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Com sua proposta de reforma da previdência, o governo pretendia atirar nos aposentados e nos trabalhadores em geral, mas a primeira vítima desta operação foi a democracia

Com sua proposta de reforma da previdência, o governo pretendia atirar nos aposentados e nos trabalhadores em geral, mas a primeira vítima desta operação foi a democracia. Para fazer aprovar, em primeira votação, esta reforma, o presidente da Câmara rasgou o Regimento Interno (RI), que proíbe a apresentação de emendas de plenário a uma proposta de emenda constitucional. Não sem motivos o RI estabelece: "Somente permite a Comissão Especial poderão ser apresentadas emendas, com o mesmo quorum mínimo (um terço) de assinaturas de deputados e nas condições referidas no inciso II do artigo anterior, nas primeiras dez sessões do prazo que lhe está destinado para emitir parecer".

Apesar da clareza deste dispositivo, a maioria governista articulou uma emenda aglutinativa que teve como autor e, curiosamente, como relator, o deputado Michel Temer (PMDB-SP). Este parlamentar cumpriu sua triste missão, mas não estava só. Tinha atrás de si a cumplicidade do presidente da Câmara, que se prestou ao papel de distribuir, na residência dos deputados, na madrugada do dia da votação, cópias da tal emenda aglutinativa da reforma da previdência. Estas cópias continham artigos manuscritos e que seguramente sequer foram lidos pela maioria dos deputados.

Mas a truculência e as agressões ao Regimento não foram os únicos instrumentos usados para a aprovação da reforma da previdência. Também o fisiologismo foi largamente utilizado. Pelo menos cinqüenta deputados que haviam votado contra o parecer anterior, do deputado Euler Ribeiro, e portanto contribuído para sua rejeição, mudaram de posição mediante liberação de verbas para seus estados, nomeações e ameaças de demissões de aliados políticos. O estado do Rio Grande do Sul e o município de São Paulo foram contemplados com a suspeitíssima generosidade da federalização de suas dívidas. De quebra, parece também certo que Paulo Maluf obteve ainda a promessa de um ministério para seu PPB.

Ao festival de atropelos deve ser acrescentada a intenção casuística do governo de alterar o Regimento Interno da Câmara dos Deputados, reduzindo drasticamente a possibilidade dos partidos de oposição apresentarem Destaques para Votação em Separado (DVS), o que constituiria uma séria limitação das possibilidades de ação da oposição no parlamento. Tampouco deve passar desapercebido o pedido de urgência urgentíssima para a tramitação de um projeto de lei de imprensa, assinado pelos líderes governistas. Esta iniciativa tem a clara intenção de intimidar os meios de comunicação, como vingança pelo destaque concedido à farra fisiológica. Também são significativas as declarações fujimorizantes atribuídas ao presidente da República por aliados do governo.

Tudo isso significa, inclusive, ameaças às liberdades democráticas até aqui conquistadas. A aplicação do projeto neoliberal, que concentra riquezas nas mãos de poucos e aprofunda o apartheid social, terminará por exigir restrições às liberdades públicas. A imposição destas restrições será tanto mais fácil quanto menor for a mobilização do povo. Daí a necessidade de investir alto na mobilização em torno de temas capazes de sensibilizar setores importantes da sociedade, como é o caso da reforma da previdência e da criação da CPI dos Bancos. Pois, se com mobilização dos trabalhadores, a atuação de uma oposição de esquerda no parlamento já é difícil, muito mais difícil será na ausência de movimentos de massa. Com efeito, sem ela a oposição parlamentar tende a girar no vazio.

A Previdência como ela é

Ninguém desconhece a péssima qualidade da Previdência brasileira.

Isto está longe de ser obra do acaso. Boa parte do capital destinado à previdência não chega a seus cofres. Esse dinheiro é desviado por diferentes meios: sonegação, apropriação indébita ou retenção. Fora isso, parte do que é arrecadado é dilapidado em razão de fraudes ou de atos administrativos irresponsáveis, que malbaratam o patrimônio da previdência. Para fazer face a esta situação, o governo teria que se armar de vontade política para combater a corrupção e, pelo menos, fazer concursos para fiscais, de forma que a previdência tivesse uma equipe eficaz para dar conta da fiscalização. O governo faz exatamente o contrário. Não preenche os cargos de fiscais de modo a facilitar a vida dos sonegadores. Parece certo que quadrilhas de fraudadores, como aquela comandada por Cesar Arieta, só podem funcionar porque contam com cumplicidades bem situadas na cúpula da Previdência.

Uma medida importante seria a regulamentação das contribuições dos trabalhadores rurais. E para isso não é necessária qualquer alteração constitucional. Bastaria instituir uma contribuição a ser paga por quem pode, os ricos. Mas é justamente isso que o governo não quer. Não é por acaso que Fernando Henrique renegou seu próprio projeto de regulamentação do imposto sobre grandes fortunas.

Conteúdo da reforma

O objetivo visível da proposta de reforma do governo é desconstitucionalizar os direitos dos trabalhadores a fim de melhor golpeá-los. Atrás disso está presente a intenção de abrir espaço para as seguradoras expandirem seus negócios com previdência privada. O pretexto utilizado é de que a estatística brasileira inviabiliza a previdência, já que a proporção ideal seria de quatro trabalhadores ativos para um aposentado - como ocorre nos Estados Unidos -, enquanto no Brasil o perfil demográfico e a situação do mercado de trabalho acarretam uma proporção de dois trabalhadores ativos para um aposentado.

Cabe registrar que nosso problema não é de perfil demográfico. O Brasil tem de fato esta proporção de quatro ativos para um aposentado. O problema é que metade de nossa mão-de-obra potencialmente ativa está desempregada ou na informalidade. Mas, para fazer face à situação, o governo, antes de propor medidas que se destinem a aumentar o grau de formalização das relações de trabalho - para assim aumentar a capacidade de arrecadação da previdência -, segue justamente o caminho oposto: de um lado, estimula a informalização das relações de trabalho, que tem como um dos efeitos a redução das contribuições para a previdência; de outro, adota políticas de juros e de abertura indiscriminada às importações que acabam desestimulando a atividade produtiva e, ato contínuo, gerando desemprego.

Esta política governamental está presente não só no apoio explícito das autoridades federais ao ilegal contrato especial de trabalho firmado entre a Fiesp e o Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo. A proposta de mudança do conceito de tempo de serviço por tempo de contribuição, presente no projeto do governo, é de uma crueldade calculada. Enquanto estimula o estabelecimento de relações informais de trabalho, este governo propõe que a aposentadoria só seja concedida a quem manteve relações formais de trabalho por 35 anos. Ou seja, na prática o governo quer eliminar o direito à aposentadoria de milhões de trabalhadores, sobretudo dos setores de salários mais baixos, que são os mais expostos à rotatividade e que freqüentam com mais assiduidade o mercado informal. Na porta do inferno neoliberal de Fernando Henrique Cardoso cabe o verso: Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate.

Com relação aos servidores públicos, o governo adota o discurso collorido da denúncia dos marajás. Com isso pretende obscurecer o fato de que paga mal à maioria de seus funcionários e nada faz para combater os privilégios reais. Pelo contrário, sua proposta de reforma administrativa visa justamente legalizar privilégios, eliminar o mérito como critério de acesso ao serviço público e consagrar o clientelismo das contratações por indicação. O direito dos servidores à aposentadoria por tempo de serviço com salário integral é apresentado como um descabido privilégio, quando o correto seria fazer com que todos os trabalhadores tivessem este mesmo direito.

A campanha contra os servidores procura esconder que a contribuição do servidor para a sua aposentadoria não está sujeita ao teto do regime geral, incidindo sobre a totalidade dos seus ganhos. Isto, hoje, permite que o benefício seja totalmente coberto pelas contribuições, nas mesmas bases atuais do regime de repartição do regime geral de previdência. Meticulosa, a proposta do governo procura ainda impor restrições aos direitos dos servidores, como limite de idade para aposentadoria, inexistente para o setor privado; tempo mínimo no cargo e no serviço público; e extinção da aposentadoria proporcional.

A proposta do governo para os trabalhadores rurais em regime de economia familiar parece uma referência aos Condenados da Terra, de Fantz Fanon. O tempo de serviço neste regime, pretende o governo, só contaria para aposentadorias de um salário mínimo. Isso porque o relatório aprovado na Câmara atribui à lei complementar - nada mais cômodo - a competência para determinar as regras desse jogo. Trata-se de um evidente estímulo ao êxodo rural e ao aumento das - tensões na periferia das cidades, mas é também o testemunho do espírito escravista do governo FHC.

O governo não quer alterar significativamente a gestão da previdência. Sua proposta recusa a vinculação das receitas da seguridade social a seus fins específicos, como recusa também que sua arrecadação e administração sejam realizadas por um órgão próprio do sistema. Ficam mantidos, assim, os desvios de recursos pelo Tesouro Nacional. O governo tampouco está interessado na participação dos trabalhadores nos órgãos de gestão da previdência. É por isso que remete para lei ordinária as regras da participação de trabalhadores, aposentados e empregadores na gestão da previdência. Cabe ressaltar que uma lei ordinária é de tal modo fácil de ser alterada que até uma Medida Provisória pode fazê-lo. Para que não restem dúvidas sobre seus vínculos, o governo rejeitou a proposta de quebra do sigilo de dados para fins de fiscalização. Deixa claro assim seus compromissos com os sonegadores.

Fiel à tática collorida, o governo centra sua propaganda na chamada eliminação dos privilégios dos servidores. Isto é mentira. A proposta aprovada mantém a acumulação de proventos ou remunerações com os ganhos dos cargos comissionados, fonte de distorções e amontoamentos que incentivam as aposentadorias precoces, que o governo, afinal, diz combater.

A proposta aprovada mantém ainda, em que pese toda mis-èn-scène, os institutos de previdência de parlamentares (IPCS) e de detentores de cargos eletivos.

Finalmente, o governo pretende colocar obstáculos à contagem recíproca de tempo de contribuição, que permite que o servidor público conte o tempo em que trabalhou no setor privado para fins de aposentadoria. A manutenção desse direito é condição indispensável à garantia do acesso de todos ao serviço público, independentemente da idade. Fosse de outra forma e o Estado estaria oficialmente discriminando cidadãos sem resolver qualquer problema relativo ao custeio dos benefícios, já que em nenhum momento o governo quis discutir seriamente critérios para a compensação financeira entre os diferentes regimes de previdência, apenas limitando-se a propor a supressão desta regra constitucional.

O governo ganhou um round na batalha da previdência. Mas pagou um alto preço moral. Teve suas entranhas devassadas, mostrou em público seus vícios privados. Isto sugere que ainda há campo para a resistência dos trabalhadores na trincheira dos direitos previdenciários, e não deixa dúvidas de que, mais cedo do imaginam os algozes dos aposentados, a questão de uma reforma da previdência, destinada a promover justiça social, voltará com toda a força à ordem do dia, pois o sistema como está, ou como estará depois de piorado pela reforma FHC, não se sustenta e exigirá a curto prazo uma reforma séria.

Sandra Starling é deputada federal pelo PT-MG e líder da bancada na Câmara Federal.

Humberto Costa é deputado federal pelo PT-PE.