Nacional

O novo século nos alcança com uma das estruturas fundiárias mais concentradas do mundo. Para permanecer freqüentando os salões da respeitabilidade e proteger os olhos, velhos de três séculos e meio, uma sucessão de máscaras oculta – e expõe – um mesmo rosto: o do donatário, fidalgo, senhor de engenho, latifundiário, empresário agrícola

Recolho a linha do Equador. Fiada de sol. Ao sul da qual, ensinam os poetas e os frades empenhados em dilatar a fé e o império, não há pecado porque não há dogma, para urdir com ela esse jogo de máscaras e revelar a cara do fantasma que em cinco séculos – visível ou invisível – ora nos persegue, ora se anuncia: o senhor das terras e das gentes, da vida e da morte:

"Enviávamos às nossas mulheres rosários de ouro e pulseiras de ouro e a orelha sangrenta do inimigo dentro do porta-orelhas de ouro que hoje está entre as jóias da prima Sinhá.

São minhas as terras, as vacas, os mandiocais, as casas-de-farinha e os vaqueiros e suas orelhas e suas fêmeas: de trinta e duas delas teve filhos o Coronel José de Barros Mello Mourão, chamado o Cascavel, meu tetravô e os bastardos do General cobrem as terras que são minhas."

(O país dos Mourões, G. Mello Mourão, pg. 67 e 68, Paz e Terra, S. Paulo, 1972).

Dessa matriz descende a sucessão de máscaras que ocultam – e expõem – o rosto desta elite ao sul da compaixão e da lógica, ao sul da sensibilidade e da decência. Alfabetizada no saque, cresceu incapaz de traçar e de compreender a linha que separa as despesas da casa grande das burras do erário; soube, porém, encontrar argumentos para explicar as guerras "justas", a ocupação e a pilhagem do território e quatro séculos de escravidão manejando a retórica da "necessidade" e do "inevitável". Demonstrou talento para engendrar Raposo Tavares e Domingos Jorge Velho e oferecê-los ao culto dos seus filhos e desenvolver como poucas as artes da sedução dos subalternos, incorporando os submissos e os confiáveis, acenando para eles a miragem o quarto dos fundos, para manter inalterada a severa ordem que exclui a legião inumerável dos seus irmãos.

O testamento de Adão

Abro O testamento de Adão – um belo livro publicado sob responsabilidade da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses a propósito do V Centenário do Tratado de Tordesilhas (1494-1994) – e dou de cara com esta afirmação curiosa, seguramente conhecida de muitos, que pode nos ser útil no curso deste diálogo: "A dúvida de Francisco I sobre o testamento de Adão tem todo o cabimento. Nada há que prove que Adão se tenha preocupado com linhas de demarcação marítimas. Actos de força continental dispensavam provavelmente, invocações canônicas remotas, ainda que não litúrgicas. Contudo, também não há provas de que se tenha preocupado com ‘protecçõess’ desse tipo para as fronteiras terrestres. E a verdade é que, dentre os reis, nunca nenhum se teria lembrado de começar por Adão, para efeito de definir quaisquer fronteiras (...)" E vai adiante, com a peculiar circunspeção lusitana, o analista: "É sempre arriscado invocar direitos e salientar acessos através das referências metafóricas. Dão direito a tudo. Na boutade relativa ao testamento de Adão, o que está patente é ainda a limitada familiaridade com os problemas jurídicos do mar, sobretudo neste rei continental como era Francisco I".

Se para os portugueses, cinco séculos depois, ainda são necessárias explicações sobre a frase de Francisco I, não será ocioso indagar como reagiram os nativos de imediato, quando se viram na presença dos "herdeiros de Adão". E da lógica da pilhagem que presidiria suas relações com os desembarcados do mar, pelos séculos seguintes... Muitos não tiveram a sorte ou o tempo para decifrá-la. Morreram antes. "(...) mas porque os mesmos índios se alevantarão contra elles [os portugueses] e faziam-lhes muitas treições, os governadores e capitães da terra destruirão-nos pouco a pouco e matarão muitos delles, outros fugirão pêra o Sertão, e assi ficou a costa despovoada de gentio ao longo das Capitanias" (Pero de Magalhães Gandavo, Tratado da Terra do Brasil: história da província Santa Cruz, Itatiaia/Edusp, 1980, p. 52). E morreram em quantidades tamanhas que foi necessária uma bula papal firmada por Paulo III, garantindo aos sobreviventes o direito à alma. Não encontrei registros de que a bula papal tivesse efeito retroativo... Atribuíram-lhes uma alma abstratamente cristã, mas municiada com espada, pólvora, chumbo e outros argumentos suficientes para devastar-lhes as culturas herdadas ou pelo mecanismo inexorável da destribalização, como nos lembra Florestan Fernandes.

Aos submetidos pelo apresamento ou pelas "guerras justas" o caminho da salvação foi piedosamente indicado pelos jesuítas: "A lei que lhes hão de dar, é defender-lhes comer carne humana e guerrear sem licença do Governador; fazer-lhes ter uma só mulher, vestirem-se pois têm muito algodão, ao menos depois de cristãos, tirar-lhes os feiticeiros, mantê-los em justiça entre si e para com os cristãos; fazê-los viver quietos sem se mudarem para outra parte, se não for para entre cristãos, tendo terras repartidas que lhes bastem, e com estes Padres da Companhia para os doutrinarem" (P. Manoel da Nóbrega, S.J. Cartas da Bahia, 8/5/1558). As palavras do Pe. Manoel da Nóbrega revelam com singeleza os fundamentos da empresa colonial: ocupação da terra e redução do gentio. Produzem-se artificialmente – e aqui por reduzir de modo sumário os índios à escravidão – as condições para estocar o combustível inicial, a mão-de-obra indígena, capaz de mover, ainda que por um breve período, a economia da colônia.

De início não constava dos planos dos recém-chegados, outro empreendimento que não o de saquear algo comercializável nas metrópoles européias. A ocupação do território obedeceu estritamente a este desígnio. A fortuna, porém, não os acudiu de pronto, como concedera aos espanhóis de Hernán Cortez, deslumbrados diante dos embaixadores de Montezuma: "a primeira coisa que viu, diz Bernal Diaz del Castillo, foi uma roda de feitio de sol de ouro muito fino, que seria do tamanho de uma roda de carreta, com maneiras de pinturas, grande obra de mirar". (Lezama Lima, A Expressão Americana, p. 74, Brasiliense, 1988). Aqui, os portugueses, menos afortunados, tiveram antes que se ocupar com a defesa do território. E, durante alguns anos, com o comércio da tinta fornecida por certa madeira que acabou oferecendo o nome ao empreendimento colonial: o pau-brasil. Em 1532, a carta de Diogo Gouveia indica que naquele momento a colonização ainda não se prendia aos engenhos, pois havia superprodução de açúcar nos mercados europeus, mas apontava para a defesa do pau-brasil, o mais importante item do comércio da coroa, cobiçado belicosamente pelos franceses. "A colonização foi obra do Estado, como as capitanias representaram delegação pública de poderes sem exclusão da realeza." (Raymundo Faoro, Os donos do poder, Vol.1 p. 109, Globo, 1979).

Aqui deixa entrever pela primeira vez o rosto, nosso personagem: o fidalgo, o donatário. Em nome da realeza, ungido senhor das terras e das gentes, da vida e da morte. Agindo a seu talante a uma distância mediada pelo oceano, naturalmente alheio ao estrito controle régio. A partir daí vai-se urdindo a renda barroca de pactos e lealdades cada vez mais brasileira, cujos fios se prendem, acima, nos firmes controles do comércio internacional, ao qual se submete; abaixo, na redução do gentio e mais tarde do negro ao trabalho escravo, condição para o êxito da empresa colonial. Já aqui se desenha sua dupla face: o poder incontestado no pátio da fazenda, na senzala, na freguesia e na comarca e a submissão aos liames do comércio internacional, concentrados nas mãos da coroa.

<--break->A máscara de cobre
A casa-grande, a senzala, a capela e a casa de engenho cercam pelos quatro lados o pátio – o palco? –, o berço, onde se tecem as primeiras relações propriamente produtivas da empresa colonial. Aqui se movem os elementos de um pacto social perverso, assentado já sobre dois crimes: o monopólio da terra, empolgado pelo donatário e o cativeiro de índios e negros. O desembarque de negros nos últimos quarenta anos do século XVI atende, sobretudo, às exigências do cultivo da cana e da manufatura do açúcar. A força do tráfico será mantida e ampliada pela economia açucareira, ao longo dos próximos cem anos e além, depois do ocaso da mineração. Já então, os senhores-de-engenho apóiam-se no discurso da "necessidade" e do "inevitável". Utilizando-se de vozes autorizadas para dirigir-se à metrópole e para convencer a sociedade: "Sem negros não há Pernambuco, e, sem Angola, não há negros", vaticinava o Pe. Vieira.

A sociedade da colônia, contudo, não se limita a esses dois pólos. Permeia entre a escravaria que lavra o canavial ou se consome na casa das fornalhas onde se apura o caldo nas caldeiras e tachas e o senhor de engenho que, instalado na casa-grande, conduz o empreendimento, os estratos que soldam a engrenagem da unidade produtiva. Desde os lavradores, cultivadores de "cana livre", ou aqueles de estatuto diverso, obrigados à moenda, cujas colheitas eram conhecidas por "cana cativa", que se espalhavam em torno do engenho; aos mestres de açúcar, os carpinas, oleiros, barqueiros, pedreiros, calafates, vaqueiros e pescadores. A presença dos lavradores livres nessa teia de relações correspondia ao suprimento das necessidades de produção da farinha e do charque para abastecer a senzala; do feijão, do mel, dos frangos e ovos, o alimento em suma necessário à comunidade agregada ao engenho. Mas não apenas para cumprir esse papel.

Já no século XVII grandes engenhos se interessavam mais por manufaturar a cana cultivada nas "fazendas obrigadas", do que aquela por eles próprios plantada. Tal interesse se explica porque o lavrador recebia apenas a metade do açúcar produzido pela cana entregue ao engenho para a moagem. E pagava, além disso, a renda da terra que cultivava. Em resumo: ao monopólio da terra, à redução de índios e negros à condição de escravos ao seu serviço, o senhor de engenho agregava ao seu estrito controle os chamados "lavradores livres". Impunha-se entre eles e o comércio internacional, que afinal, os subordinava a ambos. "Nenhuma outra forma de exploração agrária no Brasil colonial resume tão bem as características básicas da grande lavoura como o engenho de açúcar. Assim aconteceu, dado o seu nível de capitalização, pois requeria, além dos trabalhos de cultivo do solo, uma série de operações demoradas e exaustivas para a manufatura do açúcar, o que implica em aparelhamento caro e mão-de-obra abundante". (História geral da civilização brasileira, coord. Sérgio Buarque de Holanda. "A Época Colonial", tomo I, vol. 2, Difel, 1982). A face primitiva do espoliador do escambo se cobre com a máscara do senhor de engenho. Ganha em sofisticação, adquire o reconhecimento social dissolvendo na biografia os contornos da aventura e da pilhagem que lhe deram origem, para dedicar-se à atividade econômica estável, voltada para mercados duradouros nas metrópoles européias.

A máscara de ouro

Cerca de duzentos anos pontilhados por "guerras justas" contra o gentio para a conquista do território, apresamento e redução; e por escaramuças contra corsários; pelo esforço para conter na praia as tentativas mais consistentes de invasão de franceses e holandeses, separam o desembarque da frota de Cabral, do dia em que um mulato da bandeira de Antônio Dias prendeu entre os dedos a primeira pepita de ouro num riacho ao pé do pico de Itacolomi, em 1698, nas Minas Gerais e desencadeou a tormenta.

Livros de registro de entrada de ouro encontrados entre os papéis da Casa da Moeda em Lisboa dão conta: "tais remessas subiram de 725 quilos no ano de 1699 para mais do dobro ou, precisamente, 1.785 kg em 1701 e 4.350 em 1703". De 1703 é a seguinte passagem do diário de John Evelyn que poderia servir para ilustrar os dados que apurou Magalhães Godinho: "O rei de Portugal recebeu tamanha renda do Brasil para sua Fazenda, que é de recear, para nós, sua neutralidade ou sua adesão à causa da França". (idem, p. 265). O jesuíta Antonil estima em 1711 que 30 mil pessoas revolviam os ribeiros daqueles sertões catando, vendendo, comprando o precioso metal: "das cidades, vilas, recôncavos e sertões do Brasil vão brancos, pardos e pretos, e muitos índios de que os paulistas se servem. A mistura é de toda a condição de pessoas: homens e mulheres; moços e velhos; pobres e ricos; nobres e plebeus; seculares, clérigos e religiosos de diversos institutos, muitos dos quais não têm no Brasil convento nem casa." (idem, p. 266).

O resultado desta febre pode-se medir por alguns números referentes à primeira metade do século XVIII: em 1713 as remessas de ouro para a metrópole alcançam 14.050 quilos, que corresponderiam ao quinto apurado nas Minas durante o ano anterior; em 1720 saltaram para 25 mil quilos. Aqui não se contam o extravio, o roubo, o contrabando debaixo da piedosa batina dos frades. Com altos e baixos até o terceiro decênio, que representa um período de estagnação na atividade mineradora, nenhuma remessa anual é inferior a 11 mil quilos.

Como não faremos aqui um minucioso levantamento do saque que revolveu durante um século o coração das Minas Gerais, importa apenas anotar o impacto sobre a formação social da colônia. O ouro iguala. Não distingue o sangue. Premia a sorte. Abole impiedosamente as hierarquias. Subverte. Aos olhos da coroa, a atividade alucinada e incessante nas lavras dos mais pobres só pode trazer bons resultados para a fazenda real, mais vulneráveis que são à cobrança do quinto. A escala social se reconstitui, nas áreas de mineração, à medida que se estabilizam os núcleos de povoamento. Embora a escala seja a mesma, não são os mesmos os indivíduos que por ela se distribuem. Esgotado o impulso inicial avassalador vai-se impor aos poucos, de maneira sutil, a estratificação precedente. Acolhidos os novos ricos sem que se indague as origens da riqueza nova, segue-se a tradição do reino no qual sempre houve escasso rigor nesses assuntos. Passada a tormenta do século XVIII, de regresso à atividade agrícola, o senhor de cabedais incorpora à nova máscara o primor barroco, o requinte do traço e do cinzel do Aleijadinho, a música de Joaquim Emérico Lobo de Mesquita, e restaura o abismo entre o trabalho físico ao qual sempre devotou solene desprezo e o ócio que cultiva como sinal de fidalguia. O fulgor das igrejas – das Irmandades do Carmo ou do Rosário dos Pretos – não esconde, antes exibe orgulhosa a fratura de uma sociedade que nunca se afasta de sua pia de batismo: o monopólio da terra e o trabalho escravo.

A máscara no espelho do mundo

O uso da máscara ao longo dos séculos provoca aderência. De tal maneira que se torna impossível distinguir uma do outro. Se já não há como arrancá-la, o remédio é sobrepor uma segunda máscara, uma terceira, uma sucessão que renove o rosto para iludir os espelhos e encarar outros tempos, com o mesmo olhar de ontem. Para preservar os mesmos antigos interesses. Aqui se consuma com precisão uma frase secular, repetida pelos sertanejos, a respeito dos senhores de engenho: "não se assuste, eles são ainda mais feios por dentro...".

1850 é o ano da Lei Eusébio de Queiroz e da Lei de Terras, ambas do mês de setembro. Lidam ambas com os dois pilares sobre os quais se sustenta a sociedade brasileira de então: o controle do tráfico de escravos e a propriedade da terra. Recorro a Sérgio Buarque de Holanda para dimensionar o impacto sobre as relações sociais no país, resultantes da Lei Eusébio de Queiroz: "Pode-se estimar a importância do golpe representado pela Lei Eusébio de Queiroz, considerando que naquele ano o total de negros importados fora de 19.363; em 1846, de 50.354; em 1847, de 56.172; em 1848, de 60 mil; em 1849, de 54 mil e em 1850 de 23 mil. A queda súbita que se assinala neste último ano resulta, aliás, não apenas da aprovação da Lei Eusébio de Queiroz, que é de 4 de setembro, como da intensificação das atividades britânicas de repressão ao tráfico." (Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, p. 76, Companhia das Letras, São Paulo,1997).

A extinção do tráfico de escravos golpeou a atividade econômica que dera origem e consolidara algumas das mais sólidas fortunas brasileiras. É ainda Sérgio Buarque que indica a disponibilidade dos capitais até então comprometidos com a importação de negros, e que: "A possibilidade de interessá-los firmemente em outros ramos de negócios não escapou a alguns espíritos esclarecidos. A própria fundação do Banco do Brasil, de 1851 está, segundo parece, relacionada com um plano deliberado de aproveitamento de tais recursos..." (idem). Soava a hora de cobrir o rosto com outra máscara, mais adequada aos novos tempos, para permanecer freqüentando os salões da respeitabilidade e proteger os olhos, velhos de três séculos e meio, que haviam conduzido a pilhagem original, a exploração do açúcar, a busca do ouro e dos diamantes. Vivêssemos hoje e a frase seria simples: estava inventada a lavagem de dinheiro. Aqui, como na metrópole onde o capital, afinal, se realizava... Arremato com Sérgio Buarque: "Pode-se assim dizer que, das cinzas do tráfico negreiro, iria surgir uma era de aparato sem precedentes em nossa história comercial" (idem).

<--break->Sobre a Lei de Terras, lembrando que a grande propriedade rural era objetivo fixado na imaginação e fator de consideração social, diz Raymundo Faoro: "Expulsar os posseiros do campo não será mais possível, incapaz o dono da sesmaria de arcar com os riscos da revolução social que isso geraria. O remédio, único capaz de se impor, dada a importância do lavrador assentado sobre a ocupação, seria o reconhecimento da posse, com a extensão reduzida ‘à de uma sesmaria para a cultura ou criação igual às últimas concedidas na mesma comarca ou nas mais vizinhas’, de acordo com a Lei 601, de 18 de setembro de 1850. Para o futuro, punha-se termo ao regime das posses, admitida a transmissão da propriedade apenas pela sucessão e pela compra e venda". Cerca-se assim, a elite, do senhor de terras ao mercador de escravos, de todos os cuidados para conduzir sem tropeços a mais delicada transição que vivera até então. Não sem conflitos internos, naturalmente. Vão diferir as posições, no interior mesmo da elite. Desde o escravista impenitente ao que, de olho nos rumos da revolução manufatureira e do grande comércio inglês, pressente o inevitável.

Tratamos aqui não do verniz de conceitos éticos que recobrem o discurso eventual de algum bacharel embriagado pelas próprias palavras, numa sociedade amante das aparências, mas, como disse acima, dos fundamentos que a suportam. "A presença de tais conflitos já parece denunciar a imaturidade do Brasil escravocrata para transformações que lhe alterassem profundamente a fisionomia. Com a supressão do tráfico negreiro dera-se, em verdade, o primeiro passo para a abolição das barreiras ao triunfo dos mercadores e especuladores urbanos, mas a obra começada em 1850 só se completará em 1888. (...) Como esperar transformações profundas em país onde eram mantidos os fundamentos tradicionais da situação que se pretendia superar? Enquanto perdurassem intactos e, apesar de tudo, poderosos, os padrões econômicos e sociais herdados da era colonial e expressos principalmente na grande lavoura servida pelo braço escravo, as transformações mais ousadas teriam de ser superficiais e artificiosas." (Sérgio Buarque, Raízes do Brasil, p. 78.) O que assombra não é a vitória, de resto inevitável, dos ingleses, neste capítulo, mas a astúcia – e a força do rebenque... – com que se houve a elite dos senhores de terras e dos traficantes para prolongar ainda por quase meio século o declínio da ordem escravocrata, sem o amparo de argumentos morais ou justificativas de ordem econômica; afinal, para desenvolver-se, o capitalismo sempre exigiu mercados e mercados cada vez mais vastos... Só aquela ordem entranhadamente hierárquica e avassalada por uma elite gerada pelo saque, constituída sobre o monopólio da terra e a exploração do trabalho escravo, poderia operar semelhante façanha.

Uma sociedade hierárquica

Não se pode acusar o empreendimento colonial português de ter produzido uma sociedade militarizada. Nada tão distante dele que os comportamentos marciais. Esta realidade, contudo, não oculta a estratificação profundamente hierarquizada que deixou de herança. De tal modo que, a partir da proclamação da independência, a constituição da Guarda Nacional incorporou o contorno das hierarquias familiares, cada batalhão calcado sobre o recorte da parentela.

"Esta união dos membros da parentela dentro de um mesmo batalhão, ou então de um mesmo regimento da Guarda Nacional, espelhava sua solidariedade interna. Porém mostrava também que se esta solidariedade realmente existia, não impedia as diferenças de hierarquia socioeconômica. Pois os diversos graus da Guarda Nacional refletiam também o nível de fortuna a que se alçava o indivíduo: o alferes inferior ao tenente, o tenente inferior ao capitão, e no topo, sobrepujando a todos, o coronel. O termo coronel nomeava então, na maioria dos casos, não apenas o indivíduo que detinha uma grande soma de poder econômico e político, como também o que se encontrava na camada superior dos grupos de parentela." (Maria Isaura Pereira de Queiroz, in História geral da civilização brasileira, vol. III, p. 166, Difel, S. Paulo, 1982). Não há contestação a essa ordem no interior das famílias, cada uma no seu degrau atada a lealdades incontornáveis na disputa pelo controle da cidade ou da vila, sede da Câmara, da Intendência, da Comarca. Do poder enfim de dispor do aparato público como extensão da economia familiar.

Essa experiência oligárquica vai-se depurando. Os séculos de mando, a par de conduzirem o empreendimento econômico e o exercício político, vão caldeando uma substância, uma "cultura" que se concentra sempre mais exclusiva e excludente: "Fizeste muito bem Euclides, elegendo só os teus. Eu, como não tenho parentes, cada um que mando para o governo do Mato Grosso é um traidor" (Maria Isaura, op cit. p. 167), lamenta-se em carta um coronel a outro coronel, a propósito de eleições.

A disputa com parentelas rivais obedece em geral a três objetivos: o controle do poder local; os privilégios na relação com o poder estadual e a exigência de lealdade e apoio unânime no interior da parentela. São interdependentes esses três objetivos e, uma vez alcançados, convertem-se em um poderoso fator de conservadorismo expresso singelamente na frase "nesses assuntos de política, sou intransigente. Voto sempre com o governo". O poder local se traduz em duas faces: o poder do favor e o poder de polícia. Tenho poder porque posso distribuir favores aos meus correligionários e o rebenque no lombo dos inimigos. Porque aqui detenho o privilégio de representar o poder do Estado e assim mantenho unificada minha base, meus parentes e aderentes. A relação entre o chefe local e o coronel se exprime de maneira exemplar no conselho do governador João Pinheiro a um chefe político do interior de Minas, no início do século XX: "Diga sempre que é solidário com o governo. Tudo se reduz a obedecer. Obedeça e terá acertado. Do contrário, o senhor sabe, estou eu aqui com o facão na mão para chamar à ordem aqueles que se insurgirem. A minha missão principal é essa: manobrar o facão, ou em cima, quando se trata da política federal, ou em baixo, quando da estadual. O nosso meio de orientação é esse. Portanto, olho no facão, não esqueça e faça boa viagem". (Os donos do poder, Raymundo Faoro, Vol II, p. 629, Ed. Globo, Porto Alegre). Essa cadeia de relações verticais bloqueou ao longo do tempo qualquer veleidade de transformação a partir do município, convertendo-o em mero espaço de reprodução do status quo, sempre submisso, porque sempre à míngua de recursos estaduais e federais, aos desígnios do coronel que se encontra à frente do estado.

<--break->A fonte do poder estadual não deriva aqui direta e exclusivamente da propriedade da terra, mas também dos laços com o estamento burocrático governante, pacientemente tecidos ao longo dos séculos pela renda de relações de "casamento, herança e comércio", fontes permanentes de mando econômico e político. Trata-se de um delicado equilíbrio que envolve reciprocidade e fina sintonia: "É claro, portanto, que os dois aspectos – o prestígio dos ‘coronéis’ e o prestígio de empréstimo que o poder público lhe outorga – são mutuamente dependentes e funcionam mutuamente como determinantes e determinados. Sem a liderança do ‘coronel’ – firmada na estrutura agrária do país –, o governo não se sentiria obrigado a um tratamento de reciprocidade, e sem essa reciprocidade, a liderança do ‘coronel’ ficaria sensivelmente diminuída." (Vítor Nunes Leal, Coronelismo, enxada e voto, Nova Fronteira, Rio, 1997).

Os alicerces deste pacto residem na debilidade financeira do município, que anula no berço qualquer impulso de autonomia. O município só se insurge quando se abre uma crise entre as oligarquias no plano do estado. E ainda assim para optar por aquela entre as duas que reúne melhores condições para vencer. Aqui se fincam as raízes de uma antiga concepção largamente disseminada entre as classes populares no Brasil: "não perco meu voto" ou "não voto para perder". Em geral, essa frase é a tradução popular do discurso do coronel "em assuntos de política sou intransigente. Voto sempre com o governo". Nada tão distante do programa ideológico, do debate entre distintas concepções de como gerir a esfera pública. Elas, as classes populares, aprenderam na experiência concreta que o valor supremo na disputa política é a vitória. O resto não conta. Porque ao vencedor cabem os favores do Estado. Aos derrotados, o cobrador de impostos e a polícia. "É, pois, a fraqueza financeira dos municípios um fator que contribui, relevantemente, para manter o ‘coronelismo’ na sua expressão governista." (Vítor Nunes Leal, idem, p. 66). Ao retirar a capacidade de arrecadação dos municípios e atribuir-lhes novos encargos e serviços, a União e os estados recriam permanentemente as condições sociais para a restauração do coronelismo sob novas máscaras, oferecendo uma sobrevida ao velho fantasma que se recusa a deixar a cena política, perpetuando essa "cultura" política na história do Brasil. "Através do tempo, a solidariedade da parentela, os conflitos e as violências reforçam a estrutura das parentelas, fazendo-as acomodar-se com as diversas formas políticas que sucessivamente se instalaram no país – Colônia, Império, República. E traduze-se em ditados como este: Para os amigos tudo; para os inimigos, o rigor da lei." Imaginem o que pode significar "o rigor da lei" nessas circunstâncias.

A máscara de arame
Poucos terão sido os setores sociais que se mobilizaram com maior empenho do que os trabalhadores rurais, durante os trabalhos do Congresso Constituinte, em 1987/88. Mais de um milhão e duzentas mil assinaturas foram colhidas em favor da emenda popular da reforma agrária; atos públicos se multiplicaram em todo o país; o movimento sindical dos trabalhadores rurais conduzido pela Contag, o nascente Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e as pastorais populares arregimentaram trabalhadores de todo o país para pressionar os constituintes. Em breves momentos apenas conseguiram escapar da invisibilidade. Na maior parte do tempo foram a multidão de Garabombos, criada por Manuel Scorza para contar a saga dos comuneros do Peru. Invisíveis aos olhos da sociedade.

Diante da possibilidade, algo remota, dos movimentos sociais que haviam emergido recentemente das sombras do regime militar garantirem alguns passos no sentido da democratização da propriedade da terra, a elite agrária reagiu como em 1850, com a Lei 601, a Lei de Terras, ou como os antigos senhores de escravos. Entrincheirou-se no centrão, estabeleceu sólidas alianças com setores da indústria, do comércio e dos bancos, manejou com destreza uma poderosa bancada de deputados e senadores, herdada da tradição do coronelismo e reforçada durante o regime de arbítrio do AI-5, vestiu a máscara da "propriedade produtiva" e tornou o latifúndio "insuscetível de desapropriação para fins de reforma agrária".

Do lado de fora do Congresso Constituinte, organizou entidades e associações que escapavam aos moldes sindicais burocráticos do período anterior, realizou leilões, mobilizou manifestações, constituiu milícias paramilitares, disputou com os movimentos dos trabalhadores nos meios de comunicação de massa, denunciando o atraso que significaria a prevalência da proposta dos sem-terra e do movimento sindical. Demonstrou uma surpreendente vitalidade para aqueles que imaginavam dissolvidos os laços entre a propriedade da terra e o exercício da política. Há um dado que escapa aos desatentos: é essa elite agrária que oferece a matriz do comportamento, da "cultura política" às elites brasileiras. À frente de todo esse esforço, o representante de uma oligarquia que se notabilizou por mandar castrar os agregados insubmissos, no início do século. O aprendizado de cinco séculos ensinou a ela o equilíbrio entre o pelourinho e a batucada. É possível ouvir neste final do século XX, no interior do país, vários ditos populares que reproduzem e cristalizam aquela "cultura": "Quem dá o pano dá o pau", "a mão que alimenta é a mesma que pune". Tais idéias acabam se confundindo com o "bom senso" e revelam como é profunda a hegemonia que a elite agrária, suas concepções, sua "cultura", exerce sobre largas parcelas da população brasileira.

Batemos às portas do século XXI carregando atrás de nós a procissão incalculável dos povos extintos. Das 594 áreas indígenas reconhecidas, 279 estão regularizadas, 170 não tiveram concluída sua demarcação, 145 nem a iniciaram e mais de 200 áreas não foram sequer reconhecidas como tais. O novo século nos alcança com uma das estruturas fundiárias mais concentradas do mundo. E com alguns milhões de trabalhadores rurais sem terra rondando as cercas do latifúndio. Entre nós, há quem diga que a reforma agrária perdeu o sentido diante dos avanços tecnológicos alcançados pela agricultura nos últimos cinqüenta anos. Há, no entanto, um dado irrefutável: alguns milhões de trabalhadores sem terra e algumas dezenas de milhares deles, organizados no movimento social mais significativo dos anos 90, realizam ocupações, convertendo-as em assentamentos e apontando rumos para romper com a lógica dos últimos cinco séculos.

O Movimento dos Sem-Terra anuncia para os próximos meses quinhentas ocupações. Haverá fogueiras alumiando a noite depois dos muros dos condomínios das cidades, depois das cercas dos latifúndios. Por trás da máscara de arame nos miram olhos, velhos de cinco séculos. Vigiam com a mão no clavinote e a palavra de sedução nos lábios, como há cinco séculos. O MST tem acendido suas fogueiras, como sinais, demarcando caminhos, para uma sociedade que parece nunca se afastar de sua pia de batismo: o monopólio da terra e a exploração do trabalho escravo. Não há soluções milagrosas, mas gosto do brilho das fogueiras...

Pedro Tierra é poeta, autor de Dies Irae - Oito testemunhos e uma ressurreição.