Economia

Crescente e grave, o desemprego no Brasil, longe de ser uma questão individual de adaptação às novas exigências do mercado de trabalho, é fruto tanto de mudanças estruturais na economia como de uma política de estabilização monetária que remunera generosamente o capital especulativo internacional

É curioso que um drama que se revela como grande preocupação dos cidadãos do país seja objeto de teses tão díspares quanto à sua existência e à sua gravidade! Há aqueles que defendem que não temos crise de desemprego, postulando a existência de uma síndrome coletiva de percepção ampliada sobre o tema, como se o fato objetivo de existirem desempregados em até 37% das famílias1não fosse relevante para o aumento da indignação pública.

As análises que defendem a tese de que o desemprego no Brasil é pequeno se respaldam nos resultados da PME (pesquisa mensal de emprego), realizada pelo IBGE, que de fato apresentavam taxas reduzidas para a média das seis regiões metropolitanas abrangidas2. Isto se deve ao fato dessa estatística considerar um conceito bastante restrito de desemprego, o desemprego aberto, que implica a realização de nenhuma atividade remunerada na semana anterior à pesquisa no domicílio e procura ativa de emprego durante o mesmo período. Na presença desses dados e de outros que indicam a precarização do mercado de trabalho, essas análises negligenciam a gravidade do desemprego e ressaltam o problema da baixa qualidade das ocupações disponíveis. Seríamos, desta forma, um "Eldorado" de baixas taxas de desemprego, num mar de mac-jobs, usando um termo para gostos mais refinados ou de "bicos" mal-remunerados e instáveis, como é mais adequado para a nossa língua. Em síntese, esse é o fenômeno notável identificado nessas análises: um mercado de trabalho flexível de fato, que gera muitos empregos de baixos salários.

No entanto, recentemente, a taxa de desemprego do IBGE cresceu abruptamente, subindo de 4,84%, em dezembro, para 7,42% em fevereiro de 1998, crescimento de 53% em dois meses! Esse fato gerou uma curiosa declaração do ministro do Trabalho, de que não tínhamos uma crise de emprego, mas tendências preocupantes, que deveriam ser contidas com medidas adequadas. Mais preocupante ainda é saber que esse crescimento se dá após o choque de juros realizado em outubro de 1997, adotado para conter a fuga de capitais iniciada com as notícias do início da crise asiática, o que expôs nossa fragilidade externa para o mundo ver. Nesse sentido, novos choques podem voltar a ocorrer, a depender do desenvolvimento da crise asiática e de seus efeitos sobre o mercado norte-americano.

Por outro lado, há análises que enfatizam que temos no país ambos os problemas: crise de desemprego e precarização do mercado de trabalho. Essas se baseiam nas pesquisas de emprego e desemprego que utilizam a metodologia desenvolvida pelo Dieese e pela Fundação Seade. Nelas, o conceito de desemprego é mais abrangente, elaborado no sentido de captar situações mais complexas de desemprego, típicas de países com mercados de trabalho muito heterogêneos e com sistemas públicos de emprego bastante restritos e incipientes. Isso significa que freqüentemente as pessoas que perdem seus empregos são obrigadas a realizar "bicos" para sobreviver, atividades sem as características de assiduidade e continuidade, enquanto procuram ativamente por um emprego. Para Dieese/Seade essa é uma situação de desemprego, para o IBGE é uma ocupação3.

O desemprego brasileiro existe, é grave e crescente. Grave, porque dobrou desde o início da década de 90 e está disperso pelas principais regiões metropolitanas do país4. Crescente, pois que dependente tanto de uma política de estabilização monetária - o Plano Real - que remunera generosamente o capital especulativo internacional, diminuindo o incentivo para os investimentos produtivos5 e a geração de empregos, como de mudanças estruturais na economia, potencializadas pela sobrevalorização da moeda.

Um mergulho mais aprofundado nos dados, a partir de tabulações especiais da PED-SP, permite desvendar um cenário aterrador. Em primeiro lugar, as pessoas desempregadas enfrentaram, em média, 16 meses de desemprego em 1997. Muito acima do que é considerado como desemprego de longa duração nos critérios da OCDE (acima de 6 ou de 12 meses). Temos 21,6% dos desempregados com mais de seis a doze meses de desemprego, 15,4% com mais de um a dois anos e 13,2% com mais de dois anos.

Considerando que o atual seguro-desemprego prevê o pagamento de parcelas apenas durante um período de 3 a 5 meses6 e que a média de desemprego é de 16 meses, isso significa que o desempregado fica sem cobertura alguma de 11 a 13 meses. Poderia ser dito que há ainda o recurso ao FGTS pago no momento da demissão sem justa causa. Mas como o tempo médio de permanência no último emprego é de 24 meses, isso significa que o trabalhador recebe no máximo três salários após a homologação da demissão (FGTS e multa de 40%) e passará muitos meses vivendo de bicos, enquanto procura um novo emprego, da poupança familiar ou de empréstimos.

Os mais atingidos pelo desemprego são as mulheres, que ficam 21 meses desempregadas (homens, 11 meses), pessoas de 40 anos ou mais, com 25 meses; e cônjuges, com 32 meses (chefes de família, 14 meses).

É importante notar que, recentemente, as centrais sindicais brasileiras propuseram mudanças na lei do seguro-desemprego no sentido de contemplar o atributo da idade, pois o tempo de desemprego é maior para as pessoas com mais idade e é necessário, portanto, garantir a elas, renda por um período mais longo.

Características do desempregado

O fato de o desemprego afetar mais intensamente, considerando sua duração, as mulheres, pessoas de 40 anos ou mais e cônjuges não significa, no entanto, que os desempregados tenham necessariamente essas características, como veremos abaixo.

Distribuição por sexo

O fenômeno de crescimento da participação das mulheres no mercado de trabalho, num contexto de discriminação do trabalho feminino, implica que elas sofram os efeitos das crises de desemprego de forma mais contundente. Se por um lado elas representam quase a metade dos desempregados na Grande São Paulo, 49,2% e desta forma são atingidas tanto quanto os homens, por outro, permanecem mais tempo desempregadas e as taxas de desemprego para elas são estruturalmente mais elevadas que as dos homens.

Distribuição por faixa etária

Os desempregados estão basicamente na faixa etária de 18 a 24 anos, 29,8%, e de 25 a 39 anos, 32,4%. Apesar das pessoas acima de 40 anos ficarem mais tempo desempregadas, elas representam apenas 17,3% do contingente total em situação de desemprego. Mas estão submetidas à recorrência do desemprego, já que 56,1% delas ficam empregadas por no máximo 1 ano! O caso das pessoas acima de 40 anos é extremamente sério, pois têm maior dificuldade de voltar ao mercado de trabalho depois da demissão, principalmente ao considerar que estão ocorrendo mudanças estruturais nas empresas, principalmente devido à adoção de novas tecnologias e formas de organização do trabalho. Nesses casos, há uma preferência em recrutar jovens para as funções de conteúdo tecnológico mais avançado, negligenciando o treinamento ou retreinamento dos trabalhadores em faixas etárias mais avançadas. Esse comportamento está ancorado numa pretensa dificuldade dos trabalhadores mais experientes em tecnologias do modelo fordista de organização do trabalho em se adaptar ao modelo pós-fordista.

As taxas de desemprego são maiores para os jovens de 10 a 17 anos. Desse contingente, 40% procuram emprego e não encontram. E mais baixas para as pessoas acima de 40 anos, 9,2%. Isso significa que esses últimos são afetados menos intensamente pela rotatividade do que os outros, permanecem mais tempo no emprego, 50 meses, mas uma vez que tenham perdido seus empregos têm mais dificuldade para retornar ao trabalho.

Distribuição por posição no domicílio

Considerando a posição no domicílio, os desempregados são em sua maioria filhos (45,3%)e cônjuges (17,3%). Isso significa que a chamada mão-de-obra secundária é mais afetada pelo desemprego, o que não diminui a gravidade de encontrarmos entre os desempregados 25,6% de chefes de domicílio. O desemprego de jovens novamente reaparece de forma clara nesses dados, expresso na taxa de desemprego de 25,6% para os filhos.

Conclusões
Frente ao quadro descrito, ampliar a geração de oportunidades de trabalho é essencial, tendo como objetivo o pleno emprego. Medidas em dois níveis são necessárias: o econômico (através de políticas ativas e passivas) e o institucional. A adoção de políticas ativas de emprego (que ampliam a sua oferta) deve ser priorizada, o que implica orientar os investimentos públicos para projetos com alto poder multiplicador; como aqueles de infra-estrutura produtiva (transportes, saneamento básico, eletrificação rural, irrigação) e de infra-estrutura social (saúde, educação, habitação popular). Esses gastos têm o raro atributo de ampliar a produtividade do sistema econômico, produzindo empregos e com baixo coeficiente de importações.

Não se deve abandonar, no entanto, as políticas passivas, de garantia de renda aos desempregados e formação profissional, pois enquanto as ativas estão constrangidas por uma política macroeconômica que agride a geração de postos de trabalho, elas são absolutamente necessárias. Assim há que se melhorar a cobertura do seguro-desemprego, segundo proposta das centrais sindicais (CUT, Força Sindical e CGT), aumentando suas parcelas em até doze meses, segundo faixas de idade. Também é necessário ampliar o atendimento aos desempregados por intermédio de organismos públicos não-estatais (entidades sindicais, principalmente), de forma a aprofundar a capilaridade de um sistema ainda muito restrito e deficiente. Os investimentos em formação profissional são importantes, mas é necessário alertar que não constituem uma panacéia.

Empregos são gerados por economias em crescimento, por novos investimentos produtivos e não pela disponibilidade de trabalhadores qualificados. A ideologia da empregabilidade deve ser desvendada com clareza, pois ela desloca a questão do desemprego do âmbito social para o individual: aquele trabalhador que se preparar para os novos tempos, se requalificando permanentemente, criará o seu próprio emprego. Assim, o desemprego torna-se um problema do fracasso ou sucesso de empreendedores individuais, que devem ter o discernimento, a visão do futuro, a agressividade para ocuparem seus espaços no mercado de trabalho7. É sem dúvida a forma mais cruel de transferência da responsabilidade do poder público, para a vítima do fenômeno.

Mudanças institucionais também devem ser feitas para aumentar a absorção de trabalhadores pela economia. Duas delas, em particular: a redução da jornada de trabalho, com limitação do uso de horas extras8. A redução da jornada de trabalho é a saída histórica para situações em que a produtividade cresce de forma sustentada (reduzindo empregos), crescimento esse que vem ocorrendo no Brasil há vários anos. As propostas de flexibilização dos direitos trabalhistas para estimular a contratação através da redução do custo salarial para as empresas não foram bem-sucedidas na Europa, como vêm alertando a OIT e a Unctad. O caso espanhol é paradigmático: os contratos de trabalho foram flexibilizados e, no entanto, o desemprego continuou crescendo.

Por último e mais importante: é preciso mudar a política macroeconômica brasileira, que restringe, pela sua lógica, o crescimento econômico. O PIB brasileiro tem evoluído a taxas decrescentes desde 1995, após a crise mexicana. As estimativas são de que, em 1998, o crescimento da economia será de 1,5%, basicamente da mesma dimensão que o crescimento da população, o que implica estagnação relativa.

O desemprego não pode ser considerado uma estatística, da mesma forma que não podemos confundir a doença com o termômetro. Tampouco é uma variável econômica, resíduo indistinto de políticas de ajuste macroeconômico, resultado do lamentável trade-off da curva de Phillips: salário real ou emprego; inflação ou desemprego.

A tragédia do desemprego tem rosto, se revela no desespero dos que se submetem diariamente, em vão, à procura de um trabalho; na lenta e cruel degradação psicológica provocada pela sensação de fracasso pessoal e social; no desalento de percorrer um deserto sem solidariedade; na exclusão inexorável de milhões de pessoas dispostas ao trabalho.

Não se pode descansar enquanto um único ser humano procura por trabalho e não encontra. Não há nível de desemprego aceitável, como não há famintos que possam esperar pela próxima primavera.

Antonio Prado é economista, coordenador de produção técnica do Dieese e professor da PUC-SP e USJT.