Economia

A transnacionalização do capital compromete irremediavelmente a capacidade da periferia controlar os fins e os meios do desenvolvimento capitalista. Nessas condições, a aceitação da dependência significa uma opção deliberada pela barbárie. A ruptura radical com as forças que sustentam a modernização conservadora é a única forma de tirar o país de um beco sem saída

Existem certas idéias que, de tanto serem repetidas, acabam ganhando foro de verdade absoluta. E o que ocorre com a noção de que as economias dependentes devem se curvar diante da inelutabilidade da globalização e, para seu próprio bem, ajustar-se o mais rapidamente possível às exigências do sistema capitalista mundial.

Segundo essa concepção, o raio de manobra das economias atrasadas se limita à definição do ritmo e da intensidade de assimilação das transformações irradiadas pelo capitalismo central. É em torno dessa agenda política que se trava o braço de ferro entre modernizadores e conservadores - as duas facções que compõem as classes dominantes do capitalismo dependente.

Os grupos econômicos e sociais mais estreitamente articulados às novas tendências do capitalismo internacional lutam pela "globalização já". Ansiosos por aproveitar as novas oportunidades de negócios, não querem perder tempo. Contando com amplo apoio da comunidade internacional, colocam as exigências do mercado acima de tudo. Os segmentos que não dispõem de condição de sobreviver à concorrência externa não têm pressa. Exigem tempo para que possam se adaptar aos novos ventos do capitalismo. Batem-se por uma modernização "lenta, segura e gradual".

Os arautos da modernização radical encarnam os sonhos da burguesia dependente de rápido acesso ao Primeiro Mundo; os defensores da modernização responsável cristalizam seu espírito de sobrevivência. Os primeiros funcionam como acelerador do desenvolvimento induzido; os segundos, como seu freio. Sem os globalizados, a economia periférica estagna, pois é impulsionada pelos dinamismos que se propagam das economias centrais. Sem os jurássicos, ela perde todo poder de barganha em relação ao grande capital internacional, pois fica sem condições de controlar seus "centros internos de decisão".

Na prática, as duas facções devem ser vistas como os braços direito e esquerdo do desenvolvimento dependente. Os ultramodernistas sabem que não podem eliminar o atraso sem levar ao paroxismo a instabilidade econômica e social; e os pseudo conservadores que, dentro da dependência, não é possível resistir para sempre as imposições que vêm de fora para dentro. Apesar de se situarem em pólos opostos, ambos concordam em relação a uma questão fundamental: a combinação do moderno e do atraso constitui o único meio das regiões periféricas participarem dos ritmos desiguais do desenvolvimento capitalista. Por isso, não podem romper com as estruturas externas e internas responsáveis pela reprodução do capitalismo dependente. Não é de estranhar a incapacidade das classes dominantes para contemplar nas suas políticas os interesses dos segmentos marginalizados do progresso econômico. Os modernizadores, que tanto vociferam a favor das reformas liberais, revelam-se empedernidos conservadores quando se trata de enfrentar as reformas agrária e urbana. Os conservadores, que tanto gritam em defesa da identidade nacional, descartam qualquer reforma que ameace seu acesso aos padrões de vida e consumo das economias centrais. Qualquer alternativa fora dos parâmetros da modernização conservadora é tachada de fundamentalismo e imediatamente descartada sob a alegação de que provocaria o caos econômico, social e político. Assim, as classes dominantes constroem a sua própria versão do "fim da história".

O dilema globalização ou dilúvio não passa, no entanto, de um simplório sofisma. Primeiro, porque nada garante que a subordinação às tendências do sistema capitalista mundial livre as economias periféricas de processos caóticos de desorganização produtiva. O impacto da chamada globalização depende das características específicas do desenvolvimento desigual do capitalismo e de seus efeitos sobre as estruturas de cada formação social. Segundo, porque o reconhecimento da transnacionalização do capitalismo como realidade histórica, cuja existência extrapola o controle de nações individuais, não significa que as sociedades estejam condenadas a ajustar-se passivamente às suas exigências. O Estado nacional pode selecionar as tendências que pretende absorver e bloquear aquelas que considera nocivas para seu desenvolvimento.

Crepúsculo do Estado nacional burguês

A partir de meados da década de 70, o aprofundamento da transnacionalização do capitalismo desencadeia uma série de conflitos econômicos e políticos que começam a minar as bases do Estado nacional burguês. No campo econômico, o cerne do problema decorre da dificuldade de conciliar o caráter predatório da concorrência e a crescente mobilidade dos capitais com a capacidade da sociedade nacional para preservar o controle sobre os centros internos de decisão e reproduzir os mecanismos de solidariedade orgânica entre as classes sociais. No plano político, a questão central é que a disputa pelo monopólio das novas tecnologias e a luta pelo controle dos mercados mundiais acirram perigosamente as rivalidades entre os Estados nacionais, provocando uma encarniçada concorrência pela atração de investimentos, produtivos e empregos industriais.

Sem questionar os processos responsáveis pela transnacionalização do capitalismo, os países centrais procuram amenizar suas conseqüências mais nefastas, lançando mão de políticas neomercantilistas que acabam acirrando ainda mais o estado de guerra econômica. De um lado, esforçam-se para transformar o espaço econômico ao qual se vinculam em base estratégica da concorrência intercapitalista em escala mundial. Daí, a corrida desenfreada para aumentar a estabilidade da moeda, a produtividade da força de trabalho e a qualidade da infra-estrutura econômica. De outro lado, tentam redimensionar a importância relativa de seus mercados internos e suas fronteiras econômicas, promovendo diferentes estratégias de integração regional, e criando diversos mecanismos supranacionais de política econômica. O resultado é a formação de três grandes blocos econômicos - o Nafta, liderado pelos Estados Unidos; a União Européia, que se organiza em torno da Alemanha; a Bacia Asiática, que se aglutina tendo como pólo o Japão.

Se os países desenvolvidos ainda possuem alguma capacidade de atenuar os efeitos mais destrutivos da transnacionalização, reforçando a escala de suas economias e ampliando o alcance de suas estruturas estatais, as tendências que levam ao estilhaçamento dos Estados nacionais manifestam-se de maneira devastadora nas regiões periféricas, onde não há possibilidade de fuga para frente.

O problema central é que o novo contexto histórico reduziu dramaticamente o grau de liberdade da burguesia dependente diante do capital internacional. E isto por um motivo claro. Como as empresas transnacionais passaram a operar com tecnologias ainda não amortizadas - concebidas para mercados supranacionais, com renda média muito elevada -, a natureza de seus vínculos com as economias dependentes tornou-se muito mais fluida. A situação é bem diferente daquela que ocorrera na fase final de difusão da Segunda Revolução Industrial. Naquela época, a política de conquista dos mercados internos levava o capital internacional a exigir um espaço econômico bem delimitado. Tratava-se, então, de evitar que as unidades produtivas deslocadas para a periferia sofressem a concorrência de produtos importados. Na era da mundialização, estamos assistindo a um fenômeno muito diferente. O objetivo das grandes empresas transnacionais é diluir a economia dependente no mercado global para que possam explorar a potencialidade de negócios dessas regiões sem sacrificar sua mobilidade espacial. Por isso, não querem que as fronteiras nacionais continuem rigidamente delimitadas. O interesse no Terceiro Mundo se resume a:

- ter livre acesso aos mercados da periferia (não importando se eles serão atendidos com produtos importados ou com produção local);

- dispor da máxima flexibilidade para aproveitar as potencialidades de cada região do globo como plataformas de exportações que requerem mão-de-obra barata;

- açambarcar das mãos do capital nacional, público ou privado, os segmentos da economia que possam representar bom negócio.

Se isso não fosse suficiente, o colapso da União Soviética diminuiu dramaticamente o poder de barganha dos países periféricos no sistema capitalista. Sem medo do fantasma comunista, as nações hegemônicas ficariam inteiramente livres para desrespeitar os princípios mais elementares de autodeterminação dos povos. Isso explica a desfaçatez com que grandes potências pressionam, direta e indiretamente, as economias dependentes a se adaptar incondicionalmente às suas exigências. Não estamos mais na época da Aliança para o Progresso, quando a industrialização subdesenvolvida era tida como um antídoto da revolução socialista e às grandes potências capitalistas necessitavam de burguesias dependentes relativamente fortes e bem estruturadas. Na nova ordem, o desenvolvimento nacional não está mais no horizonte de possibilidades dos países periféricos. A comunidade internacional decretou o fim do subdesenvolvimento e reduziu tudo que estiver fora dos megablocos regionais a cobiçados mercados emergentes ou reles zonas de pobreza. Cabem à periferia fundamentalmente três papéis no sistema capitalista mundial:

- franquear seu espaço econômico à penetração das grandes empresas transnacionais;

- coibir o aparecimento de correntes migratórias que possam causar instabilidade nos países centrais;

- aceitar a triste e paradoxal função de pulmão e lixo da civilização ocidental.

O espectro da reversão neocolonial

Expostas à fúria da globalização e ao arbítrio dos países ricos, as sociedades dependentes ficaram sujeitas a mecanismos draconianos de neocolonização. Três processos são suficientes para caracterizar a perversidade da nova dependência.

Primeiramente, a difusão desigual do progresso técnico aumentou a defasagem tecnológica das economias atrasadas. A impossibilidade de suportar a concorrência internacional deixou a periferia extremamente vulnerável a processos catastróficos de desestruturação produtiva. Encontra-se aí, em última instância, a origem das forças disruptivas que, desde os anos 80, comprometeram a continuidade de seus processos de industrialização, e a estabilidade de seus sistemas monetários. Nesse contexto, os investimentos externos tornam-se verdadeiros enclaves que, desarticulados do conjunto da economia, na melhor das hipóteses, geram algumas ilhas de prosperidade. Enganam-se, portanto, os que insistem em depositar tanta esperança no poder do capital internacional como mola mestre do crescimento econômico.

Em segundo lugar, a transnacionalização do capitalismo reforçou a dependência financeira, o que se evidencia pelo caráter estrutural dos desequilíbrios no balanço de pagamentos. Pressionados pelos programas de ajustamento patrocinados pelo consenso de Washington, as autoridades econômicas ficaram à mercê das vicissitudes das finanças internacionais. Dentro dessa camisa-de-força, as economias satélites são forçadas ora a gerar megas superávits comerciais, destinados a pagar o serviço da dívida externa, ora a produzir mega déficits comerciais, a fim de viabilizar a compra maciça de produtos estrangeiros e a absorção indiscriminada de empréstimos internacionais. Nessas circunstâncias, a continuidade do mercado interno como centro dinâmico da economia torna-se simplesmente inviável e a instabilidade econômica, fica incontrolável.

Por fim, as transformações no padrão de desenvolvimento capitalista intensificaram a dependência cultural. De um lado, os progressos tecnológicos nas áreas de comunicações e transportes exacerbaram o mimetismo cultural, levando ao paroxismo a propensão das classes médias e altas de copiar os padrões de consumo e comportamento difundidos do centro hegemônico. Os efeitos perversos desta forma de incorporação de progresso técnico sobre as sociedades periféricas são conhecidos: maior concentração de renda e crescente exclusão social. A razão disso é simples. Dado o diferencial na produtividade média do trabalho resultante do atraso no grau de desenvolvimento das forças produtivas, a concentração de renda é o único meio das elites aculturadas alcançarem a renda média necessária para poderem ter acesso aos níveis de vida opulentos das economias centrais. Quanto maior o hiato entre desenvolvidos e subdesenvolvidos, tanto maior a desigualdade social necessária. De outro lado, a sacralização do mercado como princípio organizador da vida social deixou as regiões periféricas totalmente indefesas diante do grande capital internacional.

Negando a "vontade política" como meio de construção da Nação, elas abriram mão de seu principal instrumento de ação coletiva: o Estado nacional. Sem controle sobre seu tempo histórico, a vida de sua população passou a oscilar ciclotimicamente entre a euforia e a impotência, conforme a direção dos fluxos de capital externo.

Nossas opções históricas

A transnacionalização do capitalismo compromete irremediavelmente a capacidade da periferia controlar os fins e os meios do desenvolvimento capitalista. Sem possibilidade de submeter a acumulação de capital aos desígnios da sociedade nacional, a burguesia dependente não tem o que oferecer à população, divorciando-se irremediavelmente dos interesses nacionais. Nessas condições, a aceitação da dependência significa uma opção. Através do alarmante desemprego, o capital já se apropriou da produtividade originária da terceira revolução científico-tecnológica deliberada, pela barbárie.

Ao contrário do que sugere o senso comum, a inserção internacional não é um fim em si mesmo. A forma de participação na economia mundial deve ser definida levando em consideração os problemas fundamentais da sociedade. No caso do Brasil, eles são evidentes. Trata-se de superar a exclusão social e consolidar a independência nacional. Por isso, nossa verdadeira opção histórica não está em aproveitar as eventuais brechas da divisão internacional do trabalho, mas em superar o mais rápido possível a situação de dependência.

A gravidade do momento histórico não permite ambigüidades e contemporizações. A ruptura radical com as forças que sustentam a modernização conservadora - o grande capital internacional e as elites aculturadas do país - é a única forma de tirar o país do beco sem saída em que se encontra e abrir novos horizontes para o desenvolvimento. Reconhecer esse fato e tirar suas conseqüências é o ponto de partida necessário de qualquer projeto de mudança social realmente comprometido com o futuro da nação. Não existe outra alternativa, pois aceitar a agenda política das classes dominantes é perder-se irremediavelmente em um imediatismo oportunista, que pode trazer algumas vantagens conjunturais, mas que é estéril e contraproducente a longo prazo.

Aqueles que se esquivam de enfrentar os verdadeiros dilemas da sociedade e, de boa ou má fé, insistem em buscar uma terceira via, apregoando soluções mirabolantes, descoladas da realidade, não acreditam mais na nação. No íntimo, aceitam a dependência e a morte do socialismo como fatos consumados. Mal conseguem disfarçar a adesão envergonhada a uma ou outra facção, de uma burguesia decadente que está afundando o país na mais completa desorganização social.

Plínio de Arruda Sampaio Jr. é professor do Instituto de Economia da Unicamp.