Política

A esquerda sofre uma atração fatal pelas pesquisas de opinião e mantém uma relação de amor e ódio com o marketing e a mídia

O uso das pesquisas de opinião nas disputas políticas e ideológicas é uma realidade cada dia mais forte e mais debatida. Nos momentos eleitorais, o interesse pelas mesmas ultrapassa as áreas de especialistas, políticos profissionais, publicitários e acadêmicos e chega a amplos setores da sociedade.

Nestes momentos, a verdadeira guerra de números e interpretações dos mesmos parece até substituir a própria disputa de projetos políticos, programas de governo, alianças partidárias e perfis de candidatos. As estatísticas, os números e seu sobe-e-desce, quando são divulgados, acabam pautando a mídia, forçando análises dos candidatos e levantando questionamentos. Assim, em público e no calor das campanhas, a discussão acerca das pesquisas de opinião restringe-se basicamente à dimensão quantitativa das intenções de voto estimulado e centra-se em dois aspectos: a possível manipulação de dados, feita na produção ou na divulgação dos resultados pela mídia ou pelos meios de campanha dos candidatos para favorecê-los na disputa; e a influência imediata e direta dos resultados sobre os eleitores de modo geral - assuntos estes tratados no número anterior de T&D numa boa abordagem de Gustavo Venturi.

Entretanto, muito além dos números das intenções de voto e bem atrás dos palanques, telas e páginas dos jornais, está o mais importante: um conjunto de informações colhidas em pesquisas de opinião para a definição de estratégias de marketing político e, mais que isto, para a disputa de hegemonia política e ideológica que se dá permanentemente na sociedade. Estas informações facilitam o reforço de conceitos e concepções e a construção de cenários que contribuem para consolidar ou fazer crescer esta ou aquela candidatura nos momentos certos.

Desde sempre, a disputa política foi mais eficaz para quem trabalhou com informações mais precisas sobre os adversários, o campo da luta e as próprias forças. Já em 500 a.C., o general chinês Sun Tzu dizia que "se você se conhece bem e ao inimigo, não precisa temer o resultado de uma centena de combates". 2.500 anos depois, a revolução tecnológica nas telecomunicações tem mudado crescentemente não só a forma de guerrear, como também a relação dos políticos com as massas, especialmente nas disputas nacionais, estaduais e nos grandes centros. Mídia e marketing são cada vez instrumentos mais fortes de poder pois não basta ser bom orador, usar a máquina, comprar votos ou ter um cabresto forte: é preciso uma técnica sofisticada. E o objetivo de Sun Tzu se consegue hoje por intermédio dos institutos de pesquisa que se especializaram na obtenção de informações, as mais precisas possíveis, sobre os cenários da luta.

O contato direto com o povo e suas organizações continua fundamental, mas são insuficientes para dar conta - em quantidade, qualidade, abrangência, profundidade e rapidez - das informações necessárias a respostas muitas vezes imediatas. Assim, as pesquisas têm sido cada vez mais usadas nas campanhas e também por governos, empresários, sindicatos e meios de comunicação. E, mais do que um resultado estatístico, são agentes da opinião pública1.

Portanto, são legítimas tanto para ter um eficaz marketing político, como para fazer uma disputa de hegemonia de médio e longo prazos. Imprescindíveis para analisar as relações de força e para aumentar a capacidade de previsão, no sentido gramsciano, de ver bem o presente e o passado em movimento, distinguindo os elementos fundamentais, permanentes e conjunturais do processo e o potencial de intervenção das vontades (próprias e dos outros) na realidade.

As classes dominantes

O comportamento dos políticos das classes dominantes e da esquerda tem sido diferente. Os primeiros têm uma relação pragmática e uma estratégia clara: as pesquisas servem para obter votos. E, como gostam de dizer os marketeiros, "voto é marketing, o resto é política" ou então, "voto é uma coisa muito séria para ficar na mão de políticos" ou, ainda, "o maior inimigo do candidato é o político". Ou, como nos ensinou São Rubens Ricúpero: "eu não tenho escrúpulo, mostro o que é bom e escondo o que não presta". Assim, usam-se as pesquisas para identificar os pontos-chaves para atacar. Pouco importa seu objetivo programático real. Trata-se de agradar o eleitorado e reforçar os seus temores em relação aos adversários. Deturpar, mentir ou omitir está dentro de uma ética cujo objetivo é chegar - ou se manter - no poder.

No horário eleitoral gratuito de TV (HEGTV) tudo isso aparece de modo concentrado: cada palavra, gesto, pose e símbolo são devidamente pesquisados, medidos e pensados. Mas o HEGTV é a reta final. Antes dele, todo um cenário foi construído, em médio e longo prazos, a partir de uma combinação de ações do Estado, em seus diversos níveis; da mídia: dos pequenos meios de comunicação aos programas de grande audiência como novelas, telejornais, shows e outros; e de seus agentes na sociedade civil, inclusive entre os trabalhadores.

A esquerda e as pesquisas

Já entre a esquerda e os petistas em particular, podemos encontrar as mais diversas opiniões e práticas em relação às pesquisas. No começo, era o descrédito e a rejeição em bloco, como se sempre fossem manipuladas. Depois, veio a atração fatal: uma grande facilidade em se impressionar com números desfavoráveis ou favoráveis de intenções de voto, sem uma maior análise global dos dados, situações e relações de força. Hoje, uma relação que vai da demonização ao pragmatismo - com o correspondente amor e ódio pelo marketing - ambos refletindo uma preocupação apenas imediatista e eleitoral. Como exemplo, em recente reunião do Diretório Nacional do PT, um de seus membros chegou a propor que o partido abandonasse por completo o uso das pesquisas e dos profissionais de marketing. Uma reação ingênua ao fato de que, no começo da campanha de 96, eram as intenções de voto nas pesquisas (junto com a presença do PT nas administrações) que mais pesavam para as análises de potencial eleitoral. Isto chegou a cunhar um novo estereótipo de candidatos petistas com voto e sem voto. Mas as umas acabaram mostrando que os sem voto tiveram melhores resultados eleitorais.

Por outro lado, em muitas cidades importantes houve resistência a se destinar recursos para realizar pesquisas próprias, profundas e abrangentes, enquanto em outras tantas houve uma submissão aos ditames dos números e opiniões qualitativas, a serviço de uma concepção de marketing que parecia dizer: "o maior inimigo do candidato petista é o PT" ou "voto é uma coisa muito séria para ficar nas mãos do PT". Somente isso pode explicar a campanha de São Paulo, com o "PT que diz sim", as declarações sobre o Cingapura e o PAS e a presença de FHC no horário de Erundina.

Hegemonia e marketing

A questão central está em que a esquerda precisa das pesquisas, do marketing político, governamental e eleitoral e da mídia, mas não pode usá-los com a mesma lógica das forças dominantes. Estas trabalham com um ideário hegemônico e com cenários políticos construídos antecipadamente, a médio e longo prazos2, com forte presença do Estado e da mídia, e orientados por pesquisas de opinião. Isto para não falar daquelas concepções secularmente arraigadas. Foi assim com as ações de Collor contra os marajás como governador e sua amplificação pela TV. Foi assim com o Real e toda a propaganda em torno dele. Foi assim, em 1996, com a estratégia de alguns prefeitos de, por meio de algumas ações/obras prioritárias propagandeadas cotidianamente pela mídia, se fortalecerem e, com o HEGTV, transferirem seu prestígio a seus respectivos candidatos. Ou seja, o cenário construído antecipadamente é o da boa administração e o do perfil do governante necessário é o do continuador. Pouco importa se a administração é realmente boa: basta que sua imagem seja positiva. O centro da estratégia de marketing do candidato é aderir ao cenário hegemônico. Se houver dois ou mais candidatos deste campo haverá uma disputa intra-hegemônica para ver quem melhor consegue aderir.

Marketing e contra-hegemonia

E para quem está fora do cenário hegemônico, que fazer? Um caminho é seguir os conselhos clássicos do marketing e aderir ao cenário hegemônico, se tornar simpático ao eleitor, fazer demagogia, trair princípios programáticos, mudar os aliados etc. É uma alternativa complicada, basicamente por dois fatores: por um lado, porque perde a sua razão de ser. Já que não faz disputa de hegemonia, mas apenas de votos e não faz guerra de posição, mas apenas guerra de cargos, perde seu sentido político; por outro, porque isto não dá garantia de vitória eleitoral. Como já vimos em outros filmes, o eleitor pode achar melhor o candidato originalmente aderido ao cenário hegemônico.

A outra alternativa é enfrentar o cenário hegemônico, o que também não é simples, pois não basta sair gritando palavras de ordem de oposição, mesmo se somadas a uma boa e justa lista de propostas concretas e viáveis. A campanha de última hora e que só aparece no HEGTV, oposicionista ou propositivista - tanto faz -, terá um retorno limitado se não tiver sustentação social.

As possibilidades de vitórias da esquerda estão ligadas a uma disputa de hegemonia permanente, na oposição e afirmação de projetos, e na construção da contra-hegemonia. Isto pode ser possível, antes de tudo, pelas próprias contradições e tensões internas ao exercício da hegemonia como forma de dominação/liderança exercida pelas combinações de força/consentimento, imposição/concessão, de/entre classes/bloco(s) de classes, de forma ativa/vontade coletiva ou passiva/apoio disperso, construídas por atendimento de interesses materiais e do predomínio/luta cultural/de idéias, por intermédio do Estado e da sociedade civil.

Isto significa que a contra-hegemonia não é construída do nada e apenas com um discurso doutrinarista, mas a partir do ideário/imaginário/cultura/experiência vivida, que já estão presentes na sociedade seja como resistência ou de forma latente ou emergente. Inclusive impregnando o hegemônico e até mesmo alcançando pequenas e grandes mídias. O uso competente de pesquisas de opinião, que procure não só identificar o senso comum, mas o contra- hegemônico e seu potencial; a elaboração de um marketing não universal mas contra-hegemônico; e a mobilização popular poderão inclusive ocupar os espaços imprescindíveis na mídia dos outros, impondo temas, agendas e agentes.

Portanto, a possibilidade de construir um novo cenário, ou transformar um contra-hegemônico em hegemônico, passa pela relação da TV com as ruas. Se o que se passa na tela não tem respaldo nem no imaginário nem na vida real, não tem credibilidade. Se quem pretende construir uma contra-hegemonia não detém o poder do Estado para criar ações de impacto de cima para baixo (como foram os casos do Real e das obras das prefeituras), nem a propriedade da mídia para orientar a agenda, somente a pressão de fora para dentro (da sociedade civil para o Estado e para a mídia) pode mexer na agenda e democratizar o Estado e a mídia. Na história recente estão aí as Diretas Já, o impeachment e, mais recentemente, a luta dos sem-terra. E isso reafirma o papel central da sociedade civil na disputa de hegemonia.

Cenários e contracenários

Em 1994, em determinado momento, havia um cenário de crise social e descrédito nos políticos dominantes que favorecia Lula. A mídia começou a construir um novo terreno, desgastando a imagem dos políticos de esquerda em geral, do PT, da CUT e de Lula, criando obstáculos e provocando o início da queda da candidatura petista. A partir do momento em que se impôs a idéia (pela moeda no bolso e pela mídia) de que a prioridade era a estabilidade econômica; que isso era sinônimo de Real; e que FHC era confiável estava criado o cenário para propagandear que FHC era o pai do plano e seu melhor continuador como presidente. E FHC, colado neste cenário hegemônico, acabou tendo o dobro dos votos de Lula.

Entretanto, considerando que FHC ganhou de Lula em todos os segmentos sócio-demográficos (mesmo que com algumas discrepâncias) e em quase todos os estados do Brasil, como explicar resultados como os do Rio Grande do Sul e do Distrito Federal, onde Lula foi vitorioso? Seria hegemônico, nestes estados, o que é contra-hegemônico em nível nacional? E como poderia ocorrer isto, se suas populações estavam igualmente expostas às mesmas novelas, ao mesmo Jornal Nacional e ao mesmo impacto de intervenção do Estado pelo Real? Pode-se alegar que haveria candidatos petistas fortes a governador. Este argumento é frágil, pois Olívio Dutra (PT-RS) era forte desde o início, mas Cristóvam Buarque (PT-DF) era um ilustre desconhecido. Por outro lado, Vitor Buaiz (PT-ES) era forte desde o início e venceu no final, mas no seu estado Lula sofreu uma grande derrota. Onde está a diferença que trouxe resultados tão destoantes? Talvez possa ser encontrada em:

a) na cabeça e no coração das pessoas, que recebem e interpretam as informações de modo diferente e reagem diferentemente;

b) na maneira como o comando da campanha nestes estados se relacionou com as concepções hegemônicas e contra-hegemônicas e na estratégia de campanha traçada. No caso do Espírito Santo, com a campanha estadual se viabilizando por aproximação com o clima hegemônico, mesmo que à custa do sacrifício de Lula, enquanto no Distrito Federal e no Rio Grande do Sul seguindo uma linha de reforço do cenário contra-hegemônico e, assim, fortalecendo os candidatos a governador junto com Lula.

Estratégias eleitorais

Assim sendo, a constituição prévia de cenários se, por um lado, cria condições mais favoráveis para determinado(s) candidato(s) e dificuldades para outros, por outro, não elimina o papel das estratégias de campanha - e o uso do HEGTV em particular - tanto para consolidar uma hegemonia ou maioria, como para alterar uma correlação de forças menos consolidada, assim corno para melhor capitalizar acontecimentos inesperados. Por isso, é preciso estudar os casos concretos de vitórias eleitorais ou de crescimento político significativo em alguns importantes centros onde a maioria não esperava estes resultados inicialmente, como, por exemplo, Belém, onde, provavelmente, trabalhou-se melhor com o ideário/imaginário, resistente e/ou emergente, contra-hegemônico.

Marketing e gol contra

Do mesmo modo, estratégias, ações políticas e marketing equivocados de um determinado candidato ou governante, por dentro ou por fora do HEGTV, podem acabar reforçando uma política adversária. Foi o caso de Collor, ao chamar o povo às ruas de verde e amarelo e este sair de preto desencadeando as grandes manifestações pelo impeachment. E é o que pode acontecer com quem pretenda ser o melhor continuador do Real ou do Cingapura, sem ter nada com isso.

Tudo isso exige ainda um debate racional, particularmente no PT, sobre o uso cotidiano da mídia, especialmente por suas expressões públicas. Muitas vezes, todo um trabalho difícil e prolongado de construir opinião pública - e, portanto, um cenário favorável - pode ser neutralizado ou detonado pelos próprios petistas em alguns segundos de aparição na mídia. Por exemplo, o esforço do partido de quebrar a imagem de só ser do contra fica a ver navios quando um representante da CUT aparece na Globo junto de FHC para dizer que o PT não tem propostas. Ou quando poucos segundos de FHC no programa de Erundina na TV enfraquecem o oposicionismo petista. Ou, ainda, pelo fato de que pouco adianta um expoente parlamentar petista votar na proposta do partido e depois (ou antes) ir aos telejornais criticá-la. Assim, todo o esforço de construir uma imagem coletiva vai sendo minado cotidianamente pelos gols contra.

As possibilidades de enfrentamento com a mídia não reduzem a importância da luta por sua democratização. Ao contrário, pois uma sociedade sem uma mídia democratizada não é realmente democrática. O conceito clássico de liberdade de organização, expressão e manifestação está ultrapassado. A comunicação midiática de massas superou isso: agora trata-se não somente de ter liberdade para falar, mas também de ter o direito a falar na mídia.

Jorge Almeida é membro do Diretório Nacional do PT, coordenou o setor de análise e pesquisas da campanha de Lula em 94, é autor de Como Vota o Brasileiro.