Sociedade

Há 20 anos a viúva do metalúrgico Manoel Fiel Filho, morto sob tortura no Doi, aguarda justiça

Já se passaram 19 anos da morte de seu pai, o metalúrgico Manoel Fiel Filho, durante uma sessão de torturas nas dependências do DOI-Codi, e muita coisa mudou na vida de Tereza e suas filhas. São quase 20 anos de luta diária pela vida, e para que a União pague a indenização que deve à viúva - cerca de R$ 260 mil.

Ela abre a pesada porta de ferro batido e vidro do prédio antigo na rua do Oratório, onde no térreo funciona uma loja de carros usados. Toma fôlego para subir as escadas, mas no segundo lance é impossível não se cansar. Perto da porta do modesto apartamento alugado onde vive, pára, toma um pouco de ar e diz:

- Não é fácil subir e descer essas escadas, e eu já não sou moça...

Tereza de Lourdes Martins Fiel tem 62 anos. Ainda fala com sotaque característico, filha de portugueses que é, nascida e criada na região da Moóca, zona Leste de São Paulo.

- Gosto muito desse lugar, não saberia viver em outro canto.

Na sala de móveis simples, Márcia de Fátima, 35 anos, a filha mais nova, segura o "xodó" da família, o neto de quatro meses de Tereza. Ela mora num apartamento no mesmo prédio. Maria Aparecida, 39 anos, a outra filha, tem dois filhos já moços, também vive na Moóca, no sobrado da Vila Guarani em que morava a família.

Já se passaram 19 anos da morte de seu pai, o metalúrgico Manoel Fiel Filho, durante uma sessão de torturas nas dependências do DOI-Codi, e muita coisa mudou na vida de Tereza e suas filhas. São quase 20 anos de luta diária pela vida, e para que a União pague a indenização que deve à viúva - cerca de R$ 260 mil. Enquanto isso, ela vive de uma pensão do INSS de R$ 330,00, e da aposentadoria como funcionária da Febem de R$ 450,00. Paga R$ 390,00 de aluguel pelo apartamento. Apesar de tudo, Tereza continua decidida:

- Não vou sossegar enquanto não for feita justiça.

Pelo jeito, está difícil. Agora, em vez dos militares, ela tem contra si a burocracia governamental e a falta de vontade política dos inquilinos do poder. Em 1980, a União foi condenada a pagar seis salários mínimos mensais a Tereza, reconhecendo a responsabilidade pela morte do operário. O governo recorreu três vezes, e perdeu todas elas. No início de setembro deste ano, a União interpôs recurso mais uma vez - manobras apenas protelatórias já que a causa está ganha por Tereza em todas as instâncias. A grande ironia é o fato do atual presidente ser Fernando Henrique Cardoso, naquela ocasião sociólogo e amigo dos integrantes da Comissão de Justiça e Paz, e de José Gregori, um dos advogados da CJP e defensor de presos políticos, que hoje chefia o gabinete do Ministério da Justiça. Gregori chegou a anunciar a Tereza que o governo desistiria de novos recursos, e inventaria uma fórmula para pagar o devido. Apenas uma assinatura poderia ter acabado com a agonia de quase 20 anos da viúva. Mas isso não aconteceu, e Tereza comenta:

- Sinto vergonha de ser brasileira, e digo que a democracia ainda não chegou aos trabalhadores. Mas não vou desistir, só se morrer.

Apesar do clima de medo e repressão dos tempos da ditadura militar, ela resolveu agir logo depois de Manuel Fiel Filho ter saído da empresa Metal Arte, às 9h00 da manhã do dia 16 de janeiro de 1976, acompanhado por dois agentes do Dops, que à tarde do mesmo dia o conduziram até em casa, revistando o quarto do casal, o da filha solteira e o quartinho dos fundos. Manuel, ao sair, tranquilizou-a dizendo que voltaria logo, mas havia muitos motivos para sobressalto. Ela viu uma arma sob o jornal que os homens carregavam, e ouvi-os dizer: "Seu Manoel, o senhor teve sorte, não encontramos nenhuma prova."

Mesmo recomendada pelos dois a não dizer nada para ninguém, nem mesmo para as filhas e os parentes, pediu ajuda a um conhecido do bairro que trabalhava no Dops, para tentar localizar Manoel. Ele fez vários telefonemas, disse que o metalúrgico estava incomunicável na Operação Bandeirantes, e que não adiantaria nada alguém ir até lá.

Tereza procurou uma delegacia de polícia, na avenida Celso Garcia, explicou que o marido tinha sido seqüestrado. Ninguém quis fazer a ocorrência. Ela não conseguiu pregar os olhos nessa noite. No dia seguinte, correu para a porta assim que ouviu um carro estacionar. Um homem alto, forte e bem vestido desceu, perguntou se ela era a mulher de Manuel Fiel Filho, disse ser do Hospital das Clínicas e informou secamente que Manoel se suicidara. Jogou na calçada um saco plástico de lixo contendo as peças do uniforme da Metal Arte que o operário vestia, menos suas meias. Junto com o saco, os documentos e uma nota de 10 cruzeiros num envelope timbrado do Exército. Tereza gritou:

- Vocês o mataram, vocês o mataram...

Na madrugada de domingo, um irmão do operário foi ao Instituto Médico Legal para liberar o corpo. Os funcionários negaram que ele estivesse ali, mas diante da insistência, acabaram por admitir. Havia ordens para que ninguém visse o corpo, que o enterro saísse dali e que a família não fosse avisada. Durante a madrugada, o irmão do operário foi obrigado a negociar a saída do corpo para a capela da Igreja N. Sra de Lourdes, no Belém. Os funcionários e três policiais impuseram uma condição para liberá-lo: de que o velório não durasse mais de duas horas e não houvesse "nenhum escândalo em torno deste caso". O corpo seguiu para a capela às 6h30. No velório, havia muitas pessoas estranhas à família, militares à paisana, sempre próximos às rodas de conversa, observando. O enterro se realizou às 8h00, mas antes, os parentes pressionaram pela abertura do caixão: o corpo apresentava um grande corte do queixo até a garganta, sinal de autópsia quando a morte é por suicídio. Seus dentes estavam cerrados e a filha mais nova percebeu manchas nos pulsos, na cabeça e no pescoço.

Tereza não tinha mais lágrimas para chorar. Parentes levaram-na e às suas filhas para fora de São Paulo. Dias depois, um comunicado do 2º Exército informava que o caso "seria investigado". A investigação durou 20 dias, concluindo pelo "suicídio". Tereza foi interrogada a portas fechadas, e sentiu-se muito pressionada.

- Acabei assinando meu depoimento mesmo sem ler, pois eu chorava tanto que não conseguia ler o que tinha sido registrado, e nem prestar atenção ao que era lido.

Nunca recebeu qualquer documento com o resultado do inquérito: ficou sabendo de sua conclusão pelos jornais. Durante o inquérito, conduzido pelo tenente-coronel Murilo Alexander, este lhe contou como Manoel se "suicidara": o depoimento prestado pelo operário, acusado de distribuir o jornal clandestino "Voz Operária" do Partido Comunista Brasileiro, estava pronto, mas como era hora do almoço, ele teria sido trancado numa cela e se suicidara com as próprias meias. Tereza ainda teve de agüentar a demonstração feita por outro oficial com as suas meias, atando-as com um nó em torno do pescoço. Mas ela não se conteve: não era estranho que o jornalista Vladimir Herzog tivesse morrido da mesma forma? Alexander respondeu que o jornalista morrera por que era "covarde", mas que Manoel "era um homem bom, mas envergonhado, talvez temesse a demissão da empresa ou a vergonha dos familiares por causa de sua prisão".

Tereza nunca acreditou nisso. Conversou muito com amigos, colegas, com o diretor da Metal Arte, onde Manoel trabalhou por 19 anos, que fez muitos elogios ao operário, lastimando o ocorrido. Descobriu que os desconhecidos que levaram Manoel procuraram na lista de funcionários um tal de Fiore. O nome mais próximo era Fiel.

Depois da morte de Manuel, Tereza desaprendeu a sorrir. Por quase três anos, a família ficou em silêncio, com medo. Mas Tereza não conseguia sossegar:

- Eu precisava saber como tudo aconteceu, por que ele não ia se enforcar, ele não era louco...

Até que ela soube que a viúva de Vladimir Herzog recebera decisão judicial responsabilizando a União pela morte do jornalista. Foi até a Comissão de Justiça e Paz, em 7 de novembro de 1978, e por mais de três horas depôs perante cinco advogados sobre as circunstâncias da morte do marido. Contou tudo que havia acontecido, e enfatizou o temperamento calmo de Manoel Fiel Filho, dizendo que ele nunca se mostrara angustiado, ou se envolvera em algum acidente que pudesse conduzi-lo ao suicídio, como os militares queriam fazer crer.

A ação, responsabilizando a União pela morte do operário, foi iniciada em abril de 1979. O depoimento de Tereza foi encaminhado, juntamente com a cópia do laudo de exame necroscópico do cadáver do operário, feito pelo Instituto Médico Legal de São Paulo, cuja conclusão era de morte por estrangulamento. Foi incluído o depoimento de um dos peritos, afirmando que casos de estrangulamento são, em geral, casos de homicídio e não de suicídio, e que a morte de Manoel Fiel Filho seria sui generis na Medicina, o primeiro auto- estrangulamento que ele vira em 20 anos de profissão.

A ação foi apresentada pelos advogados Marco Antonio Barbosa, Samuel McDowell Figueiredo e Sérgio Bermudes, o mesmo trio que ganhou a causa responsabilizando a União pela morte do jornalista Vladimir Herzog. Eles também anexaram depoimentos de presos que estiveram no DOI-Codi, além de argumentarem contra a credibilidade da versão do suicídio, usando os laudos necroscópicos e os fatos da época. A demissão do então comandante do 2º Exército, Ednardo D'Ávila Melo, no dia seguinte à morte do operário, era um sinal de reconhecimento do governo do que estava acontecendo no DOI-Codi. A demissão do general foi um divisor de águas: a impunidade dos torturadores estava acabando.

Aí começa o processo que já dura quase 20 anos, e principia a agonia de Tereza e de suas duas filhas. Ela voltou a trabalhar, para sustentar a casa. Em maio de 1980, o Superior Tribunal Militar negou a reabertura do inquérito, mas Tereza não desistiu. Ao saber da notícia, chorou, mas reafirmou sua vontade de continuar a batalha jurídica. Em 1980, a Justiça Federal condenou a União a pagar pela morte do operário, mas três governos sucessivos recorreram. Esperava-se que neste, tudo seria diferente, mas não foi: no dia 29 de agosto, a Procuradoria Geral da República recorreu pela quarta vez contra a decisão da Justiça. O pagamento de uma pensão de R$ 600,00 por mês e mais a indenização em parcelas ficou para 1998, caso os advogados da viúva consigam anexar toda a papelada necessária ao processo, que já tem mais de 200 pastas.

O caso continua um problema político, na opinião da filha de Fiel Filho, Márcia de Fátima:

- Não é mais uma questão de direito, agora é um problema político: depende apenas da boa-vontade do presidente da República e do ministro da Justiça decidirem não recorrer mais. Veja: tanta gente morreu naquela época por que discordava dos militares. Hoje, todo mundo pode se expressar livremente, aquele período foi um verdadeiro absurdo. É outro absurdo o que está acontecendo hoje.

Tereza comenta:

- Se Fernando Henrique tivesse boa-vontade, não apelava mais. Porque ele já sofreu a mesma coisa, deveria pensar em concluir isso de uma vez. Sossegava ele e nós também... Acho que eles estão esperando eu morrer. Mas, eu não morro sossegada enquanto não for concluído esse processo. Minha família é toda revoltada com o que aconteceu e por terem ficado protelando tanto.

Ela continua:

- O presidente outro dia estava falando na televisão: que o Rubens Paiva era muito amigo dele, que o Herzog era ex-aluno dele. Um porque era amigo e o outro, porque era aluno, ele lembrou. Mas, porque meu marido era metalúrgico, um operário, ele não lembrou. O operário não é valorizado. Mesmo com as lutas dos metalúrgicos, com tudo disso. Menos prezar. Não está certo.

Jô Azevedo é jornalista.