Política

O PT não incorporou o marxismo como teoria e isso bloqueou o processo de criação teórica.

Emir Sader nasceu em São Paulo em 1943. Formou-se em filosofia pela Universidade de São Paulo. Exilado em 1969, viveu no Chile, na Argentina, na Itália e em Cuba. Lecionou na Faculdade de Economia da Universidade do Chile.

De volta ao Brasil defendeu tese de mestrado Estado e Política em Marx e posteriormente doutorado em ciência política na USP, onde lecionou sociologia até se aposentar.

Atualmente, Emir é coordenador do Programa de Estudos da América Latina e do Caribe da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e presidente da Associação Latino-americana de Sociologia (Alas). Publicou, entre outros, os livros O anjo torto – Esquerda (e direita) no Brasil, O poder, cadê o poder?, A transição no Brasil – da ditadura à democracia e Cartas a Che Guevara.

A sua tese foi escrita há 30 anos, naqueles anos dourados do capitalismo, quando, aparentemente, se estava vivendo a esperança de eternizar o Estado de bem-estar social. O que o levou naquele momento a escrever sobre a concepção de Estado em Marx?

Primeiramente, a ausência de análises sobre o Estado na esquerda brasileira. O Programa Socialista para o Brasil, da organização Política Operária – Polop –, que tinha por trás cabeças importantes como Erich Sachs, Eder Sader, Rui Mauro Marini e Theotônio dos Santos, e que foi considerado com justiça o documento programático da esquerda de maior consistência e abrangência, falava do capitalismo brasileiro, pregava o socialismo, mas impressionantemente não tinha uma referência maior ao Estado, simplesmente apontado como "o Estado capitalista".

Em todos os outros documentos da esquerda naquela época a situação era mais grave ainda: queriam assaltar o Estado por meio da luta armada imediata e não havia nenhuma referência à sua natureza ou caráter. E era um tremendo Estado, constituído pelo getulismo, muito forte, presente, articulador, planificador, com políticas sociais, a que a própria ditadura deu continuidade. Aquele era um nó enorme, do qual politicamente era preciso dar conta.

A esquerda não tinha uma estratégia clara para o Brasil?

Um avanço importante nos anos posteriores ao golpe militar foi o de colocar o tema de uma estratégia de luta pelo poder. Porém, sob o impacto do livro de Regis Debray, Revolução na revolução, predominou uma concepção técnico-militar de assalto ao poder, sem incorporar os condicionamentos sociais, políticos e ideológicos. A esquerda e o grosso da intelectualidade de esquerda não se deram conta de que a partir de 1966-67 começava a se dar uma retomada do processo de expansão econômica, embora em outras bases, com concentração de renda e aprofundamento do mercado existente e não sua extensão. Foram Carlos Lessa, Antonio de Barros Castro e Conceição Tavares que alertaram para esse processo, contra as opiniões vigentes – inclusive a de Fernando Henrique Cardoso – que se norteavam pelos efeitos clássicos dos ciclos de expansão/diminuição do desemprego, redistribuição de renda etc.

Por outro lado, no marxismo nos encontrávamos só com O Estado e a revolução, o Manifesto Comunista e o Dezoito Brumário. Em geral nos detínhamos no caráter de classe do Estado, o que ajudava a iluminar suas determinações mais gerais, porém não tirávamos do Dezoito Brumário a necessidade de especificar as formas particulares de dominação e de hegemonia. Eu me interessei pelos artigos do Poulantzas anteriores a seu livro, publicados no Les Temps Modernes, ainda sartreanos e gramscianos, e me dispus a fazer uma tese tão pretensiosa como aquela sobre Estado e política em Marx.

Quer dizer que a esquerda e o marxismo não deram conta da análise do Estado brasileiro?

A esquerda e o marxismo padeceram das mesmas debilidades que tiveram em escala mundial. Acrescidas aqui da natureza ambígua do getulismo, com todas as conseqüências que esse movimento teve na modelagem do Estado brasileiro. À medida que Getúlio assumiu como tema central a questão nacional em detrimento da questão democrática – o que também aconteceu com Perón –, deixou o liberalismo como ideologia da direita livre-cambista exportadora e a burguesia industrial como caudatária do protecionismo. O PC argentino chegou a caracterizar Perón como fascista, somando-se à direita e ao governo dos EUA contra ele. No Brasil, o PC oscilou entre o enfrentamento frontal, ao denunciar o movimento dos tenentes na revolução de 30 e preparar um projeto insurrecional em 1935, até a adesão subordinada a Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart.

As debilidades do marxismo na análise do Estado se refletiram nas dificuldades para captar a natureza do getulismo e do Estado que se construiu no bojo desse movimento. O liberalismo da primeira república era o liberalismo econômico, do laissez-faire. Nem voto universal existia, muito menos Estado de direito. O getulismo, valendo-se da segregação das questões sociais – que eram "caso de polícia" –, separou radicalmente a questão social da democrática, privilegiando aquela em detrimento desta e incorporando a questão nacional.

Além disso, Getúlio reconheceu o direito à organização e à existência política, ainda que subordinada, do movimento sindical urbano. Mas a maioria esmagadora da população – os trabalhadores do campo e as donas de casa, por exemplo – seguia sem esse reconhecimento. Sacrificava-se a aliança operário-camponesa ou, se se prefere, a aliança dos trabalhadores da cidade e do campo, em favor de uma aliança que incluía o latifúndio, deslocado do papel hegemônico, mas integrante do novo bloco.

A partir da aliança do PCB com Getúlio passou a predominar uma linha sindicalista, economicista, que era a forma de valorizar o getulismo às custas das questões democrática e agrária. A reforma agrária era pensada muito mais como forma de expansão do mercado interno, como instrumento para soldar a aliança com uma burguesia industrial nacional, do que como forma de emancipação da grande massa de trabalhadores do campo.

Como se consolidou a hegemonia do PCB na esquerda?

Essa hegemonia se fundava na presença do PCB no movimento sindical urbano, em aliança com o getulismo, e na referência à URSS, em base à qual buscava um monopólio do marxismo. O surgimento de grupos à esquerda do PCB coincide com o surgimento do movimento camponês na cena política brasileira, a partir do final dos anos 50, em Goiás, Pernambuco e São Paulo, com trabalhos que viriam posteriormente a se incorporar às Ligas Camponesas, à Polop, à Ação Popular (AP) e ao PCdoB.

Que debates se davam dentro da esquerda depois do golpe?

Em primeiro lugar, o debate era a respeito da estratégia que havia levado à derrota em 1964. O PCB esteve na berlinda. Ele havia sido o partido absolutamente hegemônico na esquerda e era a expressão da linha política de aliança subordinada com frações burguesas, da qual o governo Jango seria o representante. Teoricamente se opunha esquematicamente reforma a revolução e o golpe de 64 aparecia como a derrota da via das reformas, identificada com o reformismo.

Os grupos saídos do PCB – ALN, PCBR, Dissidência da Guanabara –, a Polop e a AP – que se haviam formado fora dele –, assim como os que haviam saído antes – PCdoB e Ala Vermelha –, propunham vias insurrecionais, de guerrilha, com variantes na sua forma. Mas opunham rigidamente reforma a revolução, herdando uma leitura do debate de Rosa Luxemburgo com Bernstein.

Não havia dúvidas de que qualquer forma de luta contra a ditadura tinha que apelar para formas não-institucionais, dado que a institucionalidade era praticamente inexistente, totalmente tutelada pela ditadura. Era um campo precariamente ocupado pela tentativa de frente entre JK, Carlos Lacerda, Adhemar de Barros e Jânio Quadros e que logo se desfez. O erro da esquerda esteve em optar por uma linha de enfrentamento militar, subestimando o apoio social e as condições politico-ideológicas.

Que peso teve Cuba nos debates e definições da esquerda brasileira naquele período?

A vitória da Revolução Cubana representou a demonstração da "atualidade da revolução" – como Lukács a havia interpretado a partir de Lenin – na América Latina. Diante da crise do capitalismo latino-americano, a alternativa cubana, partindo da luta antiditatorial para rapidamente ganhar um caráter anticapitalista, apontava uma direção estimulante.

Mas toda revolução vitoriosa tende a sacralizar sua via – aconteceu com a Revolução Russa e com a Chinesa – e assim a forma particular com que a ruptura com o capitalismo havia acontecido em Cuba tendeu a se reproduzir por todo o continente, facilitada pelo livro de Debray, que desqualificava toda via alternativa, mesmo insurrecional, que não correspondesse a uma versão caricatural do que teria sido a passagem do "pequeno motor" – um foco guerrilheiro de dez homens – ao "grande motor" vitorioso do movimento de massas.

Estava-se num processo de balanço e debate de alternativas quando, conjugadas à publicação do livro de Debray e à viagem de Carlos Marighella ao Congresso da OLAS – Organização Latino-Americana de Solidariedade –, em Cuba, aceleraram-se as definições, interrompendo um amadurecimento de alternativas superadoras da linha do PCB. O documento que Marighella publica quando retorna de Cuba é ilustrativo até no seu nome: "Quem samba fica, quem não samba vai embora". Este título tinha uma conotação sobretudo militar, reforçada pelo Manual do guerrilheiro urbano, escrito por ele, no qual havia, por exemplo, um capítulo chamado: "A bala é a alma do guerrilheiro urbano". Era um drástico "Basta!" ao debate e um convite tentador à ação, respondido positivamente por militantes muito jovens e por um setor da intelectualidade.

A versão que se tornou hegemônica na esquerda era extremamente pobre em suas análises, falava de "revolução de libertação nacional", definia muito pouco a respeito da sociedade brasileira, do Estado, das classes, das alianças sociais e políticas, das táticas, das formas de dominação ideológica e das alternativas. No bojo das organizações preponderantes – ALN e VPR – a única tentativa que buscou fórmulas criadoras foi o documento que ficou conhecido pelo pseudônimo de quem o assinou, "Jamil", que era uma versão cabocla e empobrecida das análises de Frantz Fanon, Marcuse e Günder Frank, apelando para os setores marginalizados pelo capitalismo como vanguardas alternativas para justificar a guerrilha rural.

Qual era o clima cultural e teórico no final dos anos 60?

Os anos 60 haviam trazido o fim da hegemonia stalinista sobre a esquerda em escala mundial. No Brasil, se publicava Trotski, Isaac Deutscher, Lukács, Gramsci e Marcuse; chegavam os estudos de Althusser; proliferavam os grupos de estudo de O Capital; a editora e a Revista Civilização Brasileira, dirigidas por Ênio Silveira, traziam textos de Sartre, como sua carta de renúncia ao prêmio Nobel de literatura em protesto pela guerra do Vietnã, ou de Brecht, como As cinco dificuldades para dizer a verdade, textos fundamentais naquela época. Sai a revista Teoria e Prática, em meio a um florescimento do cinema e da música brasileiros. Os anos 60 chegavam fortemente ao país e eram recolhidos por uma nova geração de militantes políticos e de jovens intelectuais.

Como a derrota da luta armada se refletiu nesse cenário?

Sua derrota no Brasil, juntamente com o término de um ciclo de luta armada na América Latina – que seria reaberto posteriormente no Uruguai e na Argentina –, representou a derrota da oposição radical à ditadura militar, que não separava a luta pela democracia da ruptura com o capitalismo. Sobre os seus escombros é que se erigiu a hegemonia liberal na oposição ao regime, já não mais chamado de ditadura, mas de "regime autoritário", com uma concepção restritiva em termos da sua natureza e de alternativas de superação. A passagem da década representou a passagem de uma oposição com uma natureza de classe para outra. Até então o voto nulo era preponderante nas eleições. A partir dali, derrotada a alternativa anti-sistêmica, o protesto passou a ser canalizado para o MDB e sua concepção institucional de substituição do regime autoritário por um democrático-liberal.

Como evoluiu o Estado brasileiro durante e depois da ditadura?

O período da ditadura militar viu um formidável fortalecimento do Estado, seja do ponto de vista de sua capacidade de intervenção sobre as relações sociais, seja de sua capacidade de planejamento econômico, com expansão da infra-estrutura e uma inserção mais internacionalizada da economia. O Estado passou por um processo de revigoramento político e ideológico, valendo-se do ciclo expansivo da economia, que permitiu uma reciclagem das camadas altas da classe média – por meio do consumo, do ensino e da saúde privados –, para uma aliança com o grande capital, deixando de lado seus vínculos com os setores pobres da população.

A legitimidade do Estado diminuiu à medida que o ciclo econômico reverteu, o que favoreceu o esgotamento do regime militar e o levou a expor em toda sua plenitude a crise que atravessava desde o término do modelo desenvolvimentista.

Na década de 80 o modelo neoliberal teve dificuldades iniciais para se impor porque o país saía da ditadura com um consenso em torno do "déficit social", isto é, a transição política foi condicionada pela visão majoritária de que a ditadura havia feito crescer a economia, porém concentrando renda. Tratar-se-ia, então, de colocar a ênfase nas políticas sociais.

A recomposição do Estado brasileiro e do bloco conservador no poder passou pelo frustrado governo de Collor, até se recompor durante o governo de Itamar Franco e ganhar consistência com FHC. O bloco no poder se renovou, se expandiu o pessoal dirigente com a agregação de políticos, tecnocratas e intelectuais. Porém, o processo social resultante das políticas de ajuste fiscal aplicadas promove uma deslegitimação do Estado, por cima e por baixo, nunca vista no país. Por cima, porque a grande burguesia privatiza sua vida, se vale do Estado para se financiar, mas se desentende dos impostos, das funções sociais do Estado, da necessidade de buscar coesão social. Por baixo, a exclusão social, antes de tudo pela relegação da maioria da população à economia informal, com todas as conseqüências provenientes disso, e a falta de integração nas políticas estatais, leva a uma restrição crescente do Estado de direito e dos direitos de cidadania, debilitando o Estado, que cada vez mais volta a ser o Estado das elites dominantes, sem qualquer tipo de regulamentação da circulação do capital, restringindo a universalidade que algumas de suas políticas haviam ganho.

Como se deu a transição da ditadura à democracia nesse marco?

A hegemonia liberal se impôs mediante uma concepção que concentrava fogo sobre o Estado, identificado com o regime militar, absolvendo assim as frações de classe que davam a verdadeira natureza social da ditadura militar. A derrota da campanha das diretas e a eleição de um presidente pelo Colégio Eleitoral foram a via do novo pacto das elites, da ruptura com continuidade, que impôs um regime democrático-liberal de caráter conservador, sem alterar o poder nos bancos, nos grandes meios de comunicação, nas grandes propriedades rurais ou nos monopólios industriais.

E a intelectualidade de esquerda, como via esse processo?

O texto mais inovador, que teve mais influência, foi o do Carlos Nelson Coutinho sobre o valor universal da democracia. Em um país em que a democracia tinha sido uma quimera, em que nem a esquerda havia enfrentado a questão democrática em toda a sua extensão e profundidade, esse texto representou uma novidade radical. Ele fez o que devia fazer. Não se pode esperar que ele resolvesse todos os problemas que levantou. Houve leituras que favoreceram uma concepção liberal da transição democrática, subestimando sua dimensão social. Essa era uma leitura possível do texto. A problemática gramsciana chegava por essa via, mas a esquerda não soube integrá-la, enraizando na nossa história e na nossa luta social, política e ideológica o conceito de hegemonia, o que teria sido um diferencial teórico marcante na sua ação nos anos 80 e 90. O acento na questão democrática acabou se fazendo às expensas das análises sobre a crise do capitalismo brasileiro e, como muito bem observou José Luis Fiori, a esquerda terminou entrando nos anos 80 desaparelhada para entender a profundidade da crise capitalista no Brasil, incluída a do Estado, esperando que a democracia resolvesse todos os nossos problemas.

Quais as diferenças entre a teoria do autoritarismo do FHC daquela época e de hoje?

A teoria do autoritarismo se tornou a teoria da transição conservadora à medida que defendia a tese de que quem era hegemônico no governo militar era uma espécie de burguesia de Estado, absolvendo portanto os grandes capitais privados. Em alguns momentos Fernando Henrique fala até em setores militares, mas ao contrário da concepção de Guillermo O’Donnell, para quem se tratava de um Estado burocrático-militar, em Fernando Henrique faltam sintomaticamente duas dimensões essenciais: a militar e a monopólica. Daí a idéia de que a democracia significaria simplesmente a desconcentração de poder econômico e político.

Disto decorre uma visão restritiva da reforma do Estado, pensada apenas como aparato administrativo que "gasta muito". A ótica do ajuste fiscal domina toda a ação do governo. Desapareceu a temática democrática, como se a reforma do Estado não tivesse que significar basicamente sua desprivatização e sua reconstrução centrada na esfera pública. Democratização foi substituída por privatização, como manda o liberalismo, que opõe estatal a privado, fazendo coincidir este com o mercado e ignorando o outro termo da questão: o público.

A desregulamentação econômica, com suas projeções sobre os planos social e político, é o princípio norteador das políticas do governo FHC. Multiplicam-se os espaços sociais em que não há nenhuma regulamentação – a saúde, a habitação, a criminalidade, os serviços de luz, de água, as taxas bancárias, a sonegação fiscal, as relações de trabalho. Se mais da metade dos trabalhadores não tem mais carteira de trabalho, então as relações de trabalho que estão na Constituição como um direito, que foram a forma clássica do capitalismo socializar as pessoas, passam a ser uma fonte de exclusão social, produto das relações desregulamentadas entre o grande capital e uma força de trabalho desprotegida. Esse é um retorno a uma situação de selvageria social.

Como a esquerda enfrentou esse processo?

A esquerda não foi capaz de se impor hegemonicamente, antes de tudo porque não dispunha de uma concepção que abordasse em toda a sua amplitude a crise do Estado e do capitalismo brasileiros. Sua visão democrática radical se limitava aos marcos do liberalismo, do antiestatismo. A CUT brigava para que o Estado estivesse ausente das negociações salariais entre patrões e trabalhadores num país com um desemprego estrutural e um excedente de mão-de-obra que sempre deixarão os sindicatos em inferioridade nas negociações. Confundia-se Estado com regime. Queria-se afastar a ditadura e sua política de arrocho salarial, desembocando numa visão laissez-fairiana das relações sociais. Apostava-se numa autonomia dos movimentos sociais que desobrigava a pensar o formato de Estado compatível com a democracia com alma social que o Brasil requeria e continua a requerer.

A única corrente teórica consistente que surgiu no PT foi a autonomista, no momento em que se tinha grande confiança em que a retração do movimento sindical iria coincidir com o surgimento de novos movimentos sociais que ocupariam seu lugar. O livro fundamental do Eder Sader, Quando novos personagens entram em cena, expressava essa visão. No entanto essa corrente se centrava no conceito de autonomia, formulado por Leffort e Castoriadis, quando a realidade pedia a gritos a radicação no país do conceito gramsciano de hegemonia. Ainda assim, não houve continuidade naquela elaboração para dar conta da crise dos novos movimentos sociais, desde então e, mais recentemente, do surgimento do MST.

Que avaliação você faz da atuação do PT na transição?

O PT agiu corretamente não se comprometendo com o pacto do Colégio Eleitoral, que é o responsável por todas as conseqüências negativas da transição política. Nem sei se hoje, colocado naquelas circunstâncias, o PT agiria com a mesma radicalidade correta e necessária. Mas naquele momento foi uma atitude corajosa e que rendeu os melhores frutos ao criticar a conciliação das elites, que levou o PMDB à bancarrota junto com o governo Sarney.  

A expressiva votação do PT nas eleições de 1988 e 1989 veio da força de massas e ideológica que havia acumulado ao longo da década de 1980. Como partido que acreditava que uma solução para o país viria da composição de um bloco alternativo forjado na luta de massas e na participação crítica nos processos institucionais, o PT tornou-se o grande fator de transformação democrática radical.

Esse processo se esgotou?

Certamente perdeu seu impulso inicial. A luta por justiça social, contra a corrupção, por um Estado de direito, embora vigentes, são insuficientes para constituir um projeto alternativo de sociedade. O PT não incorporou o marxismo como teoria, como método de análise, e isto bloqueou um processo de criação teórica, de constituição de uma produção intelectual e de uma intelectualidade à altura do desafio da crise brasileira global.

Depois do triunfo de FHC em 1994, o PT não desenvolveu um processo de balanço e de análise de como tinha se dado a reciclagem do modelo hegemônico por parte da grande burguesia. O novo bloco dominante não é apenas o velho bloco da ditadura ou o que se organizou em torno do Collor, embora tenha elementos dos dois. As próprias transformações levadas a cabo pelo neoliberalismo alteram o solo sobre o qual se assenta a luta de classes. Sem essa compreensão é impossível ter consciência sobre as forças sociais que estão se enfrentando, sobre a natureza e a profundidade dos dilemas atuais e suas projeções sobre o futuro do Brasil.

Nesse sentido, há uma dimensão teórica da crise brasileira que o PT não incorporou. Além disso, ele deixou de ser um partido presente em todas as lutas sociais como seu animador e que construía sua força política dessa prática. Sua institucionalização foi profunda, com reflexos na redução do partido praticamente a uma estrutura organizativa central e outras em torno dos mandatos conquistados.

Na primeira vez em que participou de eleições, em 1982, o PT praticamente pedia desculpas por participar num processo em que manifestamente não acreditava. Depois, passou a participar automaticamente, sem esclarecer o lugar que essa atividade teria na luta mais geral por uma transformação radical – eu diria, revolucionária, socialista – da sociedade brasileira. Seu timing passou a ser ditado pelo calendário eleitoral. Ainda assim, quando a prática social e ideológica do partido e do movimento social ligado a ele foi grande e eficiente, essa força convergiu para as eleições e os resultados foram positivos, crescentes. Porém, passou-se a um marasmo de atividades fora das estruturas institucionais e o PT passou a não ter forças específicas para mobilizar nas eleições. Com isso, a adesão foi sendo cada vez mais passiva, o que, por sua vez, acentuou a institucionalização do partido. Suas atividades deixaram de abarcar os dois planos, o da luta institucional e o do movimento de massas, o que havia se tornado mais difícil pela própria retração das organizações de massa sob o impacto das políticas neoliberais. O PT, porém, passou a ter uma prática reativa, sem recuperar a capacidade de iniciativa.

Mas o pensamento da esquerda evoluiu nesse período?

O pensamento político da esquerda tem sido extremamente pobre. As questões da socialização do poder, da construção das forças políticas e sociais, do Estado de direito, da democratização do Estado estão praticamente ausentes, mesmo hoje. Quando ela pensa a questão da recomposição do aparelho do Estado, se centra na sua capacidade de ter propriedade ou não. Hoje é essencial um projeto de transformação radical do Estado. Esse Estado não tem mais viabilidade a não ser por meio da integração política dos direitos, da organização política da cidadania, da promoção da totalidade da população à condição de cidadãos, de sujeitos reais de direitos, da difusão de ideologias de socialização.

No entanto, a plataforma da esquerda se limita a uma visão muito restrita dos pontos comuns apresentados na resistência às ofensivas liberalizantes do governo FHC. Uma esquerda socialista, anticapitalista, na realidade não elabora uma plataforma de governo. Ela tem uma análise do capitalismo e um programa de transformações revolucionárias, que desembocam no tipo de sociedade pela qual se luta. Daí ela extrai seus programas de ação, inclusive suas plataformas eleitorais.

Como explicar essa indigência teórica da esquerda brasileira?

Se a esquerda não é depositária de uma análise profunda, original e criativa sobre o país, isto se deve, em grande parte, ao abandono do marxismo como instrumento essencial de análise, revigorado pela reinstauração de um capitalismo de mercado, para a análise do qual o marxismo foi criado. Não há nenhum partido com fôlego histórico – PC ou social-democrata – que não tenha criado sua teoria, sua intelectualidade, suas concepções, sua particularidade ideológica. O PT não criou sua própria intelectualidade nem sua teoria. Ele passou quase em brancas nuvens, do ponto de vista teórico, sua década e meia de existência. Isso é atestado de que, fora de um arcabouço de análise mais geral marxista, dificilmente é possível forjar uma teoria e uma ideologia transformadoras da realidade. Ao PT falta, hoje, antes de tudo, uma visão da sociedade brasileira, do que mudou na última década e meia e particularmente nos últimos quatro anos. Mas, além disso, falta definir qual é o seu lugar na sociedade, o que ele está representando, a quem está se opondo e com quem está se aliando.

Qualquer que seja o resultado das eleições de 1998, o PT requer uma refundação, se deseja sobreviver como partido. O PT nunca fez a teoria da sua prática e precisa partir daí, não da sua história interna, mas de sua história integrada à evolução do país na última década e meia. Não se trata de um simples retorno às suas origens, que é impossível, mas de uma verdadeira refundação, que parta de uma análise profunda da trajetória do país e de si mesmo para desembocar num projeto anticapitalista abrangente.

Em outros períodos houve uma relação mais orgânica entre a intelectualidade e a prática política?

O saber e as estruturas universitárias foram um elemento orientador do pensamento da esquerda brasileira com todas as vantagens e desvantagens. Possibilitaram uma visão mais heterodoxa do pensamento marxista em relação ao marxismo soviético, mas nada substitui o partido como "memória histórica" dos trabalhadores, com seu enraizamento social e político.

A intelectualidade marxista brasileira tem a força e a debilidade do marxismo ocidental: uma grande capacidade de análise teórica, incorporando o que de melhor o marxismo elaborou ao longo deste século, porém pouca capacidade de análise econômica, histórica e política. O marxismo brasileiro dependeu das importantes contribuições da Cepal (Comissão Econômica Para a América Latina), mas isto também representou a incorporação de uma tendência ao capitalismo de Estado, uma debilidade na análise de classes da sociedade e das relações internacionais na ótica do imperialismo. Sem uma visão atualizada sobre o processo de acumulação de capital na periferia do capitalismo e no Brasil, em particular, dificilmente se poderá construir uma visão histórica adequada, que desemboque em conclusões políticas ricas e inovadoras.

O PT foi herdeiro do melhor da intelectualidade brasileira, mas não soube, até aqui, fazer valer essa extraordinária vantagem. A intelectualidade opta preferencialmente pelo PT, mas isso afeta pouco sua prática intelectual, determinada pelas instâncias universitárias, sem que o partido se converta em um pólo de debate, de atração, de definição de temáticas.

Especialmente nestes últimos quatro anos, a intelectualidade de esquerda e a própria esquerda foram caudatárias dos temas colocados pelas políticas econômicas do governo. A perda de iniciativa é sempre sintoma de um revés, que aconteceu ideologicamente no governo Collor, quando as reformas neoliberais ocuparam a agenda teórica e política do país. A campanha do Lula de 1994 tentava se apoiar nos elementos de força da esquerda remanescentes do período anterior, a justiça social (através das caravanas) e a luta contra a corrupção, esperando que o candidato do bloco dominante fosse Sarney, Quércia ou alguém desse tipo. Era uma tentativa de navegar na popularidade do Lula, empurrada por uma certa inércia, até que o tema da estabilidade monetária e do déficit público – ausentes do programa do PT – romperam com essa inércia e deixaram o Lula deslocado.

O que a esquerda não pode é perder nos votos e nas idéias. Uma vitória em 1994, com aquele programa, talvez conduzisse a uma derrota política. Mesmo uma derrota em 1998 pode significar uma vitória política, conforme a campanha e a força social, política e ideológica que se acumule.

O que caracteriza o processo vivido pela intelectualidade brasileira nos anos 90?

A aparição de um intelectual com trajetória de esquerda, como o FHC, que assume a coordenação e o aggiornamento do bloco conservador no poder. Quantos desses intelectuais que aderiram o teriam feito se o processo fosse levado a cabo, por exemplo, por um tecnocrata sem nenhum encanto como o José Serra? Então, além da adesão política, há também elementos subjetivos, gente cuja identidade política se projetava na experiência do Fernando Henrique como intelectual que se lançava na política e para os quais uma ruptura com ele não seria apenas um ato político, mas até psicanalítico.

Essa intelectualidade acompanhou FHC na crítica à esquerda. Uma das suas características é a falta de coragem para combater os fortes e sua disposição plena de golpear os fracos. Nada lhe agrada mais do que coincidir com as elites. É forte com os fracos e fraca com os fortes. Quem de peso nas elites é combatido por FHC?

No entanto, quando em 1997 começou a mudar o clima político mundial, com as vitórias de [Tony] Blair, Jospin, da FMLN (Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional) em El Salvador, do PRD (Partido Revolucionário Democrático) no México, da aliança opositora na Argentina, FHC convocou uma entrevista na Veja para dizer que ele era a "nova esquerda". Ele percebeu que estava demasiado comprometido com a direita e o pensamento liberal conservador e tratou de se reciclar para as eleições de 1998.

Como você vê a divisão de tendências dentro do PT?

As tendências à esquerda têm a vantagem e a desvantagem da propaganda. Elas não têm vocação hegemônica, são radicalmente críticas dos desvios institucionalistas da direção do PT mas não têm projeto alternativo, basicamente porque sua crítica se faz do ponto de vista da doutrina. Ela não é equivocada por isso, mas toda teoria que não se ancora na realidade concreta não ganha capacidade criativa, fica presa às formulações conceituais.

As tendências majoritárias se ataram ao processo institucional e se distanciaram, por exemplo, da dinâmica dos sem-terra e tampouco têm mostrado qualquer fertilidade teórica e política. Estes últimos quatro anos foram os piores na história do PT, sem iniciativas, com perda da capacidade de convocação, confusão política e ideológica e, principalmente, perda de entusiasmo.

Você vê o Movimento dos Sem-Terra com grande entusiasmo...

Uma das grandes novidades dos sem-terra é que sua ação chama a atenção para os problemas do povo brasileiro e, ao mesmo tempo, denuncia um processo de corrupção da elite – inclusive de uma parte da elite intelectual – pelo poder. Eles querem terra e condições de trabalho agora, não interessam as condições legais; interessa o direito ao trabalho que se sobrepõe ao direito à propriedade. Uma série de coisas muito elementares que a intelectualidade deixou de exigir.

O processo de formulação do documento do MST é de outra ordem. Foi um processo de enraizamento nas temáticas sociais, que se chamou de consulta popular. Originalmente era um documento pequeno, que passou pelo debate em 25 estados. Na reunião final de elaboração do documento alternativo para o Brasil, em Itaici, havia cerca de trezentas pessoas. Gente de todos os estados: basicamente militantes sociais, mas também padres, intelectuais, deputados, jornalistas.

Houve uma mobilização da intelectualidade que pensa as coisas do país, alguns diretamente ligados ao movimento social, outros que têm uma reflexão multidisciplinar. O César Benjamin, que coordenou o processo de elaboração do projeto, é o caso mais representativo: alguém que não se formou na vida acadêmica, um autodidata que alia sólidas noções teóricas de economia com conhecimento empírico. Ele recolheu opiniões do país inteiro para desembocar num documento básico.

O MST percebe que a resolução da questão agrária passa por todo o processo social e político que o país vai viver ao longo desta década e da próxima. No documento são destacados os elementos de força que particularizam a situação do Brasil, como, por exemplo, a extensão territorial, os recursos em matérias-primas, o mercado interno potencial, e que lhe dão condições de alavancar um novo ciclo de desenvolvimento, vetado para outros. É enfocada a idéia da distribuição de renda como um fator positivo, uma alavanca de crescimento. Num país desenvolvido, em que a massa da população tem o grosso de suas necessidades satisfeitas, é preciso criar novas necessidades para poder ampliar o consumo. Aqui, basta atender as demandas básicas da população para gerar um novo ciclo de crescimento.

Numa entrevista à revista Praga, o João Pedro Stédile fala da aliança do partido de massas, que incluiria PT, CUT, Igreja progressista, MST e a Central dos Movimentos Populares. Você acha viável a construção de um bloco desse tipo?

Essa aliança de alguma forma existe, mas um bloco hegemônico vencedor tem que ir muito além. É necessário pensar em alianças com outras forças que podem não ter estrategicamente a mesma concepção mas sem as quais pode-se chegar a uma resistência ampla mas não se ganha. Amplos setores de classe média e da intelectualidade têm de estar integrados, assim como setores do empresariado que se comprometam com um projeto de desenvolvimento vinculado à extensão do mercado interno e à redistribuição de renda. Embora não seja um projeto de ruptura com o capitalismo, ele está na contramão das suas tendências gerais, da lógica predominante de acumulação. Se chegar a ser colocado em prática, vai aprofundar contradições centrais do capitalismo. Esse projeto permitirá recompor laços básicos de sociabilidade, de organização e de consciência social, condições para transformações históricas mais profundas.

O drama é que as iniciativas da oposição ficaram muito mais a cargo do MST do que do PT. Quem está fazendo o papel de força articuladora é uma força social – o MST –, necessariamente radical como deve ser um movimento rural num país tão injusto socialmente. Daí que possa haver uma tendência para uma linha de "classe contra classe", que seria uma visão restritiva, sem capacidade hegemônica.

Fica assim faltando o papel específico de um partido, de direção política, de análise da realidade, de intercâmbio fértil com a intelectualidade crítica, de orientação para o movimento de massas, de organização das grandes alianças sociais e políticas, de definição do caráter da luta ideológica e cultural.

Fernando Haddad é professor de Ciência Política na Universidade de São Paulo.