões de uma vitória certa da esquerda levavam muitos a pensarem "que um pouco de estabilidade não faria mal ao futuro presidente", esquecendo que estabilidade e mudança às vezes não se dão.

Com a nova moeda circulando e todo o aparato econômico, político e ideológico da classe dominante trabalhando a todo vapor para garantir nas urnas a moeda, o candidato, o plano e o projeto neoliberal, não sobrou alternativa eleitoral para as mudanças progressistas.

Feitos, entre o primeiro e o segundo turnos, balanços criteriosos da correlação de forças retratada pelas urnas, não sobram apenas problemas para os partidos de esquerda.

Eleitoralmente falando, numa situação como a nossa e em plena lua de mel entre moeda e massa, são fatos extremamente importantes o candidato de esquerda ter obtido um quarto dos votos não alienados, os partidos de esquerda melhorarem suas posições legislativas e poderem influir em vários segundos turnos previstos. Há no Brasil uma verdadeira, forte e articulada oposição.

Assim como para a coalizão vitoriosa o cobertor é curto entre as diversas opções de gestão do plano econômico e da política social, pode parecer que para a oposição de esquerda haja, também, uma escolha excludente entre "classe média" e "massas inorgânicas", entre "inteligência" e "interesses". Mas isto é um erro. Não há excludência entre o trinco e o ferrolho, eles se completam. Junto com a linha de resistência (a cobrança do programa vitorioso, os choques contra o programa vitorioso, a vigilância) deve se desenvolver a linha de avanço (a implantação de políticas abrangentes em consonância com os movimentos sociais e as massas organizadas, a conjugação da ação parlamentar e a ação dos movimentos, o exercício dos mandatos executivos, a luta pela plena cidadania).

Assim como foi vitorioso, o real plano a ser implementado, tem falhas. A mais gritante consiste na imensa expectativa que engendrou e na pobreza das soluções verdadeiramente democráticas que pode implementar.

Como o bobo do Rei Lear faço aqui uma profecia:

"Quando os padres forem mais virtuosos que sapientes;

Quando os cervejeiros colocarem água na cerveja;

Quando os nobres forem os mestres de seus alfaiates;

Quando as leis deixarem os heréticos em paz/

Para qualquer lugar deles queimar os galanteadores de rameiras;

Quando não mais houver processos mal julgados,

Escudeiros individuais, nem qualquer cavaleiro pobre;

Quando as calúnias não viverem nas línguas,

Nem batedores de carteira se misturarem com a multidão;

Quando os usurários contarem o outro em pleno campo;

E alcoviteiras e prostitutas construírem igrejas;

Então o reino de Albion

Cairá em grande confusão,

Virá, então, o tempo, quem viver verá;

Em que para andar, os pés serão usados."

João Guilherme Vargas Netto é consultor sindical, integrou o Grupo de Análise de Conjuntura da campanha Lula.