Cultura

sobre a redução das defesas de princípios gerais à proteção de interesses exclusivistas e individualizados

N. S. Naipaul, o escritor de origem hindu, é autor de uma das frases mais cruéis da literatura contemporânea: "Odeiem a opressão, mas temam os oprimidos". Apesar de rude, esta afirmação expressa uma reflexão sobre a redução das defesas de princípios gerais à proteção de interesses exclusivistas e individualizados.

As defesas de princípios gerais têm como referência fundamental a solução dos conflitos da sociedade e as reivindicações de direitos coletivos e individuais. Ocorre, algumas vezes, que essas defesas são reduzidas a uma proteção de interesses exclusivistas e, muitas vezes, corporativistas, o que pode ensejar resultados que se afastam, facilmente, dos objetivos de bem-social que a inspiram. Mesmo em circunstâncias em que essas reivindicações assumam um caráter individualista, pode ocorrer - e ocorre - que elas continuem sendo feitas em nome de interesses de ordem geral e coletiva. Ainda assim, o agente da ação reivindicatória, em razão do fato de proclamá-la em nome de interesses difusos de toda uma sociedade, adquire para si mesmo uma força e uma autoridade que são próprias das reivindicações coletivas e dos agentes que as expressam. Essa ação se torna extremamente vigorosa, porque é alimentada pela força de uma reivindicação social e, portanto, justa - pouco importando que o seja, ou não. O resultado disso é que uma força efetivamente indomável é posta em movimento, com o objetivo não mais de invocar proteções gerais, mas de impor comportamentos, estabelecer exigências e, em uma palavra, constranger.

Essas considerações são motivadas pelo debate atual sobre a criação de um tipo penal específico para as condutas que passaram a ser designadas, recentemente, como de "assédio sexual": essas tentativas surgem como manifestação da intolerância e produto do desejo de entregar ao aparelho do Estado competência cada vez mais repressiva, no terreno das relações individuais.

Não é possível vislumbrar, em uma perspectiva estritamente técnica, razões suficientes para a criminalização do assédio sexual, mesmo que não se possa retirar a razão de quem reage a uma prática que se desdobra, entre outras situações, no contexto das relações de emprego, mediante coações e constrangimentos que se baseiam no prevalecimento de cargos e funções. Na verdade, porém, a maior parte das condutas que podem ser compreendidas sob a designação de assédio sexual já estão, com toda a amplitude, previstas na lei penal. A previsão dos tipos penais correspondentes ao constrangimento ilegal, à ameaça, ao atentado violento ao pudor, ao atentado ao pudor mediante fraude, à posse sexual mediante fraude, à sedução, ao estupro, ao rapto violento ou mediante fraude, ao rapto consensual, ao ato obsceno e à corrupção de menores expressa a repressão da lei a toda gama de comportamentos que podem ser assimilados ao assédio sexual, sempre que este constitua uma conduta delituosa.

N. S. Naipaul, o escritor de origem hindu, é autor de uma das frases mais cruéis da literatura contemporânea: "Odeiem a opressão, mas temam os oprimidos". Apesar de rude, esta afirmação expressa uma reflexão sobre a redução das defesas de princípios gerais à proteção de interesses exclusivistas e individualizados.

As defesas de princípios gerais têm como referência fundamental a solução dos conflitos da sociedade e as reivindicações de direitos coletivos e individuais. Ocorre, algumas vezes, que essas defesas são reduzidas a uma proteção de interesses exclusivistas e, muitas vezes, corporativistas, o que pode ensejar resultados que se afastam, facilmente, dos objetivos de bem-social que a inspiram. Mesmo em circunstâncias em que essas reivindicações assumam um caráter individualista, pode ocorrer - e ocorre - que elas continuem sendo feitas em nome de interesses de ordem geral e coletiva. Ainda assim, o agente da ação reivindicatória, em razão do fato de proclamá-la em nome de interesses difusos de toda uma sociedade, adquire para si mesmo uma força e uma autoridade que são próprias das reivindicações coletivas e dos agentes que as expressam. Essa ação se torna extremamente vigorosa, porque é alimentada pela força de uma reivindicação social e, portanto, justa - pouco importando que o seja, ou não. O resultado disso é que uma força efetivamente indomável é posta em movimento, com o objetivo não mais de invocar proteções gerais, mas de impor comportamentos, estabelecer exigências e, em uma palavra, constranger.

Essas considerações são motivadas pelo debate atual sobre a criação de um tipo penal específico para as condutas que passaram a ser designadas, recentemente, como de "assédio sexual": essas tentativas surgem como manifestação da intolerância e produto do desejo de entregar ao aparelho do Estado competência cada vez mais repressiva, no terreno das relações individuais.

Não é possível vislumbrar, em uma perspectiva estritamente técnica, razões suficientes para a criminalização do assédio sexual, mesmo que não se possa retirar a razão de quem reage a uma prática que se desdobra, entre outras situações, no contexto das relações de emprego, mediante coações e constrangimentos que se baseiam no prevalecimento de cargos e funções. Na verdade, porém, a maior parte das condutas que podem ser compreendidas sob a designação de assédio sexual já estão, com toda a amplitude, previstas na lei penal. A previsão dos tipos penais correspondentes ao constrangimento ilegal, à ameaça, ao atentado violento ao pudor, ao atentado ao pudor mediante fraude, à posse sexual mediante fraude, à sedução, ao estupro, ao rapto violento ou mediante fraude, ao rapto consensual, ao ato obsceno e à corrupção de menores expressa a repressão da lei a toda gama de comportamentos que podem ser assimilados ao assédio sexual, sempre que este constitua uma conduta delituosa.

O projeto de lei sobre a criminalização do assédio sexual, em tramitação no Congresso Nacional, define o crime como "constranger, por meio de palavras ou gestos, mulher ou homem, com o intuito de obter favorecimento ou vantagem sexual" (assédio verbal) e "empregar meios físicos mediante violência, grave ameaça, fraude ou coação psicológica, para constranger mulher ou homem à prática de atos sexuais" (assédio físico). Essas hipóteses, com todo o rigor, já são correspondidas por alguns dos tipos penais já referidos, entre eles o constrangimento ilegal, que significa "constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou fazer o que ela não manda"; ou o crime de ameaça, vale dizer, "ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave". Tipificações penais referentes a condutas mais específicas, como os crimes contra a liberdade sexual (estupro, atentado violento ao pudor, posse sexual mediante fraude e atentado ao pudor mediante fraude) e os crimes de sedução e corrupção de menores, somam-se a todos demais para consolidar o conjunto de previsões legais que abrange, com toda a certeza, as hipóteses de assédio sexual verbal ou físico, sempre - vale insistir - que essa conduta invada o terreno da delinqüência. O assédio, praticado sem o emprego de qualquer daqueles meios previstos na lei penal, como a ameaça, a coação, o constrangimento, ou a violência, por nenhum motivo pode ser considerado uma conduta delituosa, situando-se, antes disso, no âmbito das relações individuais e dos conflitos que lhes são inerentes.

A criação de um tipo penal reiterativo e coincidente com hipóteses já previstas na lei, por essas razões, é inócua. Não somente isso, é também excessiva e socialmente danosa. Para superar a questão da sua sobreposição aos tipos penais já existentes, a nova criminalização necessita recorrer a tipificações de conduta que invadem terrenos nos quais os conflitos próprios das relações entre as pessoas devem ser resolvidos sem a mediação ou intromissão de juízes, promotores e policiais. É cabível considerar que a reiteração, na lei penal, do que nela já está previsto e reprimido corresponde, de fato, a uma exacerbação da atividade repressiva dos aparelhos públicos; e, também, que a ampliação de toda essa ressonância do assunto parece resultar de um desejo crescente de invasão da esfera de comportamentos individuais com a imposição de constrangimentos.

É necessário que se reflita sobre os processos que têm conduzido muitas pessoas, frente a questões que ora dizem respeito ao combate à opressão em suas diferentes formas, ora não passam de uma inclinação por interferir pelo desejo de interferir, a extremarem as suas exigências particulares por um viés autoritário e policialesco. Tudo isso está relacionado a alguns processos de deformação dos manifestos de vontades populares, que em muitos casos conduzem grupos que são vítimas potenciais de alguma opressão, ou quem em seu nome se pronuncie, a brandirem suas ameaças e exigências de um modo arbitrário. Essas exacerbações são freqüentes em inúmeras formas atuais de manifestação coletiva, como muitas das que ocorrem sob a inspiração do polictical correctness, que trazem a contrapartida de transpor para quem se diz, ou é, de fato, vítima potencial de uma conduta opressiva, o papel de agente de um autoritarismo equivalente ao que visa combater.

Samuel Mac Dowell é advogado.