Internacional

A globalização não começou agora e nem se tornou irreversível. A história dos últimos quinhentos anos do Brasil é parte integrante da história da globalização, ou seja, da construção duma economia mundial capitalista.

O atual processo de internacionalização da produção mercantil, mediante a superação das distâncias e as barreiras políticas entre as nações, começou pelo menos desde a famosa viagem de Marco Polo ao Extremo Oriente, no século XIII.

A descoberta do Brasil pelos portugueses foi um episódio dum longo e admirável processo de interligação marítima da Europa com os demais continentes, que teve as nações ibéricas como protagonistas principais, financiadas pelos genoveses, que haviam acumulado grande riqueza graças ao comércio por vias terrestres com a Pérsia, a Índia e a China. Os esforços de portugueses e espanhóis levaram às primeiras viagens transoceânicas feitas com êxito e que passaram a ser realizadas regularmente, culminando com a descoberta do Oceano Pacífico e da Oceania.

As grandes descobertas tinham motivação política e religiosa, mas seu objetivo básico era comercial. O que os portugueses vieram buscar aqui eram metais preciosos ou outros produtos vendáveis no mercado mundial. Como não encontraram ouro e prata de imediato, iniciaram a produção de açúcar de cana com mão-de-obra escrava da África. Globalização mais explícita seria difícil de conceber. O açúcar era produzido nos engenhos do Nordeste, com capital holandês, transportado em navios portugueses, consumido na Europa e os tributos eram cobrados pela coroa lusitana.

Daí em diante, a globalização prosseguiria, mas não de forma linear. Na etapa colonial mercantilista, que vai do século XV ao XX, nações européias dominaram, eventualmente povoaram e a seu modo "civilizaram" inúmeros países nos mais diversos estágios de evolução, nos demais continentes. Deste processo emergiram sociedades mistas, dominadas por elites européias ou europeizantes, que exploravam nativos ou escravos trazidos da África. A partir da Revolução Americana (1776-83), alguns destes "novos" países conseguiram romper o jugo colonial e se tornar independentes.

No século XX, a descolonização se estendeu a Ásia, África e Oceania. Agora, pela primeira vez, o mundo todo é formado por nações, de todos os tamanhos e graus de desenvolvimento, com algumas "potências" exercendo forte dominação sobre a economia globalizada. A descolonização não acabou com o imperialismo, mas este teve de assumir feições cada vez mais econômicas, abrindo mão pouco a pouco do privilégio de intervir pelas armas nas nações "dependentes".

O Brasil se tornou independente de Portugal sob o patrocínio da Grã-Bretanha, que arrancou do novo governo imperial a promessa de coibir o tráfico negreiro. Até 1850, os governos brasileiros relutaram em cumprir o prometido em função dos enormes interesses envolvidos na expansão da cafeicultura, que parecia depender da mão-de-obra escrava. A marinha britânica tratou de coibir o tráfico apresando os navios negreiros e libertando os cativos. Ela atacava também nas costas brasileiras, apresando naus de cabotagem. Finalmente, a própria classe dominante brasileira "planejou" um Brasil pós-escravatura mediante nova lei de terras e legislação regulando as sociedades anônimas e o mercado de capitais. A figura central deste processo foi o grande industrial e banqueiro Barão de Mauá, estreitamente associado ao grande capital britânico.

Aparentemente, com a Independência nada mudou, a não ser a substituição de Portugal pela Inglaterra como potência dominante. Mas, neste caso também, as aparências enganam. O Brasil evoluiu não só em função da exportação do café e mais tarde da borracha amazônica, mas também em função do processo traumático e revolucionário da abolição da escravatura, da imigração européia, da industrialização por substituição de importações, que tomou impulso desde a República Velha e gerou novas classes sociais. O Brasil ficou integrado à economia mundial, mas engendrou novas forças produtivas a partir dum mercado interno que a urbanização tornava cada vez mais portentoso.

A grande crise da globalização

A primeira República (1889-1930) assistiu à crescente polarização entre a oligarquia agro-exportadora e a burguesia substituidora de importações, que se manifestou por meio de sucessivas sublevações militares – o levante em São Paulo em 1924, a Coluna Prestes e a Revolução de 1930 – que acabaram derrubando o regime oligárquico. Nesta época, em todos os países (exceto a URSS), a queda incessante dos preços, do consumo, da produção e do emprego estava destruindo a economia mundial capitalista. A crise, irradiada pelos Estados Unidos, atingia cada país de fora para dentro. A única maneira de defender a economia nacional da depressão era fechar o mercado interno e maximizar a substituição das importações por produção nacional.

O Brasil, ao lado da Suécia, da Alemanha e dos EUA, foi um dos primeiros países a intervir pesadamente na economia e aproveitar o colapso do comércio e das finanças internacionais para acelerar seu desenvolvimento por uma estratégia antiglobalizante. A grande obra de Getúlio Vargas acabou sendo centrar a economia brasileira no mercado interno e entregar a hegemonia política à população urbana, por meio do sufrágio universal limitado aos alfabetizados.

O suicídio de Getúlio, em 1954, esteve longe de acabar com a herança getulista. Antes pelo contrário, as massas mobilizadas pela carta-testamento adiaram por uma década o regime militar. Durante esta década, Juscelino Kubitschek mudou a cara do Brasil trazendo o grande capital europeu e japonês e criando uma articulação industrializante entre o Estado nacional, as multinacionais e a burguesia brasileira. É importante assinalar que o período que vai do último governo de Getúlio ao fim do "milagre econômico" – 1951 a 1976 – marca a retomada da globalização em nível mundial.

A retomada da globalização

As multinacionais dos EUA vão se envolver na reconstrução européia, dominando importantes segmentos da indústria, o que acarretou uma resposta não mais nacionalista mas pan-européia com a assinatura do Tratado de Roma (1957) e a formação do Mercado Comum Europeu, que hoje é a mais importante comunidade política supranacional. O Japão, apesar de ocupado militarmente, excluiu as multinacionais de sua economia e provou que é possível desenvolver as forças produtivas de maneira fulminante sem depender do capital externo. O mesmo modelo foi adotado com êxito pela Coréia do Sul e durante algumas décadas pelas nações líderes da América Latina.

Olhando apenas para os últimos cem anos, pode-se ver que a globalização passou por quatro fases distintas. A primeira vai até 1914 e registra a ascensão liberal, impulsionada pela Grã-Bretanha desde meados do século anterior. O comércio internacional relativamente desimpedido suscitou então um desenvolvimento econômico limitado ao Ocidente europeu, aos Estados Unidos e ao Japão. A segunda abrange as duas guerras mundiais e o período entre guerras e é marcada pelo dilaceramento bélico da economia mundial, pelo fechamento dos mercados nacionais e pela universalização da substituição de importações. A terceira começa em 1945 e se caracteriza pela abertura gradual e controlada dos mercados nacionais e a expansão rápida das multinacionais dentro deste novo espaço econômico. Finalmente, a quarta começa nos anos 80 e é marcada por uma estranha volta à primeira fase, ao liberalismo, à liquidação dos setores produtivos estatais e ao impedimento de políticas nacionais de desenvolvimento.

O Brasil entrou na terceira fase relativamente fortalecido pelo fato de ter podido unificar fisicamente grande parte do território, formando com isso um mercado nacional de amplas dimensões. Juscelino Kubitschek, o herdeiro de Getúlio, não ousou ir tão longe quanto o Japão, mas recusou a submissão ao FMI e impôs às multinacionais que vieram para cá compromissos com a substituição de importações. Ele abriu a indústria pesada ao capital estrangeiro, mantendo o petróleo, a energia elétrica e as telecomunicações monopolizados por empresas estatais. À burguesia nacional garantiu o domínio da indústria leve, do sistema financeiro, da agricultura, do comércio etc. A política brasileira procurou combinar interesses na globalização com empresários e trabalhadores assalariados voltados ao mercado interno. Políticas semelhantes eram adotadas pela maioria das nações européias capitalistas e algumas da Ásia e da América Latina.

O que surpreende é que essa política quase não muda durante o regime militar, ao contrário dos regimes análogos que se instalaram nos anos 70 no Chile, na Argentina e no Uruguai e que foram neoliberais avant la lettre, isto é, antes de Thatcher e Reagan. A ditadura de Pinochet, em particular, abriu o mercado interno e acabou com grande parte da indústria chilena. Enquanto isso, o Brasil estava tendo o "milagre econômico", durante o qual os governos da ditadura procuraram desenvolver ramos mais avançados, como construção aeronáutica e indústria de informática. Nossas exportações de manufaturados cresciam fortemente e as multinacionais instalavam aqui plataformas de exportação aos seus países de origem. O que provocava desindustrialização e desemprego na Europa e também na América do Norte.

O Brasil sai da terceira fase como um país tipicamente semidesenvolvido. A maioria da população vive em cidades e apresenta forte contraste entre uma minoria endinheirada e uma massa marginalizada, que vegeta à beira da sociedade de consumo. Mas o rápido crescimento da economia oferece oportunidades de ascensão para muitos e desperta esperanças nos demais. O brasileiro pobre faz das tripas coração para manter os filhos na escola, certo de que assim eles terão um futuro melhor.

As décadas perdidas e as crises inflacionárias

Em 1981, o longo período de desenvolvimento acelerado, no Brasil, acabou. A economia mundial estava em baixa, por causa da vitória do monetarismo nos EUA, cujo banco central arrochou o crédito e arremessou ao alto as taxas de juros do mundo inteiro. O Brasil superendividado foi obrigado pelos credores externos a cortar fundo o gasto público e o volume de crédito, o que causou de imediato forte queda das vendas, da produção e do emprego. Milhares de trabalhadores da indústria automobilística foram postos na rua.

O que pareceu uma aberração se converteu com o tempo em uma nova realidade. Em três anos (1981-84), o movimento operário aprendeu o que é desemprego em massa e que mais importante do que manter o salário frente à inflação é tentar preservar o emprego. Mesmo quando a economia voltou a crescer, entre 1984 e 86, o desemprego não retornou inteiramente ao nível usual.

Esta foi uma mudança estrutural que, mais cedo ou mais tarde, alcançou todos os países capitalistas. Quando Paul Volker assumiu a presidência do Federal Reserve System, ele tinha em vista quebrar a espinha do movimento sindical apenas na terra dele, para romper a espiral preços/salários. Mas, dado o avanço da globalização àquela altura, com o mercado mundial de capitais unificado e desregulamentado pelos eurodólares, a maxi-recessão assim causada – a maior desde a dos anos 30 – atingiu toda a economia mundial capitalista e acabou afetando os trabalhadores organizados em praticamente todos os países.

Volker1, mais do que Reagan e Thatcher, mostrou na prática que a economia globalizada poderia ser chefiada pelas finanças, na pessoa do banqueiro central. E demonstrou que a liderança financeira era capaz de afrontar com êxito trabalhadores e burguesia industrial, forçando ambos os lados a cessar seus conflitos distributivos, com o que sufocou a fonte básica das pressões inflacionárias. A reviravolta política neoliberal surgiu como produto desta vitória histórica da fração financeira do capital, cuja ideologia voltou a ser hegemônica.

A partir da volta do desemprego em massa, os sindicatos (a começar pelos dos EUA) passaram a aceitar reduções de salários em troca de garantias temporárias de manutenção dos empregos, coisa impensável até então. A revolução keynesiana havia produzido uma relação de forças em geral favorável aos trabalhadores organizados face ao grande capital. Do que resultaram duas a três décadas de aumentos contínuos dos salários diretos e indiretos nas economias desenvolvidas. Isso só não comprimiu a taxa de lucro porque ao mesmo tempo a produtividade do trabalho cresceu em ritmo igualmente acelerado, tangida por uma vasta onda de inovações tecnológicas.

A revolução keynesiana foi socavada pela inflação, irradiada dos EUA ao resto do mundo, em função dos choques do petróleo e da Guerra do Vietnã. Na segunda metade dos anos 70, os países capitalistas desenvolvidos tiveram a maior inflação em tempos de paz de sua história. Embora mixaria para padrões brasileiros, esta inflação chegou a dois dígitos anuais e assustou deveras as classes dominantes, fazendo com que muitos economistas keynesianos aderissem ao monetarismo. No Brasil, este tipo de conversão foi muito freqüente após o fracasso do Plano Cruzado, em 1986. A reviravolta ideológica transmitiu-se dos economistas à opinião pública, produzindo maiorias eleitorais que priorizavam a estabilidade dos preços acima do pleno emprego.

No Brasil, a grande recessão coincidiu com o fim "lento e seguro" da ditadura e um auge das lutas sociais, desreprimidas desde a histórica greve da Scania Vabis em 1978. Daí a formação do PT em 1980, da CUT em 1983 e do MST poucos anos depois. E o movimento pelas eleições diretas, em 1984, sem dúvida o maior movimento político de massas de nossa história. Foi esta vasta mobilização social e política que retardou o alinhamento do Brasil com o novo paradigma político e econômico dominante. O Plano Cruzado, em 1986, ainda foi bastante heterodoxo, apoiado num diagnóstico de inflação inercial, que reconhecia os conflitos distributivos como sua causa básica.

O momento em que o neoliberalismo começa a dominar o Brasil foi o da formação, no começo de 1988, do centrão na Assembléia Constituinte. A nova maioria não logrou reverter tudo o que a Constituinte tinha elaborado em 1987, de modo que a Constituição Federal saiu híbrida, consagrando algumas conquistas democráticas, quase todas dependentes de regulamentação legal para poder vigorar. Todos os governos a partir de então se empenharam ao máximo para reformá-la, para adaptar o país à nova etapa da globalização. Sarney foi aniquilado pelos fracassos em controlar a inflação, Collor foi vítima de sua própria rapacidade ilimitada e Itamar entregou o poder a FHC, que imediatamente iniciou a guinada em direção ao neoliberalismo.

O Real e a liquidação do tripé

Depois do fracasso de cinco planos de estabilização em oito anos (1986-94), o êxito do Plano Real foi deveras surpreendente. Uma parte do êxito se explica pelo fato dele não ter sido disparado de surpresa sobre a sociedade, como os anteriores, tendo havido tempo para ser debatido pelos setores organizados e no parlamento. Com isso, o plano granjeou amplo apoio social, que se exprimiu na inesperada vitória de Fernando Henrique ainda no primeiro turno da eleição de 1994, antes que seu efeito estabilizador estivesse consolidado. A eleição teve lugar apenas três meses após a sua entrada em vigor, prazo em que também os outros planos tinham conseguido estabilizar os preços.

Outra parte do êxito do Plano Real se deveu ao debilitamento das classes sociais, cujos conflitos distributivos alimentavam a subida dos preços. Durante o triênio Collor (1990-92), sofremos outra maxi-recessão, de dimensões semelhantes à da década anterior. Com o desemprego em alta e grande número de empresas falindo ou à beira da falência – inclusive pela abertura do mercado interno às importações baratas do Extremo Oriente –, a capacidade objetiva de elevar preços e pressionar por reajustamento de salários estava muito reduzida.

A imensa inflação pré-Real foi contida por uma combinação de duas políticas: o alinhamento de preços e salários mediante a URV, o que eliminou defasagens entre preços e entre salários de diversas categorias; e o escancaramento do mercado interno às importações, com a finalidade deliberada de criar um choque de preços contra os oligopólios (nacionais e multinacionais) que dominavam os mercados internos. Com isso, os preços dos bens transacionáveis internacionalmente desabaram enquanto a alta dos serviços continuou por alguns meses.

O impacto inicial do Plano Real foi redistribuidor da renda em função de diversos fatores: a) a queda da inflação, que beneficiou as camadas de baixa renda que não têm acesso a contas bancárias e portanto não podem se valer da correção monetária dos saldos depositados; b) o aumento do preço relativo dos serviços pessoais, prestados por empregados domésticos e semelhantes; c) o grande aumento real do salário mínimo, em 1995, arrancado da equipe econômica num momento de euforia pela superação do pesadelo inflacionário.

Mas esta euforia não durou muito. É que o custo externo do Plano Real, representado por um aumento explosivo das importações, foi coberto por entradas maciças de capital estrangeiro. Estas já vinham aumentando desde 1991, mas se transformaram numa enxurrada nunca vista antes, depois do acordo que pôs fim à longa crise da dívida externa e depois que a estabilidade dos preços se consolidou, em 1995. Em março deste ano, a crise do México deixava claro que o Brasil tinha se tornado extremamente vulnerável a fugas de capitais ao exterior.

E fugas de capitais do Brasil houve quase todo ano: em 1995, em 1997, em 1998 e 1999. Esta é uma das características da quarta fase da globalização, no século que está terminando. Na fase precedente, o capital financeiro estava sob controle de autoridades monetárias nacionais (os bancos centrais) e intergovernamentais (o FMI e o BIS,2), o que impediu eficazmente a ocorrência de crises bancárias e fugas de capitais. Os Artigos de Acordo que instituiu, em 1944, o Fundo Monetário Internacional proíbem-no de financiar fugas de capitais, isto é, de assistir financeiramente governos que toleram fugas de capitais. Obviamente, este dispositivo teve de ser mudado, pois desde os anos 80 o FMI não faz outra coisa que financiar fugas de capitais dos países latino-americanos, asiáticos e da Europa Oriental.

O desmantelamento dos controles sobre a movimentação internacional dos capitais privados ocorreu antes da maxi-recessão de Volker, no início dos 80. Foi ele que propiciou a difusão mundial do choque monetário, o que foi o estopim da crise das dívidas externas, que atingiu toda a América Latina. Com a superação desta crise, cerca de dez anos após o seu início, o fluxo dos capitais globalizados à periferia se intensificou, atraído inclusive pela acelerada privatização de empresas e bancos estatais, na Argentina, no México e no Brasil. Esta privatização é parte dum projeto maior: a eliminação de todas as conquistas do movimento operário e das correntes nacionalistas e desenvolvimentistas ao longo do século XX.

Este projeto pode ser resumido na liquidação do tripé, construído a partir do Plano Trienal de Juscelino e aperfeiçoado pela ditadura militar. Uma perna do tripé, que representa o setor estatal produtivo, é amputada mediante a venda das empresas em hasta pública. Outra perna do tripé, que representa a grande empresa brasileira, definha por efeito de sua insuficiente competitividade – uma parte fecha, outra tem a "sorte" de ser adquirida por multinacionais. A terceira perna, que representa o grande capital globalizado, cresce desmesuradamente, inclusive no sistema financeiro, até há pouco reservado aos bancos controlados por residentes.

O projeto propõe ainda ‘‘flexibilizar" direitos trabalhistas. Na prática, eles passam de direitos legais a concessões que poderão ou não ser obtidas por meio de negociações. Quanto à previdência, o projeto tentou reformá-la cortando direitos dos segurados e benefícios dos inativos. Em relação a ensino e assistência à saúde, a lógica do projeto neoliberal manda reduzir as redes públicas e entregar a prestação destes serviços a empresas privadas, pagos com recursos públicos mediante vouchers.

A aplicação do projeto neoliberal, começada por Collor e levada às últimas conseqüências por Itamar e Fernando Henrique, teve seu melhor resultado na estabilização dos preços e efeitos correlatos, que fizeram com que um terço dos brasileiros que estavam abaixo da linha da pobreza em 1993 passasse para cima dela em 1995. Em compensação, liquidou boa parte da burguesia nacional, industrial e financeira, e excluiu socialmente, via desemprego e terceirização, uma grande parcela da classe assalariada formal. Se até 1996 predominou o efeito redistribuidor positivo, nos últimos três anos milhões de "novos pobres" reconstituíram o exército industrial de reserva, que retomou o seu gigantismo tradicional.

A retomada das lutas

A grande onda neoliberal perdeu o ímpeto quando seus frutos sociais começaram a se tornar evidentes, na década dos 90. A centro-esquerda moderada, que em grande parte tinha embarcado na canoa do monetarismo, passou a oferecer resistência à hegemonia do "mercado". Clinton foi eleito e reeleito nos EUA e trabalhistas ou social-democratas ganharam as eleições na Grã-Bretanha, Itália, França e Alemanha. A França começa a implementar uma redução importante da jornada semanal de trabalho, velha reivindicação sindical que até há pouco parecia inviável.

Também na América Latina, a oposição ao neoliberalismo está aumentando, com o crescimento eleitoral da esquerda no Chile, no Uruguai, no México e também no Brasil. A revolta de Chiapas e a ocupação de terras em larga escala pelo MST marcam a retomada de lutas sociais, com amplo apoio de massa. Surge um movimento internacional pelo Imposto Tobin, destinado a reduzir a volatilidade dos capitais especulativos e instituir, com a receita do imposto, um fundo internacional de combate à pobreza.

Cabe registrar forte crescimento da economia solidária no Brasil, assim como em países da Europa e no Canadá, sob diversas formas: empresas falidas revivem quando se tornam autogeridas pelos seus trabalhadores; diferentes formas de cooperativas se desenvolvem em assentamentos de reforma agrária, nas periferias empobrecidas pelo desemprego em massa e mesmo em setores profissionais de nível superior; clubes de troca reúnem centenas de milhares de micro e pequenos produtores, em países da América do Norte, Europa e na Argentina, difundindo-se também mais recentemente em nosso país.

A nova resistência ao neoliberalismo ainda carece dum programa alternativo, que possa aglutinar numa frente única todos os setores sociais prejudicados pelo projeto neoliberal. O debate sobre o socialismo volta a despertar interesse e propostas nacionalistas e desenvolvimentistas recuperam destaque.

A globalização neoliberal não é o fim da história. A devastação social e econômica produzida pelo retorno ao capitalismo nu e cru garante que as novas gerações procurarão outros caminhos, para reconciliar a revolução no inter-relacionamento social, trazida pela informática, com os valores da democracia e da solidariedade. O Brasil é um dos países em que esta busca mais avançou, impulsionada pelas lutas dos desempregados e marginalizados.

Paul Singer é professor na Faculdade de Economia e Administração da USP e membro do Conselho de Redação de TD.