Internacional

Três livros buscam respostas para várias questões sobre a identidade italiana

Na metade dos anos setenta, com trinta anos, Alfonso Berardinelli diz ter descoberto que era italiano e que essa descoberta lhe trouxe problemas. Até aquele momento vivera em uma "dimensão internacional", na qual parecia que nenhum conflito ou problema pudesse ser resolvido na Itália e pelos italianos.

Essa dimensão internacionalizada era ditada, politicamente, pela Guerra Fria: o destino parecia ser ou a Itália se americanizaria ou, menos provavelmente, iria se tornar russa. Um presente, portanto, marcado pelo futuro.

Assim o crítico literário, grande polemista há mais de vinte anos, de assuntos que vão da lírica moderna ao rumos da sociedade italiana, inicia o leitor no seu Auto-retrato italiano - um dossiê literário 1945-1998 (Donzelli Editore, Roma,1998).

O livro é, na verdade, uma coletânea de textos, que inclui gêneros literários diversos, organizada ao redor de um tema central o qual, usando palavras de Berardinelli, poderia ser resumido na sensação generalizada, na geração de italianos cuja juventude se deu entre a guerra fria e o boom econômico dos anos 60, de que "não somos jamais como deveríamos ser".

O toque de despertar para o problema da identidade nacional foi dado pelo caso Pasolini, outro importante polemista da cultura e da sociedade italiana, morto brutalmente nos anos 70 que, segundo Berardinelli, conseguiu, nos seus ensaios, poemas, romances, filmes e intervenções jornalísticas construir uma imagem da sociedade italiana muito mais fiel de quanto, nos mesmos anos, cientistas sociais ou críticos e teóricos marxistas da literatura chegaram a delinear.

Por qual razão, se pergunta o crítico, teria levado tanto tempo para ser tocado pela questão da identidade? Como pôde, por mais de dez anos, pensar que a Itália não passasse de uma porção geométrica do mundo capitalista, em absoluta correspondência com o tipo ideal descrito pelas sociologias americana, alemã e francesa? Por que, depois de toda a experiência de combinação desastrosa entre nacionalismo e Estado forte, voltar se preocupar com identidade nacional?

A escolha dos textos e a publicação da coletânea é a tentativa de encontrar alguma resposta para tantas dúvidas, passando a palavra para escritores, críticos, jornalistas, embora persista a certeza de que não bastam imagens literárias, sejam elas de autoria de Dante ou de Pasolini, para se ter uma resposta. Dois outros livros, publicados nos últimos anos na Itália, estão diretamente ligados ao livro de Berardinelli: L'italiano - il carattere nazionale come storia e come invenzione (Einaudi,Turim,1983 e 1996: O italiano - o caráter como história e como invenção), de Giulio Bollati, e La morte delta patria - la crisi dell'idea di nazione tra Resistenza, antifascismo e Repubblica (Laterza, Bari,1996: A morte da pátria - a crise da idéia de nação entre Resistência, antifascismo e República), de Ernesto Galli della Loggia.

Bollati historia um conceito, o transformismo, que foi usado pela primeira vez em 1883, para designar o programa para a política interna italiana do primeiro ministério de esquerda de Agostino Depretis (1813-1887). Depretis governou de 1876 a 1887, mas o transformismo já possuía um passado e Bollati chega a afirmar que está de tal forma enraizado no tecido do país que sua duração não pode ser medida em algumas décadas ou alguns ministérios. Como o reconhece em períodos muitos diversos entre si - com Crispi, Giolitti, Mussolini, em forma variada no pós-guerra e numa espécie de neotransformismo, nos dias de hoje -, Bollati declara ser o transformismo constitutivo da história italiana e parte integrante, com raízes estruturais e culturais, do caráter italiano.

O termo é sinônimo de "'evolução' e é usado para conotar, em sentido científico-progressista, a necessidade de 'transformar' os partidos, eliminando porém a distinção entre direita e esquerda, que já se encontrava enfraquecida e, não poucas vezes, esquecida, nas combinações parlamentares após a unificação1. O que Depretis buscava era uma maioria baseada na solidariedade de pessoas e de grupos, representada por programas concretos e por interesses coligados. O resultado obtido com essa teoria e essa prática acabou por legitimar o clientelismo, incentivou as negociatas, reduzindo a vida política italiana a um parlamentarismo medíocre, de poucas idéias e relutante tanto aos grandes programas quanto às questões de princípio.

Bollati e Berardinelli se aproximam em seus diagnósticos: havia uma política externa, internacionalizada, que levava um italiano a não se sentir italiano, e a não se preocupar com isso; por outro lado, na própria história do país, nas suas raízes políticas e culturais era possível encontrar o fermento que a legitimava, isto é, o transformismo. Sem polarizações, sem princípios, como num grande acordo de cavalheiros, a política interna italiana mostrava, desde sempre, um flanco aberto: o da chance de que as decisões fossem tomadas por outros.

E assim chegamos ao terceiro livro, La morte della patria - la crisi dell'idea di nazione tra Resistenza, antifascismo e Repubblica. A expressão morte da pátria resume as características particulares da crise da idéia de Nação, na Itália. Já apontada por Leopardi, por volta de 1826, em Discorso sopra lo stato presente dei costumi degl'italiani, o acirramento da crise, segundo a tese de Della Loggia, se dá pelo modo como a Itália sai da Segunda Guerra: libertada pelos aliados do fascismo, porém derrotada na guerra. A agravante entretanto foi sua lamentável participação, política e militar, no episódio.

Nas origens da crise está, para o autor, o fato de a Nação não ter preexistido ao Estado, mas, sim, ter sido quase que por ele criada, uma espécie de seu efeito derivado, colaborando para sua radicalização dois fatores: de um lado, o desaparecimento do Estado em conseqüência das modalidades político-militares particulares da derrota bélica e por outro, e em conseqüência do primeiro, a sensação manifesta em muito italianos de que a derrota, na verdade, era causa e, ao mesmo tempo, resultado e explicitação de algo muito mais grave e profundo: de uma fragilidade ético-política monumental dos italianos.

São inúmeros os episódios elencados que atestam a incompetência dos italianos na guerra, a recusa em assumir as próprias responsabilidades, o duplo jogo daqueles que representavam o Estado. A longa análise dos eventos acaba por atingir também as versões celebrativas da Resistência como reconstrução da nacionalidade.

Discutindo o significado do 8 de Setembro como mera tragédia ou início da libertação, Della Loggia está, como Berardinelli e Bollati, alimentando a discussão sobre o caráter do italiano e nacionalidade o que pode ser considerado um assunto muito pouco teorizável, mas que "ressurge exatamente quando as identidades nacionais estão em declínio e aí então se percebe que se possui uma."2

Maria Betânia Amoroso é professora de literatura Italiana na Unicamp