Sociedade

Coleção História da Vida Privada no Brasil é uma reflexão de fôlego sobre a construção do cotidiano da Colônia até os dias atuais

Para tratar de uma obra coletiva que ultrapassa duas mil e quinhentas páginas e apresenta uma iconografia com mais de um milhar e meio de "imagens", torna-se imprescindível utilizar o método do magarefe: carnear a presa e descarnar os ossos para "dissecar" a sua formação estrutural. Aproximamo-nos, então, da sugestão de Marc Bloch e poderíamos ver, tanto no privado vivido quanto no público escrito, o pulsar de carne e sangue humanos.

De início, algo é confessado como óbvio: uma certa "imitação" da obra francesa homônima,"sucesso de crítica e de público; editada a partir de meados da década de 80. Georges Duby, no prefácio do primeiro volume, esperava "não cair numa história do individualismo, numa história da intimidade"1. Fernando Novais, que dirigiu a coleção brasileira, propôs o alargamento da noção de"vida privada" e, pelo conjunto dos autores, tomou a seguinte posição: "e assumimos a inspiração do modelo e mesmo as sugestões editoriais, tentaremos elaborar uma obra que tente ser, ao mesmo tempo, uma contribuição à história da vida privada e do cotidiano entre nós, bem como uma reflexão sobre os caminhos da nova historiografia." Portanto, como "alternativa salvadora da perenidade de Clio" nos trópicos, devem-se "reconstituir aspectos do cotidiano e da vida privada na formação brasileira"2.

Para tal empreendimento, o coordenador-geral da coleção contou com pesquisadores reconhecidos nos campos acadêmico e editorial para a organização dos quatro volumes. No primeiro,"Cotidiano e vida privada na América portuguesa", Laura de Mello e Souza ponderou que cotidiano e vida privada se entretecem durante todas as suas 523 páginas, e "às vezes torna-se difícil separá-los por ser rarefeito o espaço específico da privacidade"3. No segundo,"Império: a corte e a modernidade nacional", Luiz Felipe Alencastro argumentou em favor do amálgama entre vida privada e vida cotidiana, pois "não há porque separar-se os dois gêneros de história, na medida em que 'cotidiano' refira-se à intimidade, aos modos de vida, ao dia-a-dia da existência privada, familiar, pública, às formas de transmissão dos costumes e dos comportamentos"4. No terceiro, "República: da Belle Époque à Era do Rádio", Nicolau Sevcenko adverte que a ênfase dos textos do volume recai sobre "o nexo que articula as dimensões da história da cultura, da história do cotidiano e da história da cultura material, como âmago a partir do qual se procura penetrar no nível da vida privada e dos ritos da intimidade, tais como se manifestam na sociedade brasileira do período"5. No quarto volume,"Contrastes da intimidade contemporânea", a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz aponta para os desafios do último volume, restada dos textos uma "imagem de contrastes". Ela se explica: entender "a vida privada na tensão do progresso histórico, no movimento que se reatualiza monotonamente no tempo longo mas que é cortado pelas novas técnicas, como o computador e a televisão, que invadem o cotidiano, ou mesmo pela globalização"6.

Com as motivações e "hipóteses" introdutórias, os resultados do "cotidiano e vida privada no Brasil" se espraiam por capítulos assinados por uma plêiade de historiadores, cientistas políticos, antropólogos, sociólogos, economistas, demógrafos, jornalistas de reconhecida competência nos ofícios concernentes às "ciências do homem e da mulher", nos trópicos da "civilização brasílica".

O primeiro destaque parece ser a dificuldade de se escrever sobre a vida privada na América portuguesa: "trezentos" anos do "viver em colônia" couberam em pouco mais de quinhentas páginas, enquanto que para a Longa República - entre 1870 e 1999 - foram necessários dois volumes e mais de mil e quinhentas páginas. A relação com a iconografia é semelhante: entre pinturas, quadros, desenhos, mapas e fac-símiles de documentos, foram reproduzidas 337 imagens no volume sobre a América portuguesa, enquanto nos dois volumes que tratam da Longa República, a riqueza e a variedade iconográficas ultrapassaram novecentas imagens. O volume sobre o Império se equivale em número de páginas, mas com menor iconografia em relação ao primeiro, consubstancia o "curto" século XIX da corte e modernidade, com ilustrações da "vivíssima imprensa nacional e fotografias da época", segundo o seu próprio organizador.

Centro-me no primeiro volume porque parece ter havido um desconforto no que tange a"procurar" vida privada no período colonial.Tanto que, nos oito artigos que formam os respectivos capítulos, apenas um menciona o conceito "vida privada", outro menciona "privacidade", noutro aparece "vida doméstica", e três autores optaram por mencionar "cotidiano" no próprio título. No teor dos textos, os autores são recorrentes na cautela em "abraçarem o empreendimento." Vejamos alguns exemplos: para Fernando Novais, no contexto da colonização, a privacidade vai abrindo caminho em contraponto com a afirmação do Estado e com a gestação da nacionalidade (vol. 1, p. 17). Laura de Mello e Souza, autora do capítulo 2, ao reconhecer a "precariedade das formas cotidianas de existência" e da força duradoura "dos padrões opostos à intimidade", teve de tratar de algumas "privacidades insólitas e improvisadas" (pp.44-5) nos caminhos bandeirantes, nas fronteiras territoriais e nas fortificações militares e de povoamento. Ronaldo Vainfas, autor do capítulo 5, alerta para o risco de se "supor uma sociedade quase européia em terra de hibridismos culturais e contrastes regionais acentuados." Vainfas sustenta que é necessário divorciar "a idéia de privacidade e domesticidade" e que as fontes da Igreja e da Inquisição possibilitam "o estudo das intimidades, dimensão da vida privada que se mostra minimamente decifrável para o historiador" (pp. 224-28). O autor resgata um exemplo formidável: o tripé "casa, quarto e cama"- noção básica da privacidade contemporânea em relação à sexualidade - torna-se inconcebível quando se pensa o mundo colonial dos séculos XVI ou XVII. Leila Mezan Algranti, autora do capítulo 3, ao tratar dos domicílios, conclui que os documentos sugerem uma "certa preocupação com a vida íntima", porém "não exatamente a preocupação com uma vida familiar"(p. 154).

A leitura do primeiro volume da coleção brinda-nos com uma aporia historiográfica, semelhante à agostiniana sobre o tempo: se não me perguntam sobre a vida privada na América portuguesa, eu sei; se me perguntam, eu ignoro. Pois, segundo as considerações finais da coleção, feitas pelo coordenador e as organizadoras dos volumes I e IV, a vida privada é um fenômeno que "a rigor não existe nessa 'América portuguesa' que não é sequer Brasil", e o que se constata "é a afirmação da privacidade", apesar de todos os óbices, que "a tornam um foco, quase, virtual" (vol. IV, p. 730). Os dicionários pouco esclarecem na medida em que definem "privado" como negação do que "não é público"7, e isso ajuda a tornar o paradoxo visceral. Esta tensão avança até o século XIX, "nacional e moderno" no qual se suspira a "impossibilidade da vida privada no país da escravidão." A aporia chega a ser irônica diante do cabedal metodológico e do aporte teórico dos especialistas que escreveram os primeiros volumes: o primeiro com o predomínio do que se pode chamar de "história da cultura", renovadora dos estudos coloniais no Brasil; e o segundo, com peso maior na "história social" - história social da escravidão 8, cujos estudos, nos últimos anos, esclarecem a reinvenção das diversas "Áfricas" nas terras brasílicas.

Passo a discutir agora um dos elementos que me parece o"coração"da obra: a iconografia. E começo pela monumentalidade das imagens que deram "fisionomia" aos volumes."Cotidiano e vida privada na América portuguesa" chegou às livrarias tendo na capa de tom vermelho a aquarela de Jean Baptiste Debret, de 1834: "Um erudito trabalhando em seu gabinete." Debret teria destacado, no "ambiente simples da arquitetura colonial", de rede estendida em uso e o chão de tábua lavada, artefatos da cultura dos colonizadores: a estante de livros, o globo, as resmas de papel, a pena, o tinteiro e o homem calvo e magro a trabalhar com afinco nos seus alfarrábios. E o homem está só, com a sua sombra, naquele "ambiente tipicamente colonial" (vol. 1, p. 376; vol. IV, pp. 731-2). Não teria o famoso pintor "inventado" a privacidade insólita nos lugares da colônia quando visitava o Império?

No volume "Império: a corte e a modernidade nacional", a base verde da capa é entrecortada pela foto de João Ferreira Villela, "Ama escrava e o menino Augusto Gomes Leal", tirada no Recife, por volta de 1860. Esta imagem "instantânea" valeu o epílogo do volume e tem o próprio tempo do Império na sua inteireza: o menino inclinado e apoiado na ama,e seus olhares invertem as intimidades alheias, pois são eles que olham para nós,  "leitores bisbilhoteiros". E o fazem denunciando o próprio século. Um mistério apolíneo, desvendado por Alencastro e visto como imagem de uma união paradoxal porém consentida. Diz ele de "uma união fundada no amor presente e na violência pregressa. Na violência que fendeu a alma da escrava, abrindo espaço afetivo que está sendo invadido pelo filho de seu senhor. Quase todo o Brasil cabe nessa foto." (vol. II, p.440).

Em "República: da Belle Époque à Era do Rádio" o azul da capa é seccionado pelo "retrato" da propaganda de rádio, publicado em Seleções, em 1942. Da imagem, soergue-se uma sedutora mulher, de cabelos curtos, com a mão direita sintonizando um "sofisticado" aparelho de rádio que aparece sobre uma pequena estante que contém livros na parte inferior. É a voz da modernidade que se faz onímoda e onisciente no privado e no público. Talvez somente a atualíssima geração teen não saiba o que foi a Voz do Brasil. Mas aquelas vozes "privadas" que encantaram as multidões nos cenários incríveis do Trópico alimentavam antíteses em relação ao "público", provocando muita  "comicidade e deslocamento de sentidos". Nicolau Sevcenko chega a imantar pelas vozes os instintos, os segredos e os afetos mais íntimos à ordem coletiva de "invenção do trabalhismo". O organizador do terceiro volume lembra a inversão que se processou na observação de um vivente9 das coisas da Colônia: "não só a terra é toda uma república, como cada casa tende a compartilhar simultaneamente as mesmas notícias, as mesmas fofocas, a mesma canção e o mesmo gol" (vol. III, p. 39). Os triunfos da modernidade em imagens e sons amplificados são os méritos do terceiro volume e valem uma paráfrase do já citado epílogo do volume anterior: quase todo o livro, 724 páginas, cabe nesse retrato, porque não há leitor que resista ao ícone da fala e do "fundo musical".

Em "Contrastes da intimidade contemporânea", o amarelo-ouro da capa é "quebrado" pelo azul do interior da casinha de madeira de Dona Maria de Fátima, mulher amazônica de São Gabriel da Cachoeira, que posa para o fotógrafo Rogério Reis: em primeiro plano, a mulher com os braços cruzados, rodeada de ventiladores "chineses". Na parede, um modelo grande de relógio de pulso disputa espaço com quadros coloridos do catolicismo de relicário. Vêem-se ainda as artimanhas da eletricidade fios, chaves e tomadas de luz emergem das tábuas como fios de Ariadne a "achar" o olhar distante de Dona Maria de Fátima, que parece querer esconder da lente a intimida de dos peitos e do estômago, isto é, da vida e da "doce miséria." O cenário e o olhar com que ela nos cobra alguma coisa acusam o patético, o melancólico e o comovente, porque estão ali os eixos da história "que marcam tanto a mudança como a permanência" na República dos contrastes (vol. IV, p.734).

Os próprios organizadores consideram a iconografia o "grande trunfo" da coleção, e cabe destacar alguns referenciais em que a imagem supera o limite "tradicional" da ilustração textual para se tornar o próprio objeto de análise da escritura. As fotos imperiais, por exemplo, protótipos de cenas intimistas ou de "grandes acontecimentos", aproximam as representações e imbricam as temporalidades monárquica e republicana, aterrando uma dimensão cara de nossa historiografia: a suposta incompatibilidade entre o arcaísmo e a modernidade. Olhares contrastantes entre quem olha a imagem produzida e a auto-imagem daquele que "está" protagonista10. Alguns autores, aproveitando-se da ironia de Machado de Assis, que aparece como epígrafe no volume III, colocaram nos capítulos "coisas que entram pelos olhos" e apertaram os seus para verem "coisas miúdas", aquelas que escapam ao maior número e onde "as grandes vistas não pegam"11. E quando as grandes redes cabem em 14 polegadas, incríveis parabólicas sofisticam casebres perto do Jardim Botânico, e os discursos midiático povoam falas e ações, a "historiografia" da vida privada tende a concordar com Nelson Rodrigues: "o nosso mau gosto também é filho de Deus, e pode-se, inclusive, chutar a Santa - quiçá do pau-oco - diante das câmeras televisivas no intervalo "público" do noticiário nacional, espremido entre as emoções privadas de novelas bundomaníacas. Tais dimensões foram, a meu ver, magistralmente discutidas em dois capítulos do último volume da coleção12.

Outra dimensão ponderável sobre a vida privada diz respeito aos lugares de sua existência: a casa na "sociabilidade moderna" e a fábrica no "capitalismo tardio". Dentro da primeira, o sujeito feminino a revoar para as conquistas e o espaço público; dentro da segunda, aqueles homens "uniformizados" de quem muito se esperava, e eles, "irracionais"- e malditos e malditos! -, ao contrário de praticarem a muito amada revolução, teriam sido desviados para os braços do "populismo inevitável".

A condição feminina e os recônditos do privado foram abordados na perspectiva de renovação da historiografia brasileira contemporânea,e da própria reivindicação do privado como"capaz de fazer emergira voz dos agentes excluídos". É o que se reconhece como a "reinstituição da problemática do sujeito na história"13.

O próprio fato de que nada menos do que 18 mulheres (num total de 36 autores) escreveram 17 dos 33 capítulos da coleção é digno de observação positiva, uma vez que elas são responsáveis por 50% da obra. Números nada desprezíveis, se compararmos às autoras que estiveram presente na coleção História Geral da Civilização Brasileira14. Neste aspecto, atrevo-me a rejeitar a idéia de renovação e sugerir a de"revolução" na historiografia brasileira: mulheres enquanto sujeito - elas foram "descobertas" desde a América portuguesa - e uma "multidão" de mulheres escrevinhadoras, contemporâneas, cidadãs e republicanas. Qual seria, então, o impacto desta revolução naquela "imagem" intrigante de Freud, que via Clio como "musa e medusa da história"?

Entretanto, bem menos renovadora foi a "geografia" da produção historiográfica contemporânea. Parece que o território do ofício de Clio continua a ser hegemonicamente sudestino, como se a questão federativa fosse apenas socioeconômica e nunca passasse pela disputa do saber, da cultura e da educação. O quadro mostra que a historiografia da vida privada é predominantemente paulista, ou melhor, em primeiro lugar uspiana e secundariamente unicampiana: dos 36 autores, nada menos do que 25 são de instituições paulistas.

Dois exemplos parecem elucidativos: no Nordeste, com bons cursos de pós-graduação, apenas três autores escreveram para a coleção, sendo dois do quadro universitário baiano e um de Pernambuco, considerado um dos mais competentes historiadores do Brasil contemporâneo e que também possui carreira diplomática. Dos três, um escreve no primeiro volume, e os outros dois comparecem no volume sobre o Império. Nos dois mais "encorpados" volumes seguintes, a surpresa: simplesmente não há Nordeste nem nordestinos na Longa República. Esta parte do Brasil sai de cena com "o fim das casas-grandes", título do artigo de Evaldo Cabral de Melo. Do Sul, com vários cursos de pós-graduação em História e Ciências Sociais, apenas um autor comparece à coleção. Se no plano intelectual há inexplicável ausência dos gaúchos, que possuem três universidades com doutorado em História, na cultura material até os vinhos do Rio Grande do Sul foram saudados como de "qualidade duvidosa" (vol.IV, p. 565). E, se considerarmos que boa parte dos historiadores das várias regiões do país realizaram ou realizam pós-graduação nas universidades paulistas, menos argumentos se teriam para justificar o caráter "regional" da historiografia da vida privada. O resenhador de um dos volumes chegou mesmo a questionar a "abrangência" do nacional, quando certos capítulos fixam-se na dimensão geográfica e na representatividade "regional"de seus objeto15. Neste sentido, a historiografia da vida privada reforça a "nervura do real": a propalada globalização pouco ou muito pouco mexeu na República estadualizada. E, doutores ou plebeus, escritores ou leitores, não estamos imunes aos seus vícios e virtudes.

Mas é no "mundo do trabalho" que maiores críticas se fizeram diante da História da Vida Privada no Brasil. As polêmicas referem-se à "ausência" da fábrica e, conseqüentemente, aos que lá ganham o pão de cada dia. Para Edgar de Decca, a fábrica seria a "esfera privada por excelência no mundo industrial." O historiador da Unicamp teceu considerações de espanto, ao sugerir que"a história da vida privada não tem fábrica", e de perplexidade, diante do "retorno" dos historiadores "à velha dicotomia liberal entre o público e o privado". Desta forma, a historiografia teria cedido ao "modelo canônico do liberalismo, quando apenas discute o tamanho das esferas do privado e do público." A sensação do palestrante, na sua derradeira verbalização, foi a de uma "tremenda ressaca que a utopia do público está vivendo" Edgar de Decca teceu estas considerações diante do organizador da coleção que falara, antes dele, no privado como "conceito polar contraposto à vida pública"16. O plenário lotado de prováveis leitores da HVPB esteve mais sensível às críticas formuladas, mas não seria incorreto afirmar que a dimensão do "fazer e fazer-se" dos trabalhadores brasileiros está presente desde a "sociedade em movimento", passa pelo "capitalismo dos vencedores" e termina com a indignação "a que ponto chegamos"17, talvez inusitada para autores e leitores "ressacados" com a utopia do público.

Além do mais, a autora do notável capítulo sobre a política brasileira contemporânea lembra que é preciso atentar para o declínio de dois mitos políticos modernos: primeiro, o "mito do cidadão democrático", informado, dotado de consciência de seus deveres e direitos e atento aos negócios públicos e, por isso, republicano no lar, na fábrica e nas ruas; segundo, o desmonte do "mito da classe operária revolucionária", vale dizer, a "crença de um modelo de proletariado dotado de uma missão revolucionária de transformar as sociedades capitalistas em socialistas, porque portador de uma 'consciência política', teoricamente conhecida e capaz de ser ensinada e aprendida18.Talvez o mais escarnecedor do "mundo do trabalho" no Brasil contemporâneo seja o fato de que aquilo que fora visceralmente combatido agora mereça ser defendido como a "alma"do trabalhador. E, se há um prolongamento nos anos 90, do Estado nascido da "Redentora", antes autoritário, e agora liberal, pode-se vingar a história a partir de uma "leitura inversa e perversa" e dizer-se que "não foi o 'populismo' o que limitou nossa experiência democrática mas o que a possibilitou" (vol. IV, p. 551).

Por último, cabe destacar outro ponto forte da coleção que foi, sem dúvida, a releitura dos "clássicos brasileiros", como Caio Prado Jr., Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Oliveira Viana, entre outros, tirando-se deles possibilidades interpretativas menos carregadas de ortodoxias "sociológicas" uspianas das décadas de 60 e 70. Críticas consistentes ao modelo freyriano ou ao peso da "infra-estrutura" em Caio Prado Jr., sem fazer "tabula rasa" ao passado martiriológico das Ciências Sociais e do ensaísmo brasileiros. Quer parecer tratar-se da angústia do tempo presente que, de certa forma, mantém viva alguma resistência contra os "assassinos da memória" que se assanharam em poder instituído e instituinte. Assim, admite-se que a História da vida privada no Brasil, se foi "aristocrática" - seria antifederativa? - na sua organização, não deixou de ser "republicana" nos seus resultados, porque discute os sujeitos da e na história, e, sendo assim, sensibiliza os cidadãos para a democracia. E isto não é pouco no reino da moeda sem emprego e dos moedeiros miraculosos.

Elio Chaves é professor do Departamento de História da UFPB