Nacional

15 Filhos, de Maria de Oliveira Soares e Marta Nehring, reúne depoimentos de filhos de militantes de esquerda que nasceram ou viveram sua infância no regime militar

O curta-metragem 15 Filhos, de Maria de Oliveira Soares e Marta Nehring, prêmio de melhor vídeo no Festival de Cinema do Rio de Janeiro em julho deste ano, reúne depoimentos de filhos de militantes políticos de esquerda que nasceram ou viveram sua infância no período do regime militar. É do conhecimento de muitos que a ditadura cometeu atrocidades, torturando e matando muitas pessoas, mas pouco se ouviu falar sobre o que passaram os filhos daqueles que lutaram contra o arbítrio. Crianças (algumas ainda bebês) foram presas com seus pais, exiladas e até mesmo torturadas. Há ainda as que chegaram a ser instrumento na tortura dos pais e até as que nasceram dentro da prisão. Marta e Maria produziram o vídeo para fazer parte do seminário Revolução Impossível, realizado de 25 a 28 de março de 1996, na Unicamp, em homenagem às vítimas do regime militar. Juntas encontraram no filme a solução perfeita para reunir tantas pessoas - não para falarem sobre a história de seus pais, mas para falarem de suas próprias histórias. O resultado são dezoito minutos não somente reveladores da resistência contra a ditadura como também extremamente emocionantes.

T&D conversou com alguns dos protagonistas de 15 Filhos, com o objetivo de apresentar uma seção Memória diferente, centrada na infância dessas pessoas, calcada na sensibilidade, na percepção e na ausência de seus pais.

Marta Nehring, filha de Norberto Nehring e Maria Lygia Quartim de Morais Nehring, nasceu em 1964. Sua família viveu intensamente os anos de resistência ao regime militar. "Lembro de um dia estar chegando em casa e as crianças da vila onde morávamos falarem 'a polícia acabou de sair da sua casa'. Quando se é criança, vive-se tudo com muita normalidade. Uma criança numa cidade que está em guerra tem uma vida normal e adapta-se à realidade. O estrago que isso causa somente será percebido depois".

Em 1968, ao mesmo tempo em que tinha intensa militância na Ação Libertadora Nacional (ALN), Norberto tinha uma carreira profissional promissora. Químico industrial, trabalhava na Pfizer enquanto cursava economia na Universidade de São Paulo. Preso no início de 1969 no Dops, Norberto conseguiu uma autorização para ir ao aniversário da filha, que completava 5 anos. Aproveitando a oportunidade, fugiu, saindo em seguida do país com destino a Cuba, para onde também foram, meses depois, Marta e sua mãe. "Fizemos um roteiro passando pela Itália e outros países até chegar em Cuba, com passaportes falsos. Lá, quando as pessoas falavam comigo em português eu respondia em espanhol e meu nome era Sofia Ribero".

Morando no Hotel Habana Libre, onde estavam vários filhos e mulheres de guerrilheiros, é da capital cubana que Marta tem as maiores lembranças de seu pai. Mãe e filha recebiam, de vez em quando, a visita de Norberto, que fazia treinamento militar na serra. "Quando ele vinha nos visitar tinha que ficar no quarto. Não podíamos ir juntos ao restaurante. Não podíamos aparecer publicamente juntos. Era assim com todas as famílias que estavam no hotel. Eu não esqueço uma cena: o elevador desce, a porta abre e meu pai estava dentro. Como não podíamos conversar, um piscou para o outro e a porta do elevador se fechou."

Em abril de 1970, o pai de Marta retornou ao Brasil, desembarcando no Galeão, Rio de Janeiro, com identidade falsa argentina. "Três meses depois, a polícia chegou até minha avó, Nice Nehring, com uma caderneta, que deveria ser entregue a ela, e uma foto, dizendo ser os pertences de um homem que tinha se enforcado em um quarto de hotel e que estava enterrado no cemitério de Vila Formosa. Nós ficamos sabendo da morte dele na França, para onde fomos logo depois que ele retornou ao Brasil."

Logo após a eleição de Allende, Marta e a mãe foram morar no Chile, onde ficaram até o golpe, quando retornaram para a França. Voltaram ao Brasil em 1975, ainda em plena ditadura.

"Quando estava no Chile era filha de guerrilheiro brasileiro morto. Na França, morando perto de Paris, era uma criança absolutamente integrada, tinha o status de exilada política. Mas, quando voltei ao Brasil, aos 11 anos, não podia dizer quem eu era e como meu pai tinha morrido. Passei minha adolescência achando tudo sem sentido. Não conseguia rir como minhas amigas."

As circunstâncias da prisão e morte de Norberto Nehring até hoje não foram esclarecidas e se tornaram objeto de incessante investigação da filha.

"Segui várias pistas, falei com seus companheiros de militância, procurei testemunhas, até conversei com delegados que estavam no Dops na época. Até agora, nada..."

Maria de Oliveira Soares nasceu em 1969, filha de Eleonora Menicucci de Oliveira e Ricardo Prata Soares, ambos então militantes da Polop (Política Operária).

Vindos de Minas, os pais de Maria viviam em São Paulo na clandestinidade, quando, em 1970, Ricardo foi preso. Eleonora foi presa no dia seguinte com a filha de um ano e meio, quando se dirigia à casa de um tio, para que este a levasse a Minas para viver com a avó.

"Eu só me lembro de flashes. Mas, pelo que a minha mãe conta, eu fui com ela para a Oban (Operação Bandeirantes, órgão dos diversos serviços de segurança, precursora do DOI-Codi). Além dela, o Paulo Vannuchi, que estava preso lá, me contou que viu de sua cela eu chegar no colo da minha mãe."

Durante o período em que esteve no aparelho de repressão, Maria não ficou na cela com a mãe. Vez e outra era levada à presença de Eleonora. Seu aparecimento era sempre um elemento de ameaça na tortura de sua mãe.

Ao ser encontrada pela família, foi levada para Belo Horizonte, onde morou com a avó até 1974, quando seus pais saíram da prisão.

Suas lembranças estão centradas no período em que os pais estavam presos e a avó a levava para visitá-los. "Por mais que as lembranças do lugar fossem vagas para mim, ao visitar a delegacia e o presídio, agora, por ocasião da elaboração do vídeo, eu me lembrava de que primeiro vinha a revista, depois o portão, depois a grade, depois o pátio, depois outra grade e depois a cela. A conformação física existia na minha memória."

Das visitas que fazia aos pais, a revista é algo inesquecível. Em 15 Filhos, ela se lembra do gesto violento de uma mulher enfiando a mão e revirando o pacote de pipocas que levava para a mãe. No período em que os pais estiveram presos em locais separados, a mãe no Hipódromo e o pai no Carandiru, a situação incômoda e constrangedora era dupla.

"Até os 4 ou 5 anos a memória é muito fragmentada. Eu consigo imaginar o que era a minha infância pelo que eu identifico hoje em mim como reflexo desse período. Eu a identifico nos meus medos e traumas."

Maria reconstitui sua história a partir das cartas que trocava com os pais, do álbum de fotografias que a avó começou a montar quando foi para Minas. Ao lado da avó e das tias sentia-se em um porto seguro, mas confessa ter sido uma criança muito solitária e arredia. "Não lembro de amigos de infância e sentia sempre que fora de casa tinha que tomar muito cuidado." Para expressar melhor esse sentimento conta que quando o irmão tinha ainda poucos meses, em 1974, e ficava no berçário da mesma escola, ela saía da aula de meia em meia hora para ver se estava tudo bem com ele.

Com os pais de volta a Belo Horizonte, aos 5 anos, Maria teve que se readaptar à convivência com eles. "Eu sabia que ela era minha mãe e ele meu pai, mas para mim pai e mãe eram aquelas pessoas com quem eu morava. Não queria dormir na casa deles, chorava muito e tinha pesadelos, e assim foi até o nascimento do meu irmão".

Mesmo não se lembrando do período em que ficou presa com a mãe e se recordando pouco das visitas aos pais, por algumas vezes cenas de seu passado invadiam sua vida. Como, por exemplo, no dia em que, no pátio da escola pública onde estudava em Belo Horizonte, vendo os alunos perfilados para cantar o hino, Maria se recusava a descer para o recreio. Até que sua mãe identificou a associação: era evidente a semelhança com o presídio.

Diferentemente da maioria dos filhos de militantes de esquerda que não podiam falar sobre suas vidas enquanto seus pais estavam presos, clandestinos ou exilados, Maria tinha que se calar no período posterior. Em 1978, morando em João Pessoa, onde a mãe era professora universitária, foi estudar em uma escola tradicional, onde estavam os filhos dos políticos da cidade. Sentia-se muito diferente, pois era filha de uma ex-presa, separada do marido, feminista e que estava sempre à frente de todas as manifestações da universidade. Das aulas de religião não podia participar, porque não era batizada. "Não conversava com ninguém, não tinha amigos, para não correr o risco de alguém perguntar alguma coisa sobre meu passado. Não dava para inventar oito anos de vida! Até voltar para São Paulo, aos 14 anos de idade, fiquei praticamente muda."

Com a vitória de Salvador Allende e da Unidade Popular, em 1970, o Chile transformou-se no mais adequado refúgio para os militantes de esquerda perseguidos pelos regimes militares vigentes nos demais países do Cone Sul. Para lá foram muitos refugiados brasileiros. Entre eles, estavam Ernesto José de Carvalho, seu irmão Carlos e sua mãe Pedrina José de Carvalho.

Ernesto nasceu em 1968, filho do metalúrgico Devanir José de Carvalho, militante do PC do B, que integrou a Ala Vermelha (dissidência daquele partido), a partir de 1967, vindo a fundar o Movimento Revolucionário Tiradentes em 1969. Preso em 5 de abril de 1971, no bairro do Tremembé, na Zona Norte de São Paulo, Devanir foi levado ao Dops e torturado até a morte no dia 8. A versão oficial - de que foi morto ao resistir à prisão - é desmontada por pessoas que estavam detidas no mesmo período.

A família só ficou sabendo de sua morte dias depois pela televisão. Em seguida, Pedrina passa um mês presa e quando sai resolve ir com os filhos para o Chile, onde já estavam os irmãos de Devanir.

As recordações de Ernesto, que tinha 3 anos quando saiu do Brasil, são do golpe de Pinochet, em 1973. Para ele, a palavra que melhor traduz esse período é solidariedade. "O clima no Chile era de verdadeira festa, várias famílias exiladas e todos ajudando todos. De repente, veio o golpe e nós nos refugiamos na embaixada da Argentina, onde ficamos oito meses. A impressão era de que viveríamos o resto de nossas vidas lá".

Ao deixar a embaixada, a família José de Carvalho foi para a Argentina, onde ficou um ano. "O clima solidário e a convivência com exilados me ajudaram muito a entender a história do meu pai. Ele queria mais justiça e igualdade. As notícias que recebíamos do Brasil nessa época eram sempre de que gente caía ou morria, até que a coisa pesou, pois meus tios, Daniel e Joel, tentaram voltar clandestinamente para continuar na luta e desapareceram na fronteira."

Em 1974, quando muitos dos exilados iam para Cuba, Pedrina preferiu ir para Portugal. Achava que seria melhor para educar os filhos em razão da língua. Lá arrumou trabalho, colocou as crianças na escola, enfim, conquistou paz e alguma estabilidade até ter a possibilidade de voltar em 1978, três meses antes da anistia.

Sem nenhuma fotografia que retrate o pai - todas foram levadas pela polícia -, Ernesto tenta formar a imagem da figura paterna. "Tenho uma foto em que ele está com o rosto coberto, há uma outra em que está comigo e meu irmão, mas foi tirada de muito longe e não dá para identificar. O que restou foi uma foto 3x4, onde ele está disfarçado, barbeado e de óculos. Meu pai não usava óculos e sempre usava barba, segundo minha mãe. Tento formar uma imagem baseando-me em meus tios. Quando estive na França, há seis anos, ficava olhando para o irmão caçula de meu pai. Observava as mãos, os gestos e pensava: Será que ele era assim?"

Para reconstruir a imagem do pai, todos os caminhos foram válidos. Na adolescência, Ernesto começou a refletir sobre o seu nome e fez o que o pai, por cautela, não fizera ao registrá-lo: adotou por completo o nome de Ernesto Guevara. Quando jogava futebol profissionalmente em São Bernardo, era assim que queria ser chamado. Ao abandonar a carreira futebolística, montou a loja de material esportivo Che, como ficava melhor no letreiro, mas a razão social era Che Guevara. Exatamente como tem tatuado em seu braço esquerdo. Ernesto faz questão de deixar claro que a intenção, ao adotar o nome, foi sempre de prestar uma homenagem ao pai e não ao companheiro de Fidel.

Em 29 de dezembro de 1972, Janaína de Almeida Teles, 5 anos, foi levada para a Oban, juntamente com seu irmão Edson Luís Teles, 3 anos, e a tia Criméia de Almeida, grávida de 7 meses, que voltara da guerrilha do Araguaia para ter o filho. Isso aconteceu um dia depois da prisão de seus pais, César Augusto Teles e Maria Amélia de Almeida Teles, ambos militantes do PC do B. Durante muitos anos era na casa deles que funcionava a imprensa do partido. Foram presos quando acompanhavam o dirigente nacional do partido, Carlos Nicolau Danieli, a um ponto. Caíram os três.

Janaína conta que ela própria abriu a porta para o casal que, depois de alguns minutos de conversa com sua tia, colocou os três em um Opala azul. "Tinha uma arma no chão, perguntei para que era e o homem mandou eu calar a boca".

No próprio estacionamento da Oban as duas crianças foram separadas da tia e levadas à presença dos pais. "Eram muitas pessoas. Embora pareça não ter sentido, eu tenho a sensação de que passei por debaixo de suas pernas, até que encontrei uma mesa, sobre ela dois pratos de sopa com um pedaço de pão boiando, de um lado meu pai e de outro minha mãe. Os dois estavam esverdeados e, apesar da minha alegria em vê-los, mal conseguiam mexer o rosto." Tinham passado pela primeira sessão de tortura. As condições físicas em que os encontrou, de certa forma justificavam para Janaína a estória de que estivesse em um hospital e os pais muito doentes, conforme tinha lhe dito um oficial. "Apesar de achar esquisito, porque tinha um monte de gente jogando sinuca e fazendo muito barulho, cheguei a acreditar que estavam doentes até porque meu pai tinha ficado um tempo em Campos de Jordão com tuberculose."

Sem saber ao certo quanto tempo foi mantida nas instalações do órgão repressor, Janaína lembra de brincar com o irmão no estacionamento e de dormirem em camas improvisadas em uma copa localizada no andar térreo de um grande sobrado. Posteriormente, foram levados, no mesmo Opala azul, para Belo Horizonte, onde vivia boa parte de sua família, pessoas que estavam longe de aprovar a opção feita por César e Amelinha. Os dois irmãos ficaram aos cuidados de uma tia e de seu marido, um delegado de polícia com relações no Dops. "Esse infeliz disse que meus pais tinham me abandonado e minha tia me fez de sua empregada, me fazia dar mamadeira para os meus primos, de 3, 4 e 6 anos, praticamente da minha idade."

A versão de abandono somente foi desfeita meses depois, quando foram encontrados pela tia Criméia, solta sem processo após ter sofrido várias formas de tortura em São Paulo e em Brasília, onde nasceu seu filho João Carlos. Foi a tia também que conseguiu tirar as crianças da casa em que estavam, primeiro para visitas aos pais e depois para que fossem morar com os avós maternos na Baixada Fluminense. Janaína comenta que, na volta de uma dessas visitas, Criméia contou que Danieli, de quem gostava muito e chamava de tio, tinha sido torturado e assassinado. "Aí eu perguntei por que, e ela falou que os militares não gostavam da gente. Eu lembro que foi uma das poucas vezes em que chorei diante de um adulto".

César e Amelinha saíram da prisão no final de 1973, após cumprirem pena de um ano. A família unida foi morar na Bela Vista, bairro de São Paulo. Novamente sua casa era um aparelho. A fachada era de uma gráfica comercial, mas clandestinamente era a gráfica do partido. Em 1975, o pai de Janaína teve seu processo reaberto e foi preso outra vez. Condenado a cinco anos, cumpriu pouco mais de três. Desse período, aos 8 anos, ela lembra bem dos sábados, que era o dia de visitar o pai em um presídio de presos políticos no Horto Florestal. Era a primeira família a chegar e a última a sair. Também dessa época são suas lembranças das reuniões do Comitê Brasileiro de Anistia, das quais sua mãe participava.

Em setembro de 1969, após o seqüestro do embaixador norte-americano, desaparecia nos porões da ditadura Virgilio Gomes da Silva. O ex-operário da indústria química e dirigente da ALN deixou quatro filhos: Vladimir, 9 anos; Virgílio, 8, Gregório com 2 e a recém-nascida Isabel.

Vladimir lembra que, em 1964, por ocasião do golpe, pela primeira vez o pai esteve ausente de casa por um longo período. Diretor do Sindicato dos Químicos, depois de ter sido preso, Virgilio foi para o Uruguai, onde ficou quase um ano. "Nessa época já comecei a ter consciência de que meu pai se ausentava por motivos alheios à sua vontade."

Em 1967, Virgilio se ausenta de novo por cerca de um ano, quando vai para Cuba. A partir de 1968, a vida familiar deixou de ser tranqüila. O pai vivia clandestino, passava dias sumido e eles mudavam de casa muito freqüentemente. Até que Virgilio decidiu providenciar a saída de sua mulher e filhos do país.

Às vésperas da partida, com toda documentação arrumada, em um aparelho em São Sebastião, litoral norte de São Paulo, Hilda Gomes da Silva foi presa com os dois filhos e o bebê de 4 meses. Só Gregório, que estava doente, havia ficado em Ribeirão Preto. A prisão é relatada por Vladimir. "Estava brincando na rua, quando reparei em um carro que ia e voltava várias vezes, e as pessoas dentro dele olhavam para a casa. Depois, apareceram cinco carros de uma vez, de onde desceram muitos homens armados com metralhadoras. A princípio não me assustei e cheguei a pensar até que eram amigos do meu pai.". Como tinha bastante familiaridade com armas, confessa que não ficou surpreendido. Além do mais, era normal que os companheiros do pai aparecessem em bando. "De repente, percebi que não era nada disso. Eles entraram na casa arrebentando tudo. Não sobrou nada. Tiraram o Manoel Cirilo da cama e bateram muito nele na nossa frente. Queriam saber do meu pai."

A data provável da morte de Virgílio é 29 de setembro, segundo depoimento de companheiros presos no mesmo período. Embora a família ainda não soubesse, ele já estava morto quando foram encontrados em São Sebastião.

Segundo Vladimir, foram todos para a rua Tutóia, onde deixaram a mãe. As três crianças foram levadas ao Juizado de Menores no bairro do Tatuapé. Todas com a documentação falsa que usariam para sair do país.

"Queriam nos separar mas não aceitamos e ficamos juntos o tempo todo. Colocaram minha irmã no berçário e eu e Virgílio dormíamos ao lado do berço no chão. Lembro que eles tentaram várias vezes nos levar para um lugar. Parecia um sítio ou uma chácara. Diziam que a pessoa queria ficar com a gente, mas só podia ser um de nós, o outro teria que ir para outro lugar. Nunca aceitamos."

A firmeza dos garotos era tanta que, mesmo diante da tia, que os encontrou no Juizado de Menores, não assumiram a verdadeira identidade. Quando a tia localizou-os e disse que tinha ido para levá-los dali, Vladimir se recusou terminantemente a reconhecê-la. "Ela começou a chorar e pensou que tinham até feito lavagem cerebral na gente. Em uma outra vez, ela voltou dizendo que minha mãe estava presa e que se eu não dissesse quem era de fato não sairia dali." Foi esta mesma tia que contou para as crianças, sem rodeios, o que tinha acontecido com o pai delas. "A gente demora para acreditar que alguém morreu quando não se vê essa pessoa morta. Eu fiquei muito tempo pensando que ele estava vivo e que poderia encontrá-lo em qualquer lugar."

Somente dois meses depois de sair do juizado é que souberam que a mãe estava no presídio Tiradentes. Ela ficou presa por nove meses, dos quais boa parte incomunicável. Um dos requintados instrumentos de suas sessões de tortura eram as gravações da tortura do próprio marido.

Após a mãe ser solta, em 1970, a família tentou por algum tempo levar uma vida normal, mas sofreu perseguições. A situação complicou-se e, sem emprego, Hilda resolve ir embora com os filhos.

Saíram do Brasil em março de 1972. Foram para o Chile, onde ficaram um ano e partiram, antes do golpe, para Cuba. Provavelmente, o lugar para onde Virgílio tinha planejado mandar os filhos antes de morrer. Vladimir diz que tinha ouvido falar muito de Cuba em sua casa. Lembra que quando tinha 9 anos, no apartamento de uma amiga, recortava vários papeizinhos e neles escrevia "Viva Cuba", jogando-os pela janela. Não sabe explicar o porquê disso, embora tivesse a sensação de que com aquele gesto estivesse chocando alguém...

Gregório, que na época tinha 3 anos, não se recorda desse período. Acredita que possa ter algum bloqueio em relação aos anos vividos no Brasil, pois, de maneira incrível, sua memória passa a funcionar a partir do exato momento em que o avião pousa no aeroporto José Martí, em Havana. Diz que só foi descobrir que era brasileiro, e não cubano, quando começou a estudar. Lembra que, quando começou a freqüentar a escola, à fatídica pergunta "o que você quer ser quando crescer?", respondeu: "Quero ser guerrilheiro para fazer a revolução no Brasil." Comenta ainda que só ficou sabendo da participação do pai no seqüestro do embaixador aos 10 anos, por intermédio de um livro da Casa de las Américas.

Em 1979, com a anistia, a volta ao Brasil passou a ser uma tentação para os filhos de Virgilio. Foram alertados pela mãe de que era cedo para voltar, uma vez que estavam estudando e a vida no seu país de origem poderia não ser tão fácil. "De todos nós, quem mais tinha a perder ficando em Cuba era ela, pois tinha deixado aqui a sua família. E, no entanto, tomou a decisão de permanecer lá, pensando em nós, na nossa formação", diz Gregório, o primeiro a voltar, em 1990.

Tessa Moura Lacerda não tem lembranças desse período. Filha de Mariluce Moura e Gildo Macedo Lacerda, militantes da Ação Popular, nasceu em 18 de junho de 1974, após a morte de seu pai.

Gildo e Mariluce - esta grávida - foram presos em 22 de outubro de 1973, em Salvador, no Quartel do Barbalho. Separado da companheira, Gildo foi levado para o DOI-Codi de Recife, onde foi torturado até a morte, segundo depoimentos de outros presos. Mariluce soube da morte de Gildo no dia 28 seguinte, ainda na prisão, quando recebeu seus objetos pessoais.

Tessa e a mãe sabem que o corpo do pai foi depositado em uma vala comum no cemitério das Flores, em Recife, e depois transferido, mas acreditam ser impossível a recuperação. Só recentemente a família conseguiu o atestado de óbito de Gildo. "Somente consegui ter o nome do meu pai na certidão quando tinha 18 anos, depois de um processo de investigação de paternidade, porque quando nasci não havia como provar quem era meu pai. Provamos depois de recuperar a certidão de casamento. Eles casaram só na igreja e meu pai usou nome falso, Cássio. Então, tínhamos que provar que Cássio era Gildo."

Tessa tem a impressão de que sempre soube da história do pai. Mas lembra que aos 6 anos pediu: "Mãe, conta de novo a história de Gildo".

Para ela, ser órfã de um pai assassinado pela ditadura foi sempre muito triste e quando criança, toda vez que sua história vinha à tona, chorava muito. Sempre teve consciência de que a responsabilidade pela morte do pai era dos militares. O fato de ter estudado em uma escola que concentrava vários filhos de militantes e até presos políticos fez com que nunca tivesse se sentido à margem ou vivesse circunstâncias constrangedoras por ser quem era.

Mesmo tendo a figura paterna substituída através de um segundo casamento de sua mãe, a morte do pai sempre esteve presente. Contraditoriamente, ao mesmo tempo que quer saber como era o pai, tem uma certa resistência. "Há um ano, em um encontro de familiares, estive com uma amiga dele que me deu várias cartas escritas por ele. Até hoje não as li. Sempre que surgem oportunidades converso sobre meu pai mas nunca fui espontaneamente atrás. Na adolescência, essa busca foi intensa e permanente. A imagem que construí de meu pai é a de herói."

Militância perdida

Um fato no mínimo curioso na vida de todos esses jovens, filhos de militantes políticos, é justamente a distância que mantiveram da militância político-partidária. Foram atrás de suas histórias, participaram, com maior ou menor intensidade, da organização e dos movimentos levados por familiares de mortos e desaparecidos políticos, mas contrariam em boa medida o ditado "filho de peixe..." Será em função do passado ou apenas uma conseqüência da já diagnosticada crise de militância dos últimos anos?

Tessa se mantém longe de qualquer tipo de militância. Já Marta, em 1978, quando tinha 14 anos e o movimento estudantil vivia seu momento de reconstrução, chegou a experimentá-lo. Sua participação se deu no movimento secundarista. "Eu achava muito chato tudo aquilo. Ficávamos horas discutindo apoio ou não à greve, moção de apoio à Nicarágua etc. As pessoas eram muito sectárias. Crias de grandes organizações, repetiam à exaustão palavras de ordem, sem refletir sobre o que diziam. Não havia sensibilidade para o real, as discussões eram desvinculadas do cotidiano estudantil". Não teve militância partidária por imaginar que aquela estrutura se reproduziria em maior escala.

Maria encontra a justificativa para a sua falta de atuação política em sua própria história de vida. "Queria estar num lugar e fazer coisas onde eu fosse Maria. Somente pelo fato de ser filha de meus pais já tinha um compromisso de tomar uma atitude. Isso não acabou quando minha mãe deixou de militar partidariamente, porque depois ela virou militante feminista. Esse comportamento foi me levando a um distanciamento e a ter uma vida própria."

Para quem é filho de alguém que foi morto de uma forma estúpida e trágica, torturado e quebrado porque queria um país mais justo, ver Fernando Collor vencer as primeiras eleições presidenciais no Brasil, depois da ditadura, é motivo suficiente para manter-se afastado de qualquer discussão política. É assim que pensa Ernesto. "Tenho meus tios desaparecidos, provavelmente executados e enterrados num cemitério, sabe-se lá aonde. E vejo o Celso Pitta disparar nas pesquisas... É tudo muito revoltante. O normal é que em uma discussão política se respeite a opinião do outro, mas para mim é muito difícil."

Vladimir se admite um pouco velho, pois não tem mais muita ilusão com a participação política. A pressão do dia-a-dia é muito grande e contas para pagar, os filhos para criar e os cuidados com a família ocupam muito do seu tempo.

Embora participação e atuação políticas fizessem parte dos planos de Gregório quando voltou ao Brasil, ele não as levou adiante. Chegando em ano de eleições para os governos estaduais e quando o país ainda estava um pouco sob o clima do que fora a eleição presidencial de 1989, Gregório diz ter participado de panfletagens e ter feito boca de urna, mas sem militância orgânica. Além do que, sem amigos de infância, sua convivência era com a família e também tinha que preparar o terreno para a mãe e os irmãos que retornariam em breve.

Diferentemente dos demais, Janaína iniciou sua militância no PC do B aos 13 anos de idade. Participou de movimento secundarista, e quando já cursava a universidade, em 1987, foi expulsa do partido. Nos treze anos em que ficou no PC do B acumulou um rol de discordâncias e muitas advertências. Chegou até a ser acusada de populista por companheiros de célula no Colégio Equipe por organizar um time de futebol feminino. Como dirigente municipal, suas primeiras divergências com a direção se deram na avaliação da guerrilha do Araguaia, no Congresso de 82. Depois desta experiência, Janaína não voltou a ter engajamento partidário. Mas, sua maior dedicação é à militância junto aos familiares de mortos e desaparecidos políticos. Sempre presente às reuniões do grupo Tortura Nunca Mais, do qual seus pais foram fundadores, Janaína pensava em tomar um caminho que não fosse exatamente colado ao deles. "O envolvimento com o resgate de coisas ligadas à ditadura automaticamente me levava a meus pais e eu não queria." A abertura da vala comum do cemitério de Perus foi decisiva para que voltasse atrás e se dedicasse à investigação da história que marcou sua vida.

Vingar?
Órfãos ou não, todas essas pessoas têm em comum a ausência dos pais na infância, o sentimento de reparação e o objetivo de ver contada a história do país nos últimos trinta anos. Marta, Maria e Janaína têm projetos semelhantes para divulgar o que foi esse período para os perdedores.

Hoje, Marta, 32 anos, faz pós-graduação em Teoria Literária na Universidade de São Paulo e trabalha como redatora de publicidade free lance. Sua maior preocupação é com a divulgação não apenas do ocorrido com seu pai, mas da história do Brasil nesse período. Nesse sentido, o vídeo 15 Filhos tem papel fundamental. De toda a pesquisa que realizou durante anos sobre seu pai resultou o roteiro de um filme que acabou entregando para a Comissão Especial de Justiça.

Marta acredita que tem o direito de saber quem matou seu pai, que o brasileiro tem direito de saber quem eram essas pessoas que a lei anistiou. "De repente você pode estar tomando café na padaria ao lado de um torturador e nem saber."

Como historiadora, Janaína, 29 anos, recentemente se demitiu do Arquivo Judaico Brasileiro para acompanhar uma equipe de antropologia forense em escavações no Araguaia. Dessa viagem resultou um vídeo, em fase de finalização, com depoimentos de moradores sobre a guerrilha.

Sobre a amarga experiência que ela e os outros viveram na infância, Janaína, em 15 Filhos, disparou: "Quero vingar, quero punir e reparar a dor que me impuseram."

No dicionário Aurélio, o verbete vingar apresenta dezesseis acepções. Entre elas reparar, indenizar, crescer, lograr êxito. Constatando que vingar contemplaria a todos, Janaína se deu por satisfeita com a frase e muito mais com o vídeo. Para ela, a importância desse trabalho está em mostrar que, diferentemente dos pais, que tiveram uma participação voluntária na história, os filhos, alguns ainda no ventre da mãe, não optaram por isso. "Entramos de gaiatos completos nessa história."

Para Maria, 29 anos, uma cineasta trabalhando com publicidade, o vídeo é encorajador para tocar outros projetos. Também pensa em fazer um longa-metragem sobre esse período, sob o ponto de vista de uma mulher, um pouco baseado na história da mãe. "Até porque é muito recente, a história é mal contada. Para mim, ela é traumática porque tive meus pais distantes na minha infância e alguém os obrigava a isso. Havia uma força contra a minha tranqüilidade, se era de direita ou não, pouco importa para o trauma da infância. Para a criança não importa a causa externa." Maria afirma que, até ter surgido no vídeo, a palavra vingança relacionada ao que vivera não tinha lhe passado pela cabeça, pois o termo adquiriu um sentido pejorativo demais para usá-lo. No entanto, diz que se quisesse vingar aquele momento não seria em nível pessoal, mas como parte de uma geração que sofreu as conseqüências do período.

No Café Brasil, em Diadema, está Ernesto, 28 anos, disposto a esclarecer dúvidas e a desfazer visões distorcidas do que foi o regime militar para quem tocar no assunto. Acredita que iniciativas como o vídeo ajudam bastante a esclarecer essa história. O que mais quer é que a opinião pública saiba o que realmente aconteceu e por que aconteceu. "Essas pessoas não podem continuar sendo tachadas de terroristas e comedores de criancinhas. O objetivo de pessoas como o meu pai era ideológico e isso precisa ser dito. Quero ver isso contado em livro didático."

Para Ernesto, pouco importa saber quem foi o carrasco de seu pai. Ele não o considera o maior culpado, mas um instrumento. "Ele não sabia o que estava fazendo, aliás, nem sabia que se tratava de um trabalhador, que queria um mundo mais justo, inclusive para ele. O matador do meu pai também pensava que ele engolia criancinhas. O problema estava no sistema. Se pensarmos em vingar, o que, fazer com o Nilton Cerqueira, secretário de Segurança do Rio de Janeiro, assassino confesso do grande amigo de meu pai, Carlos Lamarca? Tenho por este senhor o mesmo sentimento que tenho pelo carrasco do meu pai. Não penso em vingança."

Gregório parte de outro ponto de vista: "O fato de eu não ter mais esperança de ter a ossada do meu pai não significa que a história tenha que ser enterrada. Tem mais é que procurar e vasculhar todos os cantos e todas as testemunhas. Não só pelos que morreram mas pelos que estão vivos. É preciso sim que o Estado brasileiro reconheça a responsabilidade por essas mortes. Acho que o fato de termos ido para Cuba de uma certa forma causou uma ruptura. Se tivesse ficado aqui provavelmente teríamos que ter escondido a história do nosso pai. Em Cuba ele era motivo de orgulho. Dizem que o brasileiro tem memória curta. Isso não é verdade. A história lhe é contada aos pedaços, uma vez que são os vencedores que a fazem".

Vladimir, 35 anos, geólogo formado em Cuba, retornou ao Brasil em 1991 trazendo a mulher e os filhos cubanos. Constata que todas as crianças atingidas de alguma forma pelas ações de um Estado repressor tiveram a infância truncada e se tornaram adultos muito rápido. Não sente necessidade de vingança, pois para ele a questão não deve ser tratada com revanchismo.

Tem claro que quando o pai assumiu a luta contra o sistema imperante tinha consciência de todos os riscos. Embora sabendo que o pai foi morto de forma covarde, pondera que ele estava em uma luta consciente de que esse poderia ser o preço. "Querer achar culpados e prendê-los até desmerece o ato consciente que ele assumiu." Condena, sim, o regime e a situação de opressão que o levaram a tomar esse caminho, mas descarta individualizar. Vladimir confessa, emocionado, que faz pouca diferença saber onde está o corpo do pai, bem como ter um documento declarando que ele foi assassinado. "Não é uma necessidade minha saber essas coisas. Na verdade, eu não quero saber. Já estou convencido de que ele foi assassinado e de quem é a culpa. Não faz diferença saber: 'essa é a sepultura do seu pai'."

Gregório, 29 anos, engenheiro hidráulico também formado em Cuba, contrapõe-se ao irmão por considerar vingança - com o sentido de reparação - a palavra correta para designar a aspiração dos filhos das vítimas da repressão. "A impunidade perambula pelo país mas isso tem que ter fim. Esse período da história, por ser recente, pode ser um bom início para se tentar acabar com ela. A palavra vingança pode chocar mas é a correta. No Brasil, se vive um faz de conta permanente: um esquece que foi torturado e o outro esquece que torturou." Lembra que a lei anistiou os que torturaram e mataram, e não os que morreram. E também quem sofreu tortura não foi anistiado porque continua sofrendo os seus efeitos. "Embora meu pai e outros soubessem do risco que corriam, não foi opção deles, foi a saída que encontraram porque não se conformavam com a situação do país."

A estudante de filosofia Tessa, 22 anos, não quer saber quem matou seu pai. Afirma que, se quisesse, já o teria descoberto. Também não quer vingança. Por outro lado, considera legítima a luta que a Comissão dos Familiares trava para tirar torturadores de cargos públicos e de confiança. Tessa tem claro que o Estado é que deve ser responsabilizado. Embora veja na lei falhas e limites a considera uma forma de o Estado se responsabilizar.

À parte as opiniões diversas que têm sobre a questão, esses adultos carregam dentro de si traumas de infância específicos, diferentes dos normais de qualquer criança. Marta confessa que, na verdade, a busca e o levantamento de fatos que marcaram a morte de seu pai se dá porque sente muita angústia em relação a essa história. "Se uma criança perde o pai aos 6 anos, independentemente da causa mortis, já é uma tragédia. Se o pai morreu porque era comunista, estava contra o regime militar e norteou a sua vida por um ideal coletivo de justiça, igualdade e liberdade, essa morte é inaceitável. Ela é muito dolorosa porque de alguma forma você tem que lidar com o fracasso de um ideal e é duro você crescer com essa ideia. Meu pai morreu pelo Brasil e o Brasil não sabe disso."

Rose Spina é subeditora de Teoria & Debate.