Política

Seja na filosofia, na política, na cultura, na história ou na ética, a obra de Mariátegui é perpassada por um potente sopro romântico-revolucionário, que dá à sua concepção marxista do mundo uma qualidade única e uma força espiritual visionária

José Carlos Mariátegui não é apenas o mais importante e criativo dos marxistas latino-americanos, é também um pensador cuja obra, por sua força e originalidade, tem um alcance universal. Seu marxismo herético apresenta afinidades profundas com alguns dos grandes autores do marxismo ocidental - Gramsci, Lukács ou Walter Benjamin.

No coração da ortodoxia mariateguista, da especificidade de seu discurso filosófico e político marxista encontra-se um núcleo irredutivelmente romântico.

Em um célebre artigo de 1941, V. M. Miroshevski, eminente especialista soviético e conselheiro do Comitê Latino-americano do Komintern, denunciava o "populismo" e o "romantismo" de Mariátegui. Aos porta-vozes da ortodoxia (stalinista) bastava acusar Mariátegui deste pecado mortal, o romantismo, para demonstrar de modo definitivo e irrefutável que seu pensamento era avesso ao marxismo1.

Ora, já é hora de se perceber - e o exemplo de Mariátegui é admiravelmente ilustrativo disto - que, antes de contraditórios, romantismo e marxismo são perfeitamente compatíveis e podem enriquecer-se mutuamente.

Romantismo e capitalismo

O que é o romantismo? É um movimento cultural que nasce no final do século XVIII sob a forma de um protesto contra o advento da civilização capitalista moderna e o desenvolvimento da sociedade burguesa/industrial baseada na racionalidade burocrática, no reinado mercantil, na quantificação da vida social, e o "desencantamento do mundo" (segundo a célebre fórmula de Max Weber). De seu surgimento em diante, com Jean Jacques Rousseau e o Frühromantik alemão, o romantismo não deixará mais o cenário da cultura moderna e se constituirá, até os dias atuais, em um dos princípios estruturas-de-sensibilidade de nossa época. Nada é mais falso e mais superficial do que reduzi-lo a um estilo literário. O romantismo se manifesta em todos os domínios da vida cultural enquanto uma ampla visão de mundo: nas artes, na literatura, na religião, na política, nas ciências sociais, na historiografia, na filosofia. Sua característica primordial é a crítica da sociedade burguesa moderna a partir de valores sociais, culturais, éticos, estéticos ou religiosos pré-capitalistas. Ao opor aos valores puramente quantitativos da civilização industrial os valores qualitativos da Kultur espiritual e moral, ou à Gesellschaft [sociedade] individualista e artificial a Gemeinschaft [comunidade] orgânica e natural, a sociologia alemã do final do século XIX formulava de modo sistemático essa nostalgia romântica do passado, essa tentativa por vezes desesperada de reencantamento do mundo.

Longe de ser homogênea, a nebulosa cultural romântica traz consigo uma pluralidade de correntes: do romantismo conservador ou reacionário, que aspira ao restabelecimento dos privilégios e hierarquias do Ancien Régime, ao romantismo revolucionário, que incorpora as conquistas de 1789 (liberdade, democracia, igualdade), e para o qual o objetivo não é um voltar atrás, mas sim um desvio pelo passado comunitário em direção a um futuro utópico; do irracionalismo obscurantista e intolerante à crítica humanista da racionalidade instrumental e burocrática.

Embora esquecido, o romantismo revolucionário representa uma dimensão crucial do pensamento de Marx e Engels. Ele se manifesta em seus escritos de múltiplas formas, das quais uma das mais importantes é provavelmente sua concepção do comunismo moderno enquanto restabelecimento de certos traços das comunidades primitivas. Como escreveu Marx em sua carta de 1881 para Vera Zassulitsch, a abolição revolucionária do capitalismo significará "o retorno (Rückkehr) das sociedades modernas ao tipo 'arcaico' de propriedade comunitária" ou, mais precisamente, "um renascimento do tipo de sociedade arcaica sob uma forma superior". Um renascimento que integra, conseqüentemente, todas as conquistas técnicas da civilização européia moderna2. Para ele, não se trata de uma simples referência histórica: nos países - como a Rússia - onde a comunidade rural havia conseguido manter-se (pelo menos parcialmente), ela poderia servir diretamente de ponto de partida para a transição ao socialismo.

É em linha de ruptura deliberada com essas idéias de Marx, que não deixavam de apresentar pontos em comum com as dos populistas russos, que Plekhanov irá formular sua doutrina pretensamente "marxista ortodoxa", que exalta o progresso capitalista e proclama a necessidade inevitável de uma etapa histórica democrático-burguesa para tirar a Rússia de seu atraso feudal e asiático - dogma menchevique do qual se reivindicam, sob diversas e variadas formas, todos os críticos (stalinistas ou apristas) de Mariátegui.

A partir do final do século XIX, surgem assim duas tendências no interior do marxismo: uma corrente positivista e evolucionista, para a qual o socialismo nada mais é do que a continuidade e o coroamento da civilização industrial/burguesa - Plekhanov, Kautsky e seus discípulos na II e III Internacionais -, e uma corrente que poderíamos designar romântica, na medida que critica as "ilusões do progresso" e esboça uma dialética utópico-revolucionária entre o passado pré-capitalista e o futuro socialista - de William Morris aos marxistas ingleses atuais (E. P. Thompson, Raymond Williams), de Lukács e Bloch a Walter Benjamin e Herbert Marcuse.

Mariátegui e o romantismo

José Carlos Mariátegui é parte dessa corrente, de um modo original e em um contexto latino-americano muito diferente do britânico ou o da Europa Central. Durante sua estada na Europa, Mariátegui assimilou simultaneamente o marxismo e certos aspectos do pensamento romântico contemporâneo: Nietzsche, Bergson, Miguel de Unamuno, Sorel, o surrealismo.

A visão de mundo romântico-revolucionária de Mariátegui, tal qual a formula em seu célebre ensaio Dos concepciones de la vida, de 1925, opõe ao que ele denomina "a filosofia evolucionista, historicista, racionalista", com seu "culto supersticioso do progresso", a aspiração a um retorno ao espírito de aventura, aos mitos heróicos, ao romantismo e ao donquixotismo (termo que ele recupera de Miguel de Unamuno). Com essa postura, Mariátegui se autoproclama dos pensadores que, como Georges Sorel, refutaram as ilusões do progresso. Duas correntes românticas, que rejeitam essa "rasa e confortável" ideologia positivista, se enfrentam em uma luta à morte: o romantismo de direita, fascista, que quer retornar à Idade Média, e o romantismo de esquerda, comunista, que quer avançar até a utopia. Despertadas pela guerra, as "energias românticas do homem ocidental" encontraram uma expressão na Revolução Russa, que conseguiu conferir à doutrina socialista "uma alma combatente e mística"3

Em um outro artigo "programático" da mesma época, "El hombre y el mito", Mariátegui se regozija com a crise do racionalismo e o desmoronamento do "medíocre edifício positivista". Frente à "alma desencantada" da civilização burguesa a que faz referência Ortega y Gasset, ele torna sua a "alma encantada" (Romain Rolland) dos criadores de uma nova civilização. O mito (no sentido soreliano) é a sua resposta ao entzauberung der Welt [desencantamento com o mundo] (Weber) e à perda de sentido, nesta passagem admirável, carregada de exaltação romântica, que parece prefigurar a Teologia da Libertação:

"A inteligência burguesa se satisfaz com uma crítica racionalista do método, da teoria, da técnica dos revolucionários. Que incompreensão! A força dos revolucionários não reside em sua ciência e sim em sua fé, sua paixão, sua vontade. É uma força religiosa, mística, espiritual. É a força do Mito. A emoção revolucionária (...) é uma emoção religiosa. As motivações religiosas se deslocaram do céu para a terra. Elas não são divinas, mas humanas e sociais"4.

Se para Weber a antítese do racional/burocrático é o carisma, para Mariátegui o romantismo constitui o pólo oposto à rotina política: "Nas épocas normais e tranqüilas, a política é um negócio administrativo e burocrático. Porém, nesta época de neo-romantismo, de renascimento do Herói, do Mito e da Ação, a política deixa de ser o ofício sistemático da burocracia e da ciência". Este culto ao Herói e ao Mito (com todas as maiúsculas) não deixa de apresentar uma certa ambigüidade - confirmada pelo fato de que a passagem acima é parte de um artigo consagrado a D'Annunzio5. No entanto, Mariátegui - que se distancia claramente do dannunzianismo - nunca perde as referências e tampouco elimina as fronteiras políticas no interior do campo de força romântica.

Um dos temas essenciais do protesto romântico contra a civilização burguesa é a crítica da mecanização do mundo, que encontra em John Ruskin uma expressão vigorosa, iluminada pela nostalgia do trabalho antigo. Um eco dessa postura se encontra em Mariátegui (como também no outro discípulo socialista de Ruskin, William Morris), que escreve nos Sete ensaios de interpretação da realidade peruana (1928):

"A deformação do trabalho em seus fins e em sua essência se explica pela sujeição do ser humano à máquina e pela destruição dos ofícios por meio da industrialização. O requisitório dos reformadores, de John Ruskin a Rabindranath Tagore, culpa veementemente o capitalismo pelo uso embrutecedor da máquina. O maquinismo e sobretudo o taylorismo tornaram o trabalho odioso, mas só porque eles o degradaram e o rebaixaram, despindo-o de sua virtude criadora". Enquanto Ruskin sonhava com o trabalho artesanal do tempo das catedrais, Mariátegui celebrava a sociedade inca, na qual o trabalho "concluído amorosamente" representava a mais alta virtude6.

Não é preciso dizer que, para Mariátegui, o romantismo não é apenas filosófico, político e social, é também cultural e literário. Os dois aspectos lhe parecem aliás extremamente ligados entre si: ele faz uma distinção entre "as épocas clássicas ou de calma" e as "épocas românticas ou de revolução"7. Entretanto, aos olhos de Mariátegui, o campo cultural romântico é perpassado por uma ruptura, uma cisão tão radical quanto a existente entre as duas correntes políticas do romantismo: a que opõe o romantismo antigo - às vezes simplesmente designado por Mariátegui como "o romantismo" - e o romantismo novo, ou neo-romantismo.

O romantismo antigo, essencialmente individualista, surgiu do liberalismo do século XIX: um de seus últimos representantes em nossa época foi Rainer Maria Rilke, cujo extremo subjetivismo e lirismo puro se satisfazem da contemplação. Ora, hoje assistimos "ao nascimento de um romantismo novo. Não o que se alimentou da revolução liberal; ele apresenta uma outra impulsão, um outro espírito. Por essa razão, o chamamos neo-romantismo"8. Esse romantismo novo, pós-liberal e coletivista, está, segundo Mariátegui, intimamente ligado à revolução social.

Nos capítulos literários dos Sete Ensaios..., a oposição entre as duas formas de romantismo ocupa um lugar importante em sua crítica aos escritores e poetas peruanos. Por exemplo, a propósito de Cesar Vallejo, Mariátegui observa: "O romantismo do século XIX foi essencialmente individualista; o romantismo do século XX, ao contrário, é espontânea e logicamente socialista". Outros poetas, como Alberto Hidalgo, permanecem prisioneiros do antigo romantismo, ultrapassado pela epopéia revolucionária que "anuncia um romantismo novo, desimpedido do individualismo romântico que termina"9.

Contudo, para Mariátegui, a expressão cultural mais radical do novo romantismo é o surrealismo. Ele acompanha com grande interesse as iniciativas do movimento surrealista que, aos seus olhos, "não se trata de um simples fenômeno literário, mas de um complexo fenômeno espiritual. Não se trata de uma moda artística mas de um protesto do espírito". O que o atrai para os amigos de André Breton (do qual publicará vários textos em Amauta) é a sua condenação categórica - "em bloco" - da civilização racionalista/burguesa. O surrealismo é um movimento e uma doutrina neo-romântica de vocação subversiva: "Por seu espírito e sua ação ele se apresenta como um novo romantismo. Por sua rejeição revolucionária do pensamento e da sociedade capitalistas, ele coincide historicamente com o comunismo, no plano político"10. Ele toma a defesa dos surrealistas contra seus críticos racionalistas franceses como Emmanuel Berl: "O surrealismo, acusado por Berl de ter se refugiado em um clube do desespero, em uma literatura do desespero, demonstrou, em verdade, uma compreensão muito mais exata, uma noção muito mais clara da missão do Espírito"11.

Enfim, comentando o Segundo Manifesto Surrealista em um de seus últimos artigos (março 1930), Mariátegui não deixa de destacar, mais uma vez, a relação entre surrealismo e romantismo: "A melhor passagem talvez seja aquela em que, com um senso histórico do romantismo mil vezes mais claro do que o alcançado pelos eruditos do romantismo/classicismo com suas investigações freqüentemente muito banais, Breton afirma a afiliação romântica da revolução surrealista"12.

Essas duas formas do romantismo não representam, em Mariátegui, uma grade de leitura dogmática imposta a todo o domínio cultural: certos autores, certas correntes parecem não pertencer a nenhum desses dois pólos. Dentre algumas dessas figuras "inclassificáveis" encontra-se um pensador do qual ele celebra com freqüência o alcance da visão e a sensibilidade crítica: Dom Miguel de Unamuno, que apregoou "um retorno ao donquixotismo, ao romantismo", e cuja concepção agnóstica da vida como combate permanente "contém mais de espírito revolucionário que várias toneladas de literatura socialista"13.

Como muitos dos revolucionários europeus que buscavam romper o garrote sufocante do marxismo-positivismo da II Internacional - com seu economicismo, seu evolucionismo "progressista" e seu cientificismo limitado - a começar por Lukács, Gramsci e Walter Benjamin em 1917-20, Mariátegui ficou fascinado por Sorel, o socialista romântico por excelência - inclusive em suas ambigüidades e em seus retrocessos ideológicos episódicos. Entretanto, à diferença desses três pensadores, que irão se distanciar progressivamente de seu sorelismo inicial, Mariátegui permanecerá obstinadamente fiel às suas primeiras intuições.

Como muito bem demonstrado por Robert Paris, seria vão explicar esse encontro em termos de "influência", pois toda "influência" não é também uma "escolha"?14Se Mariátegui escolheu Sorel é porque o autor francês, enquanto crítico impiedoso das ilusões do progresso e protagonista de uma interpretação heróica e voluntarista do mito revolucionário, lhe era necessário para combater o achatamento positivista e determinista do materialismo histórico.

Em realidade, trata-se mais do que de uma escolha: de certa maneira Mariátegui "inventou" o Sorel de que necessitava, criando uma personagem (por vezes) bastante afastada de seu referencial histórico real. É este o caso, por exemplo, quando faz de Sorel um pensador que exerceu uma influência determinante na formação espiritual de Lenin - uma afiliação puramente imaginária que não encontra nenhuma base de apoio, muito menos nas raras referências de Lenin a Sorel: como se sabe, o dirigente bolchevique considerava o autor das Reflexões sobre a violência um confusionista antes de tudo"15. Menos arbitrária mas também surpreendente é a afirmação recorrente segundo a qual Sorel seria quem, "contra a degeneração evolucionista e parlamentar do socialismo", representou, no início do século, "o retorno à concepção dinâmica e revolucionária de Marx"16. Fazendo de Sorel o elo inexistente entre Marx e Lenin, Mariátegui rompia conscientemente com a concepção ortodoxa do marxismo e de sua história17.

A contribuição de Sorel ao projeto de revitalização romântica do marxismo alimentado por Mariátegui é o elemento "místico" - um termo que em seus escritos toma uma significação bastante próxima da que encontramos na oposição estabelecida por Charles Péguy (autor que Mariátegui parece ignorar) entre "místico" e "político": uma forma revolucionária e secularizada da emoção religiosa. Desde o artigo de 1925 sobre "El hombre y el mito", Mariátegui saúda em Sorel aquele que sabe reconhecer "o caráter religioso, místico, metafísico do socialismo", citando uma passagem das Reflexões sobre a violência, que trata da questão da "analogia entre a religião e o socialismo revolucionário"18. Esse tema será desenvolvido em uma passagem chave de Defensa del marxismo (1930):

"Por intermédio de Sorel, o marxismo assimila os elementos e as aquisições substanciais das correntes filosóficas posteriores a Marx. Superando as bases racionalistas e positivistas do socialismo de sua época, Sorel encontra em Bergson e nos pragmáticos idéias que revigoram o pensamento socialista, reconduzindo-o para sua missão revolucionária, da qual o haviam gradualmente afastado o aburguesamento intelectual e espiritual dos partidos e seus parlamentares que se satisfazem, no campo filosófico, com o mais raso historicismo e o mais tímido evolucionismo. A teoria dos mitos revolucionários, que aplica ao movimento socialista a experiência dos movimentos religiosos, estabelece as bases de uma filosofia da revolução..."19

É inegável que Mariátegui não pretende transformar o socialismo em uma igreja ou uma seita religiosa, mas sim fazer com que venha à tona a dimensão espiritual e ética do combate revolucionário: a fé ("mística"), a solidariedade, a indignação moral, o engajamento total ("heróico"), que comporta o risco e o perigo por sua própria vida. O socialismo, segundo Mariátegui, se inscreve no cerne de uma tentativa de reencantamento do mundo pela ação revolucionária.

Apesar de toda a sua admiração por Sorel, este último é para Mariátegui apenas uma referência teórica. Do ponto de vista da prática política, o bolchevismo é a força capaz de aportar uma "energia romântica" à luta do proletariado20. Sorelismo e bolchevismo lhe parecem próximos por seu espírito revolucionário, por sua rejeição do reformismo parlamentar e por seu voluntarismo romântico. Como exemplo da oposição entre o marxismo autêntico dos bolcheviques e o determinismo positivista da social-democracia, Mariátegui escreve em Defensa del marxismo:

"Atribuímos a Lenin uma frase que é celebrada por Unamuno em sua Agonía del cristianismo: a que ele certa vez pronunciou em resposta a alguém que lhe fazia observar que seu esforço ia de encontro à realidade: 'Pior para a realidade!'. O marxismo, lá onde ele se mostrou revolucionário - ou seja lá onde ele foi revolucionário - nunca obedeceu a um determinismo passivo e rígido"21.

Só nos resta a admiração pela curiosa analogia entre essa formulação e a que encontramos em um artigo húngaro de Lukács, publicado em 1919 (que Mariátegui certamente não conheceu): "Lenin e Trotsky em Brest-Litovsk preocupavam-se muito pouco com os assim chamados 'fatos'. Se os 'fatos' se opõem aos processos revolucionários, os bolcheviques respondem: 'Danem-se!, pior para os fatos'"22.

Se o bolchevismo comporta indubitavelmente uma boa dose de voluntarismo, o Lenin donquixotesco de Mariátegui (ou o "danem-se"! do jovem Lukács) nada mais é do que o fruto de uma criação em grande medida imaginária.

O comunismo peruano
É sobretudo devido às suas análises e proposições a respeito do Peru que Mariátegui foi tratado por seus censores ideológicos como um pensador "romântico". Isto porque, de um lado, ele não aceitava a tese do Komintern segundo a qual uma transformação "democrático-burguesa e antifeudal"; isto é, uma forma de progresso capitalista, era uma etapa necessária para solucionar os problemas prementes das massas populares, principalmente camponesas, no Peru; ao contrário, ele considerava a revolução socialista como a única alternativa à dominação do imperialismo e dos latifundiários. E, de outro, sobretudo porque Mariátegui acreditava que esta solução socialista poderia partir das tradições comunitárias do campesinato andino, os vestígios do "comunismo incaico" - tese que era identificada por Miroshevski com a dos populistas russos23.

O eminente socialista "místico" e romântico Charles Péguy escreveria: "Uma revolução é um apelo de uma tradição menos perfeita para uma tradição mais perfeita, um apelo de uma tradição menos profunda para uma tradição mais profunda, um recuo de tradição, uma ultrapassagem em profundidade; uma busca de fontes mais profundas; uma fonte... no sentido literal"24.

Essa observação se encaixa perfeitamente em Mariátegui: opondo-se ao tradicionalismo conservador da oligarquia, ao romantismo retrógrado das elites e à nostalgia do período colonial, ele apela para uma tradição mais antiga e mais profunda: a das civilizações indígenas pré-colombianas. "O passado incaico teve seu ingresso em nossa História como uma reivindicação dos revolucionários e não dos tradicionalistas. Nesta medida este passado representa uma derrota do colonialismo... A revolução reivindicou nossa mais antiga tradição"25.

Mariátegui denominou essa tradição de "comunismo incaico". Essa expressão se presta a controvérsias26; lembremo-nos, entretanto, que uma marxista muito pouco suspeita de "populismo" e "nacionalismo romântico" como Rosa Luxemburgo também definia o regime sócio-econômico dos incas como "comunista". Em seu livro Introdução à crítica da economia política - publicado em 1925 na Alemanha e que muito provavelmente Mariátegui não conhecia -, ela afirma que o Império Inca é constituído de duas formações sociais comunistas, das quais uma é representada por uma sociedade agrária explorada por outra. Celebrando as "instituições comunistas democráticas da marca peruana", ela se regozija com a "admirável resistência do povo indígena e das instituições comunistas agrárias no Peru que se mantiveram até o século XIX"27. Mariátegui não dizia outra coisa, a não ser que ele acreditava na capacidade de sobrevivência das comunidades até o século XX.

Sua análise se apóia nos trabalhos do historiador peruano Cesar Ugarte, para o qual os fundamentos da economia inca eram o ayllu, conjunto de famílias unidas por parentesco que usufruíam da propriedade coletiva da terra; e a marca, federação de ayllus que detinha a propriedade coletiva das águas, das pastagens e dos bosques. Mariátegui introduz uma diferenciação entre o ayllu, criado pelas massas anônimas no curso de milênios, e o sistema econômico unitário criado pelos imperadores incas. Insistindo sobre a eficácia econômica da agricultura coletivista inca e sobre o bem-estar material de sua população, Mariátegui conclui, nos Sete Ensaios: "O comunismo incaico - que não pode ser negado ou reduzido por ter se desenvolvido sob o regime autocrático dos incas - pode então ser designado comunismo agrário". Rejeitando a concepção linear e eurocêntrica da história imposta pelos vencedores, ele sustenta que a conquista colonial destruiu e desorganizou a economia agrária inca, sem substituí-la por outra forma superior28.

Idealização romântica do passado? Talvez. Em todo caso, Mariátegui fazia uma distinção categórica entre o comunismo agrário e despótico das civilizações pré-colombianas e o comunismo de nossa época, herdeiro das conquistas materiais e espirituais da modernidade. Em uma longa nota de rodapé, que é, em realidade, um dos momentos fortes do livro Sete Ensaios, Mariátegui traz o seguinte esclarecimento que, setenta anos mais tarde, não perderia nem um pouco sua atualidade:

"O comunismo moderno é algo diferente do comunismo incaico... Um e outro 'comunismo' são o produto de experiências humanas distintas; pertencem a distintos períodos históricos; são elaborados por civilizações dessemelhantes. A dos incas foi uma civilização agrária. A de Marx e Sorel é uma civilização industrial... A autocracia e o comunismo são incompatíveis em nossa época; mas não o foram nas sociedades primitivas. A nova ordem, hoje, não pode renunciar aos progressos morais da sociedade moderna. O socialismo contemporâneo - outras épocas passaram por outros tipos de socialismo designados pela História por diversos nomes - é a antítese do liberalismo, mas ele nasce em seu seio e se alimenta de sua experiência. Ele não desdenha nenhuma de suas conquistas intelectuais, ele apenas despreza e denuncia suas limitações"29.

É por essa razão que Mariátegui irá criticar e rechaçar todas as tentativas "românticas" (no sentido regressivo do termo) de retorno ao Império Inca. Sua dialética concreta entre o presente, o passado e o futuro lhe permite fugir tanto dos dogmas evolucionistas do progresso como das ilusões ingênuas e saudosistas de um certo indigenismo.

Como a maioria dos românticos revolucionários, Mariátegui integra, em sua utopia socialista, as conquistas humanas da filosofia do Iluminismo e da Revolução Francesa, bem como os aspectos mais positivos do progresso científico e técnico. Negando os sonhos de restauração do Tahuantinsuyu (o Império Inca), ele escreve em um programa do Partido Socialista Peruano, que ele criou em 1928:

"O socialismo encontra tanto na sobrevivência das comunidades indígenas como nas grandes empresas agrícolas, os elementos para uma alternativa socialista da questão agrária... Mas isto, da mesma forma que o encorajamento à livre expansão do povo indígena, à manifestação criativa de suas forças e de seu espírito, não significa de modo algum uma tendência romântica e anti-histórica de reconstrução ou ressurreição do socialismo incaico, que correspondia a condições completamente superadas, e do qual restam apenas, como fator utilizável no âmbito de uma técnica de produção perfeitamente científica, os costumes de cooperação e socialismo do campesinato indígena"30.

Apesar das pressões "individualistas" dos diferentes regimes, da Colônia à República, Mariátegui não deixa de insistir acerca da vitalidade extraordinária dessas tradições: "ainda hoje encontramos nos vilarejos 'robustas e tenazes' práticas de cooperação e de solidariedade que são a expressão empírica de um espírito comunista. Quando a expropriação ou a distribuição de terras parece liquidar a comunidade, o socialismo indígena sempre encontra um meio de reconstituí-la. Essas tradições de ajuda mútua e de produção coletiva testemunham a presença, nas comunidades, do que Sorel denomina 'os elementos espirituais do trabalho'"31.

A tese mais ousada e herética de Mariátegui, a que suscitará as maiores controvérsias, é a que resulta de suas análises históricas sobre o "comunismo incaico" e de suas observações antropológicas sobre a sobrevivência das práticas coletivistas, voltadas a uma estratégia política que faz das comunidades indígenas o ponto de partida para uma via socialista própria nos países indo-americanos. É essa estratégia inovadora que Mariátegui apresentará nas teses da Conferência Latino-americana dos Partidos Comunistas (Buenos Aires, junho de 1929), sob o curioso título de O problema das raças na América Latina.

Para tornar sua heterodoxia mais aceitável, Mariátegui refere-se inicialmente aos documentos oficiais do Komintern: "O VI Congresso da Internacional Comunista mais uma vez reconheceu a possibilidade, para os povos de economia rudimentar, de se dar início à organização de uma economia coletiva diretamente, sem antes passar pela longa evolução por que passaram outros povos". Em seguida, ele anuncia sua estratégia romântico-revolucionária baseada no papel das tradições comunitárias indígenas: "Nós acreditamos que dentre as populações 'atrasadas' nenhuma outra mais do que a população indígena de origem inca apresenta condições tão favoráveis para que o comunismo agrário primitivo, subsistindo em estruturas concretas e com um profundo espírito coletivista, se transforme, sob a hegemonia da classe proletária, em uma das bases mais sólidas da sociedade coletivista preconizada pelo comunismo marxista"32.

Traduzido em termos concretos de reforma agrária no Peru, essa estratégia refere-se à expropriação dos grandes latifúndios em prol das comunidades indígenas: "As 'comunidades' que demonstraram, sob a mais forte opressão, ter uma capacidade de resistência e persistência realmente espantosa, representam um fator natural de socialização da terra. O indígena tem hábitos de cooperação enraizados... Com um mínimo de esforços, a 'comunidade' pode transformar-se em cooperativa. A atribuição da terra dos latifúndios às 'comunidades' é, na sierra, a solução para o problema agrário"33.

Essa posição, qualificada de "socialismo pequeno burguês" por seus críticos, era na sua essência a mesma sugerida por Marx em sua carta a Vera Zassulitsch (certamente desconhecida por Mariátegui). Encontramos, nos dois casos, a intuição profunda - de inspiração romântica - de que o socialismo moderno, principalmente nos países de estrutura agrária, deverá enraizar-se nas tradições vernáculas, na memória coletiva camponesa e popular, nas sobrevivências sociais e culturais da vida comunitária pré-capitalista, nas práticas de ajuda mútua, solidariedade e propriedade coletiva da Gemeinschaft rural.

Como observa Alberto Flores Galindo, o traço essencial do marxismo de Mariátegui - em contraste com o dos ortodoxos do Komintern - é a rejeição à ideologia do progresso e da imagem linear e eurocêntrica da história universal34. Mariátegui foi acusado por seus críticos ora de tendências europeizantes (os apristas), ora de "romantismo nacionalista" (os stalinistas): em realidade, seu pensamento é uma tentativa de superar dialeticamente esse tipo de dualismo estático entre o universal e o particular.

Em um texto chave, "Aniversario y balance", publicado em sua revista Amauta, em 1929, essa tentativa é formulada em alguns parágrafos que resumem de forma impressionante sua filosofia política e que, além disso, parecem constituir-se em sua mensagem às gerações futuras no Peru e na América Latina. Seu ponto de partida é o caráter universal do socialismo:

"O socialismo não é, sem dúvida, uma doutrina indo-americana (...) Mesmo tendo nascido na Europa, como o capitalismo, ele também não é específico ou particularmente europeu. É um movimento mundial, do qual nenhum dos países que se move na órbita da civilização ocidental está livre. Essa civilização conduz, com uma força e com meios dos quais nenhuma outra civilização dispôs, à universalidade".

Mas, ao mesmo tempo, ele insiste na especificidade do socialismo latino-americano enraizado em seu próprio passado:

"O socialismo é parte da tradição americana. A organização comunista primitiva mais avançada de que a História tem notícia é a dos incas". "Certamente, não queremos que o socialismo na América Latina seja decalque e cópia. Deve ser uma criação heróica. Temos de dar vida, com nossa própria realidade, em nossa própria linguagem, ao socialismo indo-americano. Eis aqui uma missão digna de uma geração nova"35.

A geração que marcou com suas impressões digitais o comunismo latino-americano após a morte de Mariátegui mais parece ter escolhido a via do decalque e da cópia. Será possível que, às vésperas do século XXI, seu apelo romântico à "criação heróica" tenha sido finalmente compreendido?

Para concluir, seja no domínio da filosofia ou da estratégia política, da cultura ou da questão agrária, da história ou da ética, a obra de Mariátegui é inteiramente perpassada por um potente sopro romântico-revolucionário, que dá à sua concepção marxista do mundo sua qualidade única e sua força espiritual visionária.

Quem é:

Antonio Gramsci (1891-1937): filósofo e político marxista italiano.

Alberto Hidalgo (1894-1967): escritor peruano.

André Breton (1896-1966): escritor francês, autor entre outros do Segundo Manifesto Surrealista, 1930.

César Vallejo (1892-1938): poeta peruano.

Charles Péguy (1873-1914): escritor francês.

Emanuel Berl (1892-1976): escritor francês.

Ernst Bloch (1886-1944): filósofo alemão.

Friedrich Nietzsche (1844-1900): filósofo alemão.

Gabriele D'Annunzio (1863-1938): escritor italiano.

Georges Sorel (1847-1922): sociólogo francês.

Gheorgui V. Plekhanov (1856-1918): filósofo russo.

György Lukács (1885-1971): escritor e filósofo húngaro.

Herbert Marcuse (1898-1979): filósofo norte-americano de origem alemã.

Henri Bergson (1859-1941): filósofo francês.

Jean Jacques Rousseau (1712-1778): escritor, filósofo e pedagogo suíço de língua francesa.

José Ortega y Gasset (1883-1955): filósofo espanhol.

John Ruskin (1819-1900): crítico, historiador de arte e escritor britânico.

Karl Kautsky (1854-1938): político alemão, líder da II Internacional.

Max Weber (1864-1920): economista e sociólogo alemão.

Miguel de Unamuno (1864-1936): escritor e filósofo espanhol, autor, entre outros de La agonía del Cristianismo, 1931.

Rabindranath Tagore (1861-1941): escritor da Índia, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1913.

Rainer Maria Rilke (1875-1926): escritor alemão de origem tcheca.

Romain Rolland (1866-1944): escritor francês.

William Morris (1834-1896): artista e escritor britânico.

Walter Benjamin (1892-1940): escritor e filósofo alemão.

(Tradução de Mila Frati)

Michael Löwy é diretor de pesquisas do CNRS-Paris (Centro Nacional de Pesquisa Científica).